Quais são os sentidos de ensinar (e aprender) língua portuguesa na escola?

Essa pergunta vem, recorrentemente, de diferentes sujeitos: dos(as) alunos(as), dos(as) seus(suas) responsáveis, de pessoas que já concluíram (ou não) a Educação Básica, de nossos(as) colegas docentes de outras áreas e até de nós mesmos(as), professores(as) de português.

O interesse comum de todos(as) é saber, no final de tantos conteúdos curriculares, qual é a utilidade desse aprendizado, cujas aplicações ainda parecem distantes e estranhas à vida cotidiana.

Neste artigo, vamos refletir sobre como a metodologia de projetos de letramento pode tornar o estudo da nossa língua materna mais significativo. 

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O que são práticas de letramento?

O que são práticas de letramento?  

Pensar sobre a utilidade do estudo do português é também questionar, consciente ou inconscientemente, seu estudo isolado das práticas sociais.

Para que estudar classes de palavras e suas regras se fora da escola não vamos ficar pensando nessas classificações ao falarmos ou escrevermos?

E para que ficar treinando estratégias de leitura se, simplesmente, lemos no dia a dia sem ter que usar tantas técnicas? Para que escrevermos em situações simuladas e quase que exclusivamente para o(a) professor(a) corrigir se, na “vida real”, julgamos nem ser preciso escrevermos essas coisas que ele(a) nos pede?

Essas questões surgem de um certo saber intuitivo, percebido em nossas experiências, de que nossas práticas de linguagem (oralidade, leitura, escrita e análise linguística) estão diretamente relacionadas à nossa vivência sociocultural. 

Ou, melhor dizendo, usamos a língua para interagir socialmente, dentro de contextos bem específicos, portanto, diversificados, onde produzimos e atribuímos sentidos às nossas atividades. 

Nesses eventos, podemos até nem perceber diretamente, mas estão em jogo: que papel social estamos exercendo naquela interação; o que e como queremos e podemos dizer; por qual suporte e gênero discursivo obtemos os melhores efeitos; qual é o papel social da pessoa a quem nos dirigimos; que consequências esses aspectos e nossas escolhas têm sobre nós, nossas atividades e sobre os outros sujeitos envolvidos. 

A esse conjunto de aspectos linguísticos e contextuais, damos o nome de práticas de letramento.

Esse conceito foi desenvolvido pelos pesquisadores britânicos Shirley Heath (1982) e Brian Street (2012), a partir de investigações etnográficas no campo da Educação.

Em síntese, podemos entender as práticas de letramento como as diversas situações de interação social mediadas pela escrita (os eventos de letramento), onde estão em jogo as identidades, crenças, sentimentos, valores, relações de poder e significados que as pessoas atribuem à escrita.

Como funciona as práticas de letramento

Como funciona as práticas de letramento

Tais práticas, como dissemos acima, são apropriadas por nós a partir da nossa vivência em grupos sociais que exercem suas atividades típicas, como na escola, na família, na religião, na comunidade local, na universidade.

É claro que podemos (e devemos) investir em reflexões, de modo a instruir os(as) alunos(as) sobre as estratégias de uso da linguagem por determinados grupos.

Mas é, fundamentalmente, por meio da experiência prática, ou seja, nos eventos de letramento, que os(as) alunos(as) vão percebendo o que conta como ações importantes para participarmos das práticas de determinado grupo, ou seja, vamos nos apropriando dos modos de ser, fazer, estar, ler e escrever típicos dos grupos dos quais participamos, como esclarece a Profa. Dra. em Linguística Adriana Fischer (2007).

Nesse sentido, encontramos nos projetos de letramento uma das metodologias de aprendizagem alternativa à visão universalista, homogeneizante e imanentista de estudo da língua ― que nos faz acreditar que o português é difícil, é maçante, é uma língua com a qual não nos identificamos e que enrijece nosso potencial de criatividade, fluidez e percepção de pluralidade.

Por meio da pedagogia de projetos de letramento, buscamos nos apropriar de uma prática interessada, engajada e significativa de estudo da língua materna.

Projetos de letramento: ganhos 

Os projetos de letramento são uma alternativa teórico-metodológica, pautada nas perspectivas sociocultural e investigativa de linguagem (TINOCO, 2008; STREET, 2012), que auxilia alunos(as) na reflexão e apropriação de práticas de letramento.

Isso porque essa metodologia baseia-se na resolução de problemas reais ou de perguntas surgidos no espaço social escolar, comunitário etc. de maneira articulada aos conteúdos curriculares das disciplinas.

Neles, as práticas de leitura, escrita e oralidade devem ser entendidas como ferramentas para agir socialmente (TINOCO, 2008; JUCHUM, 2016).

Assim, as reflexões sobre as práticas de linguagem são um meio para a resolução dos problemas/das perguntas, e não um fim em si mesmas.

Currículo escolar e as necessidades do aluno


O conteúdo curricular passa a ser tratado conforme as necessidades das atividades que envolvem os problemas. Por exemplo, as estratégias específicas de leitura são estudadas para compreender os textos que serão utilizados para atingir os objetivos da pesquisa.

