Já ouviu falar em Racismo Linguístico? E em “Pretuguês”?

Muito bem, para responder ao nosso questionamento título, julgamos necessário compreender primeiramente o que é o pretuguês, expressão criada pela filósofa Lélia Gonzalez para explicar a africanização da língua portuguesa. 

Quer saber mais sobre o que é o Racismo Linguístico?
Então, confira nosso conteúdo que preparamos sobre o tema!

Entenda o Racismo Linguístico

A partir do pensamento dessa estudiosa, é possível refletir sobre a presença e a participação de línguas africanas no português falado no Brasil, como também sobre a racialização dos falantes que passam a sofrer racismo pela linguagem. Vejamos:

Assim, nossa proposta com este texto é retomar o debate em torno de como a língua se torna uma ferramenta para dominar os não brancos. Não obstante, discutimos ainda como a linguagem está na estrutura da sociedade seja nomeando e gerando exclusão, seja principalmente estabelecendo políticas de exclusão (NASCIMENTO, 2019).  

A história do Pretuguês

Uma das reflexões mais interessantes de Gonzales no texto “Racismo e sexismo na cultura brasileira” diz respeito à influência do tronco linguístico bantu na formação da língua brasileira. 

Com uma contribuição verdadeiramente linguística, a também historiadora defende o significante bantu/bunda como sendo língua, linguagem, sentido e coisa. Estabelece ainda uma necessária crítica ao modo como o pensamento dominante no país impõe o entendimento de uma unidade brasileira, descendente de europeus e muito civilizada. Para Gonzales (1984, p.238),

É engraçado como eles gozam a gente quando a gente diz que é Framengo. Chamam a gente de ignorante dizendo que a gente fala errado. E de repente ignoram que a presença desse r no lugar do l nada mais é que a marca linguística de um idioma africano, no qual o l inexiste.

Afinal, quem que é o ignorante? Ao mesmo tempo, acham o maior barato a fala dita brasileira, que corta os erres dos infinitivos verbais, que condensa você em cê, o está em tá e por aí afora. Não sacam que tão falando pretuguês.

Vemos nessa citação como as reflexões sociolinguísticas realizadas por Gonzales são acuradas tanto na percepção, como também na análise de fenômenos como o rotacismo (mudança fonética do l pelo r). 

Ainda refletindo sobre as consequências violentas da articulação entre racismo e sexismo, especialmente para a mulher negra, Gonzales (1984, p. 224) compreende o racismo constituído “como a sintomática que caracteriza a neurose cultural brasileira”.

Racismo linguístico?

A variação social ou diastrática, ou seja, aquela através da qual é possível identificar o grupo social, bem como o grau de letramento, a que o falante pertence, no português do Brasil, ainda que revele preconceito linguístico, como argumentou Bagno (1999), se constitui ao fim e ao cabo em racismo linguístico (NASCIMENTO, 2019). 

De acordo com o professor Gabriel Nascimento (2019), a estigmatização é comum para as variantes que são mais produtivas entre certos falantes. Mas, esses sujeitos pertencem a que classe social e, sobretudo, a que raça? 

Não parece intrigante que tais pessoas sejam menos escolarizadas e oriundas das menores camadas de estratificação socioeconômicas e, consequentemente, em maiorias negras? 

Pois é. Racismo linguístico é “toda forma de racialização da língua”. Vejamos a aula produzida pelo Canal AFRO TV Brasil sobre o tema, entendendo “língua como poder, cultura e ancestralidade”:

Embora o discurso dominante, constituído para atuar na manutenção da estrutura social burguesa, nos leve a naturalizar a condição socioeconômica do negro, trata-se mesmo de uma ferramenta para perpetuar tal situação, como já discutimos no texto sobre o racismo estrutural, quando debatemos sobre o racismo ser a base econômica, política e jurídica do país. 

Para Nascimento (2019, p. 37), “a noção de classe social no Brasil vem da intensa colonização e, portanto, de sua racialização. Nesse caso, a raça define o que é classe social no Brasil”.  

A partir dos estudos de Rosa e Flores, Nascimento (2019) debate o conceito de raça como central para refletir sobre a dominação linguística. Nessa perspectiva, como a língua é racializada, também os sujeitos privilegiados nesse processo devem ser racializados, argumenta o professor. 

Desse modo, para além de discurso, entende o racismo como “a estrutura de onde se originam os discursos da colonialidade” (NASCIMENTO, 2019, p. 31).

Entendendo as contribuições para os estudos da linguagem


Para ilustrar essa reflexão, vejamos, no vídeo a seguir, como a professora Janaína Viscardi retoma as contribuições de Lélia Gonzalez nos estudos da linguagem:

Nesse vídeo, Viscardi observa as marcas de africanização na língua, enquanto potencial para ampliação dos estudos da linguagem, a partir da contribuição de diferentes estudiosos, inclusive Nascimento. 

A professora aponta a importância desses debates para compreender a formação social brasileira. Ademais, mostra como o entendimento da língua afro-brasileira, enquanto ato político e emancipatório, vem sendo discutido por muitos estudiosos do tema, como Cerqueira (2020), que investiga o pretuguês como comunidade de prática. 

