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Este texto tem como intenção principal mostrar que nenhum de nós é uma máquina que escreve perfeitamente logo na primeira tentativa. Claro, a experiência nos traz uma grande bagagem, que acaba facilitando nosso processo de expressão por meio da escrita, mas eu diria que é quase impossível não utilizar o rascunho para a construção de um texto que se pretenda bem estruturado e apresentável, pelo menos quando tratamos de uma escrita minimamente formal.

Na verdade, até mesmo em comunicações informais acabamos indo e voltando; apagando e reformulando nosso texto, dependendo da situação.

Qual a importância de escrever?

A primeira coisa que nos leva a escrever algo, claro, é a necessidade. Seja para apresentar um trabalho, para expressar nosso sentimento, para entregar um relatório, para conversar com um amigo, estamos sempre partindo de uma necessidade em produzir um texto escrito.

Não gosto muito da citação (o famigerado apud), mas preciso trazer uma citação que Ingedore Koch faz de Leontiev (1971, p. 31) para demonstrar como surge o “produto” textual:

“Surge de uma necessidade. Depois, planificamos a atividade, fazendo uso de meios sociais – os signos – ao determinar sua meta e eleger os meios adequados à sua realização. Finalmente, a realizamos, e com isso alcançamos os resultados visados. Cada ato da atividade compreende, pois, a unidade dos três aspectos: começa com um motivo e um plano, e termina com um resultado, com a consecução da meta prevista no início; mas, nesse meio, há um sistema dinâmico de ações e operações concretas orientadas para essa meta”. (LEONT’EV, 1971, p. 31 apud KOCH, 2009, p. 11)

Ou seja, entre a ideia de escrever um texto e o momento de apresentá-lo, há todo um processo que fará com que o autor alcance, ou não, seu objetivo comunicativo. O rascunho está aí, no meio desse processo. 

A escola aborda a redação da maneira correta?

Como professor, eu sempre me pergunto se a escola dá a devida importância a esse “meio” de que trata Leontiev. Na maioria das vezes, há a pressão (inclusive com um tempo específico para a conclusão da produção) para que os(as) estudantes escrevam temas descontextualizados, e o foco se dá na correção ortográfico-gramatical: se o texto está “certo”, coerente, coeso, com um número específico de linhas, de parágrafos etc. Parece que todos são preparados para serem máquinas de escrever redação.

Mas, em que momentos da vida real, somos solicitados a escrever uma redação dissertativa-argumentativa? Toda essa situação tensa acaba gerando os famosos “brancos”, em que, por mais que se tenha uma ideia na cabeça (primeiro momento citado por Leontiev), não se consegue chegar à sua materialização verbal. 

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Geraldi (2008, p.65) traz uma reflexão sobre essa situação, muito comum em sala de aula:

Para o professor, por outro lado, vem a decepção de ver textos mal redigidos, aos quais ele havia feito sugestões, corrigido, tratado com carinho. No final o aluno nem relê o texto com as anotações. Muitas vezes o atira ao cesto de lixo assim que o recebe. 

Ou seja, falta motivação e empenho a esse escritor em formação. O autor citado completa:

Antes de mais nada, é preciso lembrar que a produção de textos na escola foge totalmente ao sentido de uso da língua: os alunos escrevem para o professor (único leitor, quando lê os textos). A situação de emprego da língua é, pois, artificial. Afinal, qual a graça em escrever um texto que não será lido por ninguém ou que será lido apenas por uma pessoa (que por sinal corrigirá o texto e dará nota para ele)? 

Essa situação totalmente descolada da nossa realidade acaba fazendo com que a maioria dos(as) estudantes passem a encarar a escrita como uma tarefa cansativa, chata. Quando, na verdade, sabemos que ela pode ser uma das artes mais belas que o ser humano pode produzir. E não falo somente de textos poéticos, mas de qualquer tipo de produção escrita. 

Traduzir em palavras pensamentos, teorias complexas, sentimentos, situações corriqueiras… Vejam como tudo isso pode ser belo. Por esse motivo, tento sempre trazer textos pensando em vocês, leitores, proporcionando um momento de prazer em meio a um dia que pode ter sido duro, cansativo… Ah, e também defendo que os textos acadêmicos podem (e devem) ser mais agradáveis.

