Lição de casa: ajuda ou atrapalha?

A controvérsia da lição de casa no ambiente escolar
A pergunta que intitula este texto vem gerando debates no Brasil e no mundo há algumas décadas. A lição de casa, um dos pilares da cultura escolar, em alguns contextos é considerada parte fundamental do projeto pedagógico e, em outros, é tida como dispensável ou mesmo indesejável. É importante compreender, nesse cenário, por que a lição de casa causa tanta controvérsia.
Lição de casa no banco dos réus
Argumentos a favor da lição de casa
Colocada sob escrutínio, a lição de casa mobiliza argumentos favoráveis e contrários a essa prática tão arraigada na escola. Em geral, aqueles que a defendem falam sobre a necessidade de se criar pontes entre família e escola; a vantagem de o estudante rever, em um momento fora da aula, aquilo que aprendeu em classe; a possibilidade que ela oferece de autogestão e a contribuição que ela dá à formação de hábitos de estudo, aprimorando a postura de estudante das crianças e adolescentes.
Argumentos contrários à lição de casa
Já aqueles que a acusam lembram a desigualdade existente entre as famílias, impossibilitando as crianças que vivem em situação de vulnerabilidade de contar com o apoio de adultos. Abordam também a necessidade de a criança ter tempo ocioso, para brincar e interagir com a família e amigos sem cobranças, a fim de se garantir um desenvolvimento saudável. Alegam, ainda, a inversão de papeis que pode ocorrer nesse momento, com pais atuando como professores, o que pode gerar um tensionamento na relação entre pais e filhos ou entre família e escola.
A necessidade de decisão com base no contexto escolar
Todos esses argumentos são legítimos e precisam ser levados em consideração no momento de se decidir por adotar ou não a prática de lição de casa em determinado contexto escolar. É fundamental, também, que a equipe pedagógica discuta o assunto entre si, articulando-o ao contexto de cada comunidade escolar, de forma a fundamentar sua decisão com base no que for melhor para as crianças e adolescentes.
A lição de casa na rotina infantil
Atualmente, muitas discussões têm sido feitas acerca do tema adultização infantil. Considerando que a adultização está presente toda vez que uma criança é exposta a situações, deveres e responsabilidades próprios da vida adulta, pode-se afirmar que uma rotina atribulada e baseada em produtividade, quando imposta a uma criança, constitui-se como um mecanismo de adultização.
Adultização infantil e o tempo livre
Nesse sentido, a equipe pedagógica precisa pensar: quem são nossos estudantes? Quanto tempo eles passam na escola? O que fazem em seu tempo livre? Eles têm tempo para brincar, ou tempo ocioso que possam usar como lhes aprouver? As famílias têm disponibilidade para um tempo de qualidade com as crianças?
Adequação ao tempo escolar e familiar
A partir dessas respostas, alguns caminhos podem surgir como melhores que outros. Para uma criança que frequenta a escola em tempo integral, por exemplo, a lição de casa pode “roubar” o pouco tempo livre que ela tem com a família e amigos. Já para uma criança que passa apenas 4 ou 5 horas na escola, a lição de casa pode representar uma retomada importante dos objetos de conhecimento apresentados.
Para famílias que participam da vida escolar dos filhos, a vivência conjunta da lição de casa pode se constituir mais um momento de aproximação entre eles. Já para famílias trabalhadoras, cujos pais ou responsáveis passam poucas horas em casa, a necessidade de incluir o apoio à lição de casa da criança às outras demandas domésticas pode gerar cansaço, tensão e um desgaste na relação familiar.
Escuta sensível ao contexto extraescolar
É preciso que a escola tenha uma escuta atenta e sensível, a fim de compreender como é a rotina das crianças e famílias fora da escola. Dessa forma, a proposta da lição de casa, quando (e se) acontecer, terá uma melhor chance de se adequar ao contexto extraescolar.
O que se aprende com a lição de casa?
Ao refletir sobre a lição de casa, os educadores precisam ter clareza sobre o que esperam que os estudantes aprendam com ela. Nesse sentido, os objetivos estabelecidos para a aprendizagem podem determinar, também, o tipo de lição de casa a ser oferecida.
Lição de casa para aprendizagem conceitual