A atenção às estratégias de escrita de determinados gêneros textuais que medeiam as atividades e o uso de determinadas realizações linguísticas (pronomes, conjunções, concordâncias nominal e verbal, movimentos retóricos etc.) são explorados conforme as demandas de realização do projeto. Como exemplifica Juchum (2016, p. 73-74):

Nos projetos de trabalho, o texto, entendido como eixo da língua em uso, é o ponto de partida e o ponto de chegada de todo o processo de ensino/aprendizagem. […] Desse modo, as tarefas das quais os alunos devem se dar conta durante o desenvolvimento do projeto são maneiras de converter a leitura em construção de sentidos.

A leitura passa a ter a finalidade de encontrar respostas às perguntas levantadas pelos alunos em relação ao tema do projeto. A partir dessa finalidade ou propósito, a leitura torna-se significativa, pois, de alguma forma, retoma as situações sociais nas quais o texto encontra suas funções. Defendo que, para a realização de um projeto, é preciso ler textos autênticos, que, de fato, circulam na sociedade.

Projetos de letramento: desafios

Conforme também acrescenta Glícia Tinoco (2008, p. 176), os projetos de letramento: “[…] favorecem a aprendizagem significativa por meio da colaboração mútua, da negociação de responsabilidades e do consequente reposicionamento identitário de estudantes, professores e demais participantes”.

Isso porque essa é uma abordagem em que todos(as) os(as) integrantes têm participação ativa nas decisões e ações, e não apenas o(a) professor(a). Esta passa a assumir sua função como agente de letramento.

Esse agente, como integrante mais experiente do grupo, atua, em especial, na curadoria de materiais e nas orientações aos(às) alunos(as) nas etapas do projeto. Para Kleiman (2006, p. 86):

Ao mobilizar as capacidades dos membros do grupo, ao favorecer a participação de todos segundo suas capacidades, o agente de letramento, ele próprio um ator social, cria as condições necessárias para a emergência de diversos atores, com diversos papéis, segundo as necessidades e potencialidades do grupo. A assimetria institucional que aprisiona o professor e alunos em papéis imutáveis pode ser desfeita.

Para a autora, essa tendência, ainda, dá lugar a uma sociedade em que predomina a participação democrática. Confira, a seguir, outros ganhos e desafios dessa metodologia:

Tabela projetos de letramento
Conclusão práticas de letramento

Conclusão

Com o exposto, também se destaca a contribuição que a pedagogia de projetos de letramento traz à formação dos(as) alunos(as) como pesquisadores(as).

Eles(as) são estimulados a perceber questões/problemas à sua volta que ainda demandam respostas, interessam-se por dar sua contribuição movidos por objetivos claros, pela resolução através de uma metodologia pensada e decidida em grupo e orientada por um par mais experiente — o(a) professor(a) —, que tem mais condições de sugerir caminhos teóricos e de analíticos.

Dessa forma, os(as) alunos também podem perceber, ainda que como iniciação, as contribuições que os saberes gerados a partir de metodologias científicas produzem à sociedade.

Importa ressaltar que os projetos de letramento podem ser uma alternativa não só para o ensino de língua portuguesa, mas também de línguas, inclusive estando articulados a variados temas e disciplinas, constituindo uma proposta de trabalho interdisciplinar.

Espero ter animado você a se interessar por essa metodologia e integrá-la às suas práticas pedagógicas. Você também pode se aprofundar com as sugestões de leitura da lista abaixo.

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Izabela Pereira de Fraga é doutoranda e mestre em Educação (PPGEdu/UFPE), na linha de pesquisa Educação e Linguagem, investigando práticas de letramento acadêmico. É também licenciada em Letras Português e Espanhol (UFRPE). Atua como revisora de textos em português. Tem experiência com formação inicial e continuada de professores da Educação Básica com ênfase na área de Língua Portuguesa. É integrante do Grupo de Pesquisa em Alfabetização, Linguagem e Colonialidade (GPEALE), vinculado à Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ) e da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e registrado no CNPq. E-mail: izabela.fraga@ufpe.br 

Para saber mais

FISCHER, Adriana. A Construção de Letramentos na Esfera Acadêmica. 2007. 341f. Tese (Doutorado) – Curso de Pós-graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2007.

HEATH, Shirley B. What no bedtime story means: narrative skills at home and school.

Language and Society, v. 11, p. 49-76, 1982.

JUCHUM, Maristela. Letramentos Acadêmicos: projetos de trabalho na universidade. 2016. 170 f. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Letras, Programa de Pós-graduação em Letras, Porto Alegre – RS, 2016. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/149553 . Acesso em: 25 set. 2019.

KLEIMAN, Angela B. Processos identitários na formação profissional. O professor como

agente de letramento. In: CORRÊA, Manoel Luiz Gonçalves; BOCH, Françoise (Org.). Ensino de língua: representação e letramento. (Coleção ideias sobre linguagem). Campinas, SP: Mercado de Letras, 2006, p. 75-91.

STREET, Brian. Eventos de letramento e práticas de letramento: teoria e prática nos Novos Estudos do Letramento. In: MAGALHÃES, Izabel (Org.). Discursos e Práticas de Letramento: pesquisa etnográfica e formação de professores. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2012, p. 69-92.

TINOCO, Glícia M. Azevedo de M. Projetos de letramento: ação e formação de professores de língua materna. 254 f. Tese (Doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem. Campinas, SP: [s.n.], 2008.