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Lei 10.639/03 e outras conquistas como frutos da luta do MNU

11 de junho de 2025,
E-docente

Em 14 de maio de 1888, para os negros recém-libertos, a abolição da escravatura não se traduziu em liberdade plena, mas sim em total desamparo social. Não existiam políticas públicas – sejam elas educacionais, habitacionais ou de reforma agrária – que lhes permitissem ter acesso à terra ou a oportunidades de desenvolvimento. Como bem pontua a filósofa Sueli Carneiro, em conversa no podcast Mano a Mano, essa “liberdade” significou que eles “foram jogados na lata do lixo da sociedade brasileira”. A pesquisadora ainda enfatiza o que a abolição representou para os negros: “vocês estão livres para morrer nas sarjetas desse país”. O reconhecimento das conquistas do Movimento Negro, como a Lei 10.639/03, é essencial para entender essa trajetória.

Os imigrantes europeus chegaram com a missão de “civilizar” e “embranquecer” a nação, visando transformá-la na “Europa dos trópicos”. Enquanto italianos e alemães recebiam terras, amplo apoio estatal e acesso à educação, os negros foram deixados à própria sorte. Em outras palavras, esses imigrantes foram beneficiados por verdadeiras políticas de cotas, como bem registra o jornalista e historiador Tau Golin, ao discutir a hipocrisia daqueles que hoje criticam tal política:

A riqueza do Rio Grande do Sul e de outras regiões do Brasil é o legado de cotistas do passado. As políticas de colonização do país foram aplicações concretas de políticas de cotas. A servos, camponeses, mercenários, bandidos, ladrões e prostitutas da Europa, acenou-se com a utopia cotista. Ofereceram-lhes, em primeiro lugar, um lugar para ser seu, um espaço para produzir, representado pelo lote de terra; uma colônia para que pudessem semear seu sonho. E lhes foram entregues juntas de bois, arados, implementos agrícolas, sementes, e o direito de usar a natureza – a floresta, os rios e minerais – para se capitalizarem. Nesse processo, milhares não conseguiram pagar a dívida colonial e foram anistiados. E quando ressarciram, foi em condições módicas. (Golin, Os Cotistas Desagradecidos)

O historiador destaca como essa postura “desagradecida” dos herdeiros dos primeiros cotistas impacta negativamente o avanço do Brasil, um país marcado pela escravidão de africanos e pelo etnocídio dos povos indígenas. Esse gesto revela não apenas racismo, mas também uma profunda falta de solidariedade.

Desse modo, a indigência humana no Brasil tem cor: é negra e é indígena. Historicamente, nunca houve igualdade. Consequentemente, na ausência de igualdade, as pessoas negras foram compelidas a lutar por seus direitos. Essa luta já rendeu algumas conquistas que, embora ainda frágeis, são marcos importantes. Nosso foco, neste debate, é analisar as conquistas do Movimento Negro, sobretudo nos campos educacional, cultural e artístico.

A Relevância Histórica de Palmares e a Luta por Direitos

“Para nós, luta é verbo”, lembra Sueli Carneiro, ressaltando que nada do que a população negra conquistou foi herdado gratuitamente, nem mesmo foi uma benesse de governos. Há uma história de apagamentos e silenciamentos que precisa ser revista, denuncia a pesquisadora.

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Em consonância com essa necessária revisão dos fatos, o historiador Zezito Araújo defende que as lições de Palmares sejam aplicadas ao presente. Para ele: “O Quilombo dos Palmares precisa ser entendido como o momento fundador dos movimentos de resistência negros no Brasil”. Ademais, o historiador explica que tudo começou em 1597, com a princesa congolesa Aqualtune.

O historiador explica a necessidade de que Palmares seja visto como um modelo de sociedade no qual os diferentes conviveram em igualdade, e que demonstrou relevante capacidade tecnológica. Para ele: “Queremos entender Palmares como lição e experiência de sociedade, e não apenas como a tradição hegemônica de escritores brasileiros o faz, de colocar escravizados versus colonizadores. Essa visão simplifica a importância de Palmares”. Trata-se, de fato, de uma ampliação de perspectiva que coloca a experiência como palco de importantes disputas, inclusive no contexto internacional.