Se a expectativa de aprendizagem for de uma questão conceitual, a lição de casa pode ser proposta como um elemento disparador. Nesse contexto, as crianças podem ser convidadas a realizar, em casa, tarefas que mobilizem saberes prévios, a fim de participarem melhor da aula em que o conceito será discutido. Elas podem também realizar pesquisas que contribuam para a construção coletiva daquele conceito. Podem, ainda, vivenciar experiências que fundamentarão o conceito a ser construído.
Por exemplo, a elaboração de uma lista com os preços de produtos de um supermercado pode ser uma boa base para a aprendizagem de números decimais. A pesquisa no dicionário por palavras em que a letra Q não seja seguida pela letra U (e a consequente impossibilidade de encontrá-las) pode ser a melhor forma de demonstrar como esse dígrafo é invariavelmente representado na língua portuguesa. A observação da posição do Sol em diferentes momentos do dia pode servir de base para uma discussão sobre os movimentos de rotação e translação da Terra.
Lição de casa para saber procedimental
Quando a expectativa de aprendizagem recai sobre um saber procedimental, a lição de casa pode servir como uma oportunidade a mais de vivenciá-lo, com a vantagem de se poder articular ainda mais esse saber às suas práticas sociais. Jogar um jogo de trilha com a família, ler um livro total ou parcialmente, escrever um bilhete para alguém, identificar possíveis fontes históricas podem ser, por exemplo, boas oportunidades para se desenvolver procedimentos de contagem, leitura, escrita e historiografia, respectivamente.
Lição de casa para aprendizagem atitudinal
Finalmente, nos casos em que o objetivo é desenvolver uma aprendizagem atitudinal, é fundamental que a lição de casa crie situações que levem a criança a experimentar novas atitudes. Alguns exemplos podem ser os trabalhos em grupo que visam à construção de vivências coletivas; as conversas com a família que busquem refletir sobre valores e questões contemporâneas; as visitas a museus ou espaços culturais com a intenção de se aprender a frequentar e interagir de forma qualificada nesses locais; as vivências em ambientes naturais, que contribuem para o desenvolvimento de uma postura de sustentabilidade, entre outros.
Em todos esses casos, é importante que, além de se refletir sobre os objetivos de aprendizagem, a equipe pedagógica possa mensurar que contribuição a lição de casa poderia, efetivamente, oferecer no cenário daquela escola e daquela comunidade.
Lição de casa nas diferentes etapas da escolaridade
A decisão sobre propor ou não lição de casa deve se adequar não apenas ao contexto de cada escola, mas também às diferentes etapas da escolaridade de uma mesma escola.
Educação infantil: autonomia e recomendação
Na Educação Infantil, por exemplo, quando as crianças ainda não têm autonomia para fazerem a lição de casa sem apoio e demandam, necessariamente, a participação dos adultos, lições de casa não são recomendáveis.
Anos iniciais do ensino fundamental: autogestão
Nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, lições de casa curtas, que permitam à criança começar a aprender procedimentos de autogestão e organização do próprio tempo podem ser mais adequadas. E o início da lição de casa pode se constituir um bonito rito de passagem, de modo que as crianças percebam que, à medida que crescem, ganham novas responsabilidades.
Anos finais do ensino fundamental: atenção à sobrecarga
Nos Anos Finais do Ensino Fundamental, as lições de casa podem ser um pouco mais longas. É importante que a equipe pedagógica lembre, porém, que o início da rotina escolar organizada por diferentes professores não é fácil para o adolescente. Torna-se, então, fundamental uma conversa entre os diferentes docentes, a fim de não sobrecarregar os estudantes com tarefas em um mesmo período.
Ensino médio: complexidade e conciliação
Já no Ensino Médio, as lições de casa, além de mais complexas, podem também ser propostas em grupo, já que os jovens tendem a ter maior autonomia em sua rotina e em seus deslocamentos, facilitando as reuniões fora da escola. Conciliar as lições de casa com os estudos para os vestibulares, por exemplo, é um procedimento a ser aprendido.
Lição de casa e as expectativas envolvidas
Não apenas a criança, mas também o(a) professor(a) e as famílias costumam alimentar algumas expectativas com relação à lição de casa.