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Percebem que o rascunho deveria estar muito mais presente em todo esse contato com a escrita, desde o mais jovem até o mais experiente escritor? 

Costumo dizer aos meus estudantes, tanto os do ensino fundamental quanto os do superior, que eles devem, num primeiro momento, jogar no papel (ou celular, tablet, notebook) tudo que lhes vem à cabeça, sem se preocupar com acertos ou erros.

Isso já traz um certo conforto, pois não há a tal pressão de que falamos antes. Partir de um planejamento flexível, sem pressão, faz com que estruturamos todo o nosso texto de maneira muito mais eficiente. Depois de materializadas as principais ideias, trabalhamos no processo mais formal de construção textual. 

Claro que não ignoro os momentos em que inevitavelmente sofreremos uma pressão para escrever, principalmente em concursos públicos, mas lembro que estamos tratando aqui de toda a formação de um escritor, desde os momentos mais iniciais na escola, para que o ato de escrever não se torne algo sofrível, assustador, e das intervenções pedagógicas que podem evitar que tal pressão seja tão devastadora como temos visto por aí.

Mas, claro, há salvação mesmo para os que já têm um pensamento negativo sobre esse processo. 

Não é à toa que defendo uma mudança de postura em relação ao ensino da língua escrita, principalmente no que diz respeito aos seus propósitos, valorizando não só a forma daquilo que é apresentado, mas o conteúdo e as intenções por trás de determinadas transgressões da língua.

A sociedade impõe dogmas que acabam por determinar o que é a tal “boa escrita”, reforçando a dominação das elites econômicas, que são as que sabem “escrever e falar corretamente”. 

Trago uma reflexão de Landsmann (2006), que destaca questionamentos importantes sobre o que se espera das pessoas no que diz respeito à sua escrita. Ela inicia o capítulo com uma citação de Pablo Neruda – “A roupa a secar embandeira cada casa e a incessante proliferação de pés descalços delata com sua colmeia o inextinguível amor.” –, a qual será importante para entendermos melhor o trecho abaixo:

O que significa então saber escrever? Quando dizemos que alguém sabe escrever? Lá longe e há muito tempo, saber assinar separava os que sabiam dos que não sabiam. Quais são essas condições aqui e agora? Professores do primeiro grau costumam dizer no mês de maio que algumas crianças da sua classe ainda não sabem escrever; bancários queixam-se de que seus clientes não sabem escrever; e professores universitários afirmam que muitos dos seus alunos não sabem escrever. Ao ler a epígrafe, a primeira impressão é a de uma total falta de sentido, e deveremos dedicar vários minutos a decifrá-la; no entanto, ninguém vacilará ao afirmar que Pablo Neruda sabe escrever. É evidente que sob a mesma frase escondem-se conotações muito diferentes. O professor de primeiro grau está pensando em crianças que não sabem desenhar as letras, ou combiná-las para formar palavras e frases; os bancários, na dificuldade que muitas pessoas têm em preencher um formulário; os professores universitários, na dificuldade de produzir textos sem erros de ortografia, ou de argumentar de forma coerente e polida. O texto de Neruda transgride a ordem das palavras e combinações léxicas. Apesar das diferenças, cada um assinala alguns dos “saberes” ou representações incluídas no saber escrever. (LANDSMANN, 2006, p. 41)

Apesar de haver inúmeras situações a que somos expostos no dia a dia, com diversos gêneros textuais a serem praticados, de diferentes níveis, em determinados momentos de nossas vidas, parece que a escola se preocupa apenas com a formação de escritores de textos dissertativos formais.

Como, então, mostrar que a escrita permite subversões como a de Neruda, a de Saramago, a de Mário Quintana? Escrever é um ato múltiplo, incessante, diverso. 

Voltando à questão do rascunho, alguém consegue imaginar que qualquer escritor, desde o mais literal ao mais metafórico, não teve um tempo para lapidar, rever, ir e voltar em sua produção? Por falar em lapidação, devemos nos lembrar de como os suportes de escrita vêm sofrendo mudanças ao longo do tempo, o que acaba influenciando diretamente no texto.

Escrever numa tabuleta de pedra é bem diferente de digitar em um smartphone. Vale, então, atentar para o que nos diz Puchner (2019, p.20), no seu belo livro “O mundo da escrita: como a literatura transformou a civilização”:

Neste livro, a história da literatura é escrita muito à luz dessa última revolução em tecnologias da escrita. Revoluções dessa magnitude não acontecem com frequência.