Assim, nenhuma conquista para o povo negro pode ficar à sombra de gestos individuais ou mesmo partidários. A luta por educação, por exemplo, é uma demanda bastante antiga. Nesse aspecto, podemos retomar a Frente Negra Brasileira (criada em 1931), que, já na década de 1930, reafirmou a luta pelo direito à educação.

Pioneirismo e Novas Frentes de Resistência no Contexto da Lei 10.639/03

A luta pelos direitos das trabalhadoras domésticas, por sua vez, tem na figura de Laudelina Campos Mello, militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e da Frente Negra Brasileira (FNB), uma pioneira. Essa demanda só veio a ser atendida nos anos de 1990, com a atuação de Benedita da Silva.

Esse panorama pode ser mais bem visualizado a partir da live com a ativista e filósofa Sueli Carneiro, durante o 2º Ciclo de Oficinas – Práticas Antirracistas (2022). A feminista antirracista afirma que os primeiros atos de resistência dos negros ocorreram nos navios negreiros. Uma resistência que, desde sempre, foi invisibilizada. No vídeo Breve panorama do Movimento Negro no Brasil, disponível no canal “Roda Educativa”, a professora destaca o primeiro grito de liberdade dado por Zumbi dos Palmares, um precursor da luta negra.

Leia mais: Educação e antirracismo: Vamos refletir sobre uma educação antirracista!

A filósofa denuncia como o Movimento Negro (MN) foi estigmatizado e apagado da história afro-brasileira. Ademais, afirma que somente com Décio Freitas e Clóvis Moura é que o protagonismo do MN pode ser devidamente reconhecido. Esses são autores fundamentais para entender o Brasil negro.

Segundo Carneiro, após a abolição, a Frente Negra Brasileira (FNB) merece destaque, pois prestou um importante trabalho socioeducativo e cultural, além de oferecer cursos de formação política. A FNB também foi essencial na luta contra o racismo. Com a implantação da Ditadura Militar, a FNB e todas as demais organizações sociais foram extintas.

No contexto da Ditadura, a FNB se reinventou em outras frentes. O destaque é dado ao Teatro Experimental do Negro (1944-1961), companhia teatral carioca fundada estrategicamente para a valorização social do negro, constituindo uma forma de resistência negra através da cultura. Sua missão social era trabalhar com educação, cultura e arte, e tinha como liderança Abdias do Nascimento.

O Movimento Negro Unificado e a Implementação da Lei 10.639/03

O Movimento Negro Unificado (MNU), fundado em 1978, surgiu no contexto da luta pelos direitos civis dos negros nos EUA e da luta pela libertação dos países africanos. Isso, do ponto de vista internacional. Já em nível local, havia um cenário de abertura política, com a ampliação dos movimentos populares, sindicais e estudantis, além da chamada Convergência Socialista. Esta última, uma organização de base marxista, foi forjada no entendimento de que não existe luta antirracista sem luta revolucionária anticapitalista.

Segundo Petrônio Domingues (2007, p. 114-115), o MNU representou a união de forças para enfrentar a ideologia racista em que esse país foi cimentado. Como o próprio autor explica:

O nascimento do MNU significou um marco na história do protesto negro do país, pois, entre outros motivos, desenvolveu a proposta de unificar a luta de todos os grupos e organizações antirracistas em escala nacional. O objetivo era fortalecer o poder político do movimento negro. Nesta nova fase, a estratégia que prevaleceu no movimento foi a de combinar a luta do negro com a de todos os oprimidos da sociedade. A tônica era contestar a ordem social vigente e, simultaneamente, desferir a denúncia pública do problema do racismo. Pela primeira vez na história, o movimento negro apregoava como uma de suas palavras de ordem a consigna: “negro no poder!”

O MNU se voltou contra as diferentes mazelas sociais a que os negros estavam expostos, seja o racismo em contextos mais específicos (como no mercado de trabalho), seja na estruturação das instituições (a exemplo dos meios de educação e da segurança pública, onde a violência policial impera e, até hoje, vitima principalmente pessoas negras).

Leia mais: Como é a Educação Pública no Brasil? Dados, importância e história

A mudança dos currículos escolares, que deveriam inserir o ensino de História da África e da cultura afro-brasileira, era uma das reivindicações do MNU. Ademais, o movimento entendia a igualdade na diferença, além de instituir o dia 20 de novembro, data da morte de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, como Dia da Consciência Negra. Ou seja, abandonou-se qualquer vinculação positiva com o dia 13 de maio, data da promulgação da Lei Áurea, marcando outra data histórica como símbolo de resistência.