Transparência na decisão da escola
Sob essa perspectiva, é importante que a equipe pedagógica, quando tomar a sua decisão sobre esse assunto, explicite o que a fundamentou aos estudantes e familiares.
Comunicação em caso de abolição da tarefa
Caso se opte por abolir a lição de casa, é importante explicar que a aprendizagem poderá ser garantida com o trabalho desenvolvido em sala de aula. Abordar também a necessidade e a importância de se preservar o tempo livre da criança, e a relação deste com um desenvolvimento saudável é fundamental. Apresentar outros contextos, dentro e fora do Brasil, em que a lição de casa não existe, pode contribuir para a percepção de que ela não é, de fato, uma obrigatoriedade.
Leia mais: Formação continuada de professores: quem são os protagonistas deste processo?
O processo é mais importante que o produto
Já nos casos em que a escola optar por manter a lição de casa, é importante dizer, às crianças e às famílias, que o processo é mais importante que o produto. Em outras palavras, o que vale é a criança recuperar o que foi discutido em sala, e realizar a tarefa proposta da melhor maneira que conseguir, sem a obrigatoriedade de trazer uma lição de casa “perfeita”.
Leia mais: 5 cursos livres essenciais para professores e educadores
Com base nessa premissa, os familiares podem até apoiar a realização da proposta, mas sem dar respostas ou cobrar acertos por parte da criança. As relações familiares precisam ser preservadas, pois, até nos casos em que os pais eventualmente possam ser professores, naquela situação, eles precisam ser apenas pais. E as respostas eventualmente erradas que a criança vier a trazer para a escola servirão como subsídio para que o(a) professor(a) identifique o que ela ainda não entendeu.
Afinal, a lição de casa ajuda ou atrapalha?
Os diversos aspectos aqui abordados evidenciam que não há uma resposta única para essa pergunta. A lição de casa pode ser muito diferente a depender do contexto da comunidade escolar, dos objetivos de aprendizagem estabelecidos, das expectativas envolvidas em torno dela e da etapa de escolaridade em que é proposta.
Leia mais: Acolhimento escolar: primeira lição para crianças
O importante é que cada equipe consiga fazer uma análise coletiva de sua realidade, decidindo não apenas se a lição de casa fará parte do projeto pedagógico da escola, mas também quando e como ela será proposta. O que deve mover a decisão de propô-la não pode ser sua ampla difusão na cultura escolar, mas as possibilidades e os benefícios que ela oferece a cada estudante participante daquela realidade.
Minicurrículo da autora
Elaine Cristina R. G. Vidal é professora na graduação e pós-graduação da Faculdade de Educação da USP. Ela é formada em Letras pela USP e em Pedagogia pela Universidade Metodista/SP. Possui especializações em Alfabetização: relações entre o ensino e a aprendizagem (ISE Vera Cruz) e Ética, valores e cidadania na escola (Univesp), além de mestrado e doutorado em Psicologia, Linguagem e Educação, também pela FEUSP. É autora dos livros Projetos didáticos em salas de alfabetização (2014), Literatura e crianças: um encontro necessário (2019) e A infância na escola: reflexões sobre Educação Infantil (2023). Sua vasta experiência inclui atuação como professora e gestora em todos os níveis da Educação Básica, no Ensino Superior e como editora no Núcleo de Produção de Conteúdo e Formação da Saber Educação.
Referências
CARVALHO, M. E. P.; NASCIMENTO, C. S.; PAIVA, Clotilde M. de. O lugar do dever de casa na sala de aula. In: Olhar do Professor. V. 9, n. 02 – Universidade Estadual de Ponta Grossa, p. 341-357.
COLELLO, S. Lição de casa: sim ou não? SP: FTD, 2012. Disponível em: www.silviacolello.com.br. Acesso em: 19 ago. 2025.
RESENDE, T. F. Entre escolas e famílias: revelações dos deveres de casa. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte – MG. Disponível em: http://www. scielo.br/pdf/paideia/v18n40/14.pdf. Acesso em: 19 ago. 2025.
Crie sua conta e desbloqueie materiais exclusivos
Veja mais

O Impacto das Redes Sociais na Identidade e Aprendizagem dos Adolescentes

Memória e Aprendizado Escolar: Propostas da Neuroeducação

Lição de casa: ajuda ou atrapalha?

Políticas públicas de saúde mental nas escolas