A revolução do alfabeto, iniciada no Oriente Médio e na Grécia, facilitou o domínio da escrita e ajudou a aumentar as taxas de alfabetização. A revolução do papel, iniciada na China e prosseguida no Oriente Médio, reduziu o custo da literatura e, assim, mudou sua natureza.

Também preparou o cenário para a revolução da impressão, que começou no Leste Asiático e, centenas de anos depois, se espalhou para o norte da Europa. Houve revoluções menores, como a invenção do pergaminho, na Ásia Menor, e do códice, em Roma. Nos últimos 4 mil anos, houve alguns momentos em que as novas tecnologias transformaram radicalmente a literatura.

Até agora. Está claro que nossa atual revolução tecnológica está lançando para nós, a cada ano, novas formas de escrever, de e-mails e e-readers a blogs e tuítes, mudando não só o modo como a literatura é distribuída e lida, mas também como é escrita, à medida que os autores se ajustam a essas novas realidades.

Ao mesmo tempo, alguns dos termos que começamos a usar recentemente parecem momentos anteriores da longa história da literatura: como os antigos escribas, estamos mais uma vez desenrolando textos e sentando curvados sobre tabuletas. Como compreender essa combinação de velho e novo? 

A citação é longa, mas vale a pena. Veja, quando pensamos na evolução da literatura, percebemos como o processo de rascunhar textos mudou enormemente ao longo do tempo e, com certeza, estamos no momento mais propício da história no que diz respeito a suportes textuais para desenvolver nossa escrita e torná-la ainda mais rica. As escolas não podem ignorar esse fato! 

Os meios digitais de escrita

Tento mostrar aqui neste breve artigo que, hoje em dia, temos ainda mais facilidade em nosso processo de lapidação dos textos, já que dispomos de suportes digitais de escrita, que nos permitem “jogar na tela” tudo que planejamos para nosso texto de maneira bastante prática e, ainda, com possibilidade de consultas a diversificadas fontes para enriquecer e embasar nossa produção. 

Estamos na rua, em um transporte público, em um restaurante, e lembramos de algo que tenhamos de escrever ou, até mesmo, temos uma inspiração poética. Fica fácil começar a desenhar o esquema do nosso texto por meio de notas escritas (ou de áudio) para, depois, num momento de maior concentração, transformar o rascunho em produto final.

Afinal, há quem consiga produzir textos estruturados fora da solidão? Melhor ainda: essa solidão é possível nos dias de hoje? Vale a leitura do texto de Julian Fuks para refletir sobre esse processo:

Leia também: O que será da escrita sem solidão? Reflexões a partir de Marguerite Duras

Já sei, leitor(a), você sempre vem me questionar… Vai, fala. “Tiago, eu posso fazer tudo isso em papel também! Sempre carrego comigo um bloquinho e uma caneta para fazer anotações enquanto ando por aí. Aliás, eu prefiro o papel!”.

Como sempre, você tem razão! Tudo isso é possível de ser feito também em papel. Porém, andando pelas ruas, olhe ao seu redor. Quantas pessoas andam com esse tal bloquinho? Além disso, acho que o álcool gel também acabaria manchando a folha… 

Brincadeiras à parte, os meios digitais trazem inegável facilidade para fazermos rascunhos em nossos textos. Além das vantagens que descrevi anteriormente, podemos copiar, enviar, salvar na nuvem, construir coletivamente etc., o que os meios analógicos não nos permitem (ou permitem com menos praticidade).

E também temos bem menos rasuras, não é? Se bem que elas até podem nos ajudar a entender todo o processo que se passou até chegarmos ao texto final… Esse é outro ponto interessante de se pensar!

A transição entre o escritor e o leitor

Acho que é comum a todos nós, que escrevemos, sempre nos surpreender quando lemos um texto que acabamos de produzir: “Não acredito que repeti tantas vezes essa palavra!”; ou “Caramba, podia ter escolhido outro termo”; também “Nem eu entendi o que quis dizer aqui…”.

Essa percepção ocorre porque, quando estamos produzindo o texto, somos escritores; quando lemos, somos leitores. Parece óbvio, não é? E é. Mas digo isso para destacar que há detalhes que somente o leitor percebe, como, por exemplo, a atenção diferente que dá ao texto se comparado ao escritor. 