Pretuguês como comunidade de prática

Com base no pensamento de González, a professora Fernanda Cerqueira entende o pretuguês como comunidade de prática, tomando como referência as práticas cotidianas no/do movimento hip-hop. 

Assim, argumenta que a ausência de concordância em sintagmas nominais como os mano, os cara, os menor e os homi reflete marcas estilísticas identitárias raciais quando produzidas no dialeto hip hop. Segundo Cerqueira (2020),

(…) o uso de concordância de número não marcada em sintagmas nominais está amplamente relacionado à performance estilística de língua(gem), oriundas de consciência e identidade racial. Logo, a variação, aqui, é concebida como prática estilística, decorrentes das práticas linguísticas cotidianas, passíveis de mudança, quanto à significação e ao julgamento, haja vista que, nessa seara, a variante estigmatizada é ressignificada como emancipatória (HOOKS, 2008). 

Cerqueira (2020) busca fundamentação em hooks para compreender como a língua padrão representa o apagamento, a morte de tantas outras línguas silenciadas no curso da história.

O mais interessante do estudo de Cerqueira é verificar que a não marcação de concordância nominal revela o comprometimento dos falantes com seus grupos sociais e não necessariamente pouca escolaridade. Trata-se mesmo de um uso que representa resistência e é utilizado de modo estratégico para performar uma identidade racial e uma consciência de classe.

Potencial do Pretuguês

Em 2019, durante o debate em um grupo de trabalho sobre cultura, música e sociedade no Congresso Entre Mares, organizado pelo Núcleo de Estudos sobre África e Brasil (NEAB/UPE – Campus Garanhuns), eu desenvolvi uma reflexão semelhante à apresentada por Cerqueira.

Questionei primeiro a hierarquização estabelecida entre o conhecimento institucionalizado (representado pela escolarização) e aquele que resulta da vivência. Posteriormente, atentei para o fato de não haver correspondência direta, imanente, entre grau de letramento e a fala do sujeito, ilustrando a discussão com a fala do rapper Emicida

Formado em desenho, leitor voraz, o compositor brasileiro não costuma utilizar a dupla marcação de plural nos sintagmas nominais, igualmente ao que discutiu Cerqueira, mas o que ele performa em seu uso linguístico só reforça uma estética própria de consciência e identidade racial. 

No ano passado, Emicida atuou como professor a convite do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra/Portugal. 

Sem romantizar a conquista, para além de uma realização pessoal do artista, não podemos deixar de reconhecer seu potencial simbólico em termos do pretuguês, de uma ressignificação emancipatória da linguagem e, consequentemente, para a luta antirracista também. 

Foi a ocupação de um espaço privilegiado de poder, ainda que temporária, ainda que esteja longe de ser realidade para todos ou mesmo para a maioria. Com base na discussão traçada aqui, a língua da rua, a língua preta, o pretuguês esteve representado na academia.

Para concluir

A escola, assim como a universidade, é um espaço estratégico na luta contra o racismo. Por isso, é fundamental compreender o papel da linguagem no processo de dominação e subjugação dos sujeitos não brancos. 

Como bem explica Nascimento (2019, p. 109), em defesa de outra perspectiva raciolinguística, é indispensável a racialização na, da e pela língua(gem) por ser “uma forma de sempre alertar ao sujeito branco que ele não é universal”. 

Nesse campo, faz-se necessário entender a linguagem para além do código, do sistema, sobretudo compreender as ideologias e a história que estão em jogo no uso e no silenciamento, assim como nos processos de ressignificação na e da linguagem, bem como dos falantes/escritores.


Gostou de saber mais sobre o que é o Racismo Linguístico? Então, confira nosso conteúdo sobre a importância das emoções na consolidação das memórias!

Jaciara Gomes é Doutora em Linguística pelo PPGL/UFPE. Atua como professora adjunta na Universidade de Pernambuco, no curso de Graduação em Letras. Realiza pesquisas sobre práticas de letramentos, bem como sobre o ensino de leitura e de escrita. É líder do Grupo de Pesquisa em Letramentos e Práticas Discursivas e Culturais (LEPDIC) e coordena o projeto de extensão em Culturas Periféricas (CULPERIFA).

Para saber mais

BAGNO, M. Preconceito Linguístico: o que é? como se faz? São Paulo: Loyola, 1999.

Canal GNT. PRETUGUÊS: a africanização da língua portuguesa brasileira. O enigma da energia escura. 11/09/2021. Disponível em: [https://youtu.be/v7ZC429ONME]

CANAL JANA VISCARDI. Pretuguês, de Lélia Gonzalez: passado e presente | Jana Viscardi. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=AA4MjU-Q-Zk

CANAL JANA VISCARDI. Racismo linguístico feat Gabriel Nascimento | Jana Viscardi. https://www.youtube.com/watch?v=PlV2O8A2P4A 

CERQUEIRA, F. O pretuguês como comunidade de prática: concordância nominal e identidade racial. Traços de Linguagem, Cáceres, v. 4, n. 1, p. 75-88, 2020. Disponível em: https://periodicos.unemat.br/index.ph…

GONZALEZ, L. (1984) Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfil…NASCIMENTO, G. Racismo Linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo. Belo Horizonte: Editora Letramento, 2019.