A escrita é uma habilidade diferente da leitura, por isso requer processos mentais específicos, que acabam não nos permitindo perceber detalhes que, em certos momentos, são tão claros para o leitor.

Por esse motivo, é tão importante que, ao longo da produção textual, sempre saiamos do papel de escritor(a) e passemos ao de leitor(a), para que, pouco a pouco, possamos lapidar nossa obra e a tornemos mais completa, mais atrativa, na busca do nosso propósito comunicativo. 

O processo

Esse subtítulo ficou parecendo nome de filme, mas não é. Vou, rapidamente, aqui, tentar mostrar, em mais uma atividade metalinguística, como este texto foi lapidado até que chegasse a vocês, leitores(as): 

  1. relaxado, no bloco de notas do celular, fui, ao longo de dois dias, criando tópicos que seriam importantes de serem abordados neste texto. Sempre que lembrava de algum, acrescentava a esse esquema;
  2. depois, com essa estrutura básica, fui selecionar, em algumas obras de que disponho, trechos que servissem para enriquecer meu artigo;
  3. passei, então, todos esses dados coletados (esquema e referências) para a nuvem, a fim de coletá-los e organizá-los no computador de mesa, já que me sinto mais à vontade e concentrado nesse suporte de escrita;
  4. em dois dias, fui escrevendo o texto até finalizá-lo, passeando entre todos os tópicos planejados e marcando cada um conforme vinha sendo contemplado no artigo. Aqui, temos o processo mais desgastante, que requer maior tempo e isolamento para a tal lapidação de que falo, já que, a todo momento, transito entre os papéis de escritor e leitor;
  5. depois de dois dias sem mexer no artigo, volto a ele apenas no papel de leitor, agora mais concentrado e com um certo distanciamento da produção, a fim de fazer uma revisão atenta e corrigir problemas antes não percebidos;
  6. envio o artigo à editora, que encaminhará o texto para mais uma revisão, a ser feita por uma profissional responsável;
  7. finalmente o artigo é publicado.

Claro, há milhões de situações e pessoas diferentes, com vivências e experiências próprias, cada qual com sua estratégia de escrita peculiar.

Minha intenção em divulgar todo o processo por que passei para a escrita de textos como este é defender as ideias sobre as quais conversamos ao longo deste artigo, deixando claro como o rascunho é algo essencial na produção escrita e que precisa de uma maior atenção por parte das nossas escolas. 

No mundo real, com pessoas reais, os textos não surgem prontos, lindos, bem escritos, instantaneamente, como num passe de mágica, baixados nas mentes de poucos escolhidos. Portanto, mais que inspiração, são produtos de bastante trabalho, atenção e suor.

Mesmo assim, por mais que tenhamos dedicação a esse trabalho, um texto será apenas um recorte do tempo, de uma mínima realidade, um rascunho de algo que seria melhor caso tivesse mais uma leitura, mais uma revisão, mais uns minutos para ser lapidado. E seguimos assim, rascunhando a vida, transitando entre papéis. Ora leitores; ora escritores. 

Referências

GERALDI, João Wanderley (org). O texto na sala de aula. 4. ed. São Paulo: Ática, 2008.

KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. O texto e a construção dos sentidos. 9.ed., 2ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2009.

LANDSMANN, Liliana Tolchinsky. Aprendizagem da linguagem escrita. São Paulo: Ática, 2006. 

PUCHNER, Martin. O mundo da escrita: como a literatura transformou a civilização. Tradução de Pedro Maia Soares. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. 455 p.

Tiago da Silva Ribeiro

Professor do Magistério Superior no Instituto Nacional de Educação de Surdos nas disciplinas de Língua Portuguesa e Tecnologias da informação e comunicação. Tem experiência em turmas do Ensino Fundamental e Médio, além de já ter atuado na modalidade on-line como mediador, orientador de trabalhos finais de curso, desenhista educacional, professor-autor e coordenador de curso. Seu Doutorado em Letras é pela PUC-Rio e teve como tema de trabalho o Internetês. 

Recentemente, organizou, junto à professora Tania Chalhub, o livro “Reflexões de um mundo em pandemia: educação, comunicação e acessibilidade”, disponível gratuitamente no site da Editora Ayvu.