Como já discutimos aqui no blog, importantes conquistas do MNU incluem a Lei nº 10.639/03, que determina a obrigatoriedade do ensino de História e cultura africana e afro-brasileira, alterando efetivamente a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), e o Estatuto da Igualdade Racial (EIR) no Brasil, instituído em 2010 pela Lei nº 12.288. O Estatuto busca combater a discriminação e a intolerância étnico-racial e, consequentemente, garantir igualdade de oportunidades aos negros (pretos e pardos).

Posteriormente ao marco do EIR, outras importantes políticas foram estabelecidas, como a Lei de Cotas (Lei nº 12.711/12, alterada pela Lei nº 14.723/23). Essa Lei ampliou a compreensão da necessidade de programas especiais para que estudantes pretos, pardos, indígenas, quilombolas e pessoas com deficiência tivessem acesso às instituições federais de Ensino Superior e Técnico.

A Luta por Representatividade e Inclusão

Em 2024, vimos o ator Thiago Fragoso se queixar das poucas possibilidades que atores com seu perfil tinham para fazerem parte do elenco de novelas na Rede Globo de televisão. Segundo o ator, para homens brancos com seu perfil, só haveria uma vaga. Uma vez preenchida esta, as tramas não podiam mais “ter homem hetero, branco…”.

O lamento de Fragoso chama a atenção para uma mudança que tem se tornado cada vez mais visível na TV aberta, inclusive no telejornalismo. Uma mudança que busca maior inclusão, diversidade e equidade racial nas telas, em cumprimento ao Pacto Global que o grupo Globo assinou com a ONU em 2023.

Na contramão da história, o ator não recorda que negros e pessoas LGBTQIAPN+ sofrem com apagamento e falta de oportunidades muito mais graves e há muito mais tempo. Essa leve virada de chave que vimos observando se manifestou primeiramente na educação. Independentemente do campo em questão, foram as lutas dos movimentos sociais, especificamente dos movimentos negros, que, em última análise, nos trouxeram aos contextos atuais em que pessoas não brancas assumem protagonismo social e político.

Conclusão: Coletividade como Força da Luta Antirracista e o Legado da Lei 10.639/03

Os destaques que trouxemos neste texto demonstram como os negros se organizaram para lutar por direitos. Buscamos, assim, evidenciar o ativismo do Movimento Negro no processo de conquistas sociais que visaram inserir a população negra em outros espaços sociais. Essa luta foi se moldando ao contexto político e histórico, de modo a se posicionar cada vez mais estrategicamente para sobreviver em um cenário de opressão e silenciamentos. A cultura, a educação e a arte são trincheiras fundamentais no desenvolvimento dessa trajetória.

Leia mais: Decolonialidade: desvendando o pensamento que desafia a colonialidade

Contudo, é permanentemente necessário combater as hegemonias e os silenciamentos de entidades que não se posicionam ativamente na luta antirracista, que não aderem a ações afirmativas. As conquistas, como a Lei 10.639/03, revelam, principalmente, que é na coletividade que a luta se fortalece e começa a apresentar resultados.

Para Saber Mais

FEFITO. “Thiago Fragoso: o tempo dos privilégios chegou ao fim.” Terra Diversão. Disponível em: https://www.terra.com.br/diversao/opiniao/fefito/thiago-fragoso-o-tempo-dos-privilegios-chegou-ao-fim,fc3d94d98e563b9a553bf72a308fc802i8zk4gfg.html.

Domingues, Petrônio. “Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos históricos.” Tempo, vol. 12, n. 23, 2007, pp. 100-122. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-77042007000200007&script=sci_abstract&tlng=pt. Acesso em 25 mar. 2019.

MELLO, Laudelina Campos. “Instituto Moreira Salles promove homenagem a Laudelina de Campos Mello (1904-1991), pioneira na luta por direitos das trabalhadoras domésticas.” Portal Geledés. Disponível em: https://www.geledes.org.br/instituto-moreira-salles-promove-homenagem-a-laudelina-de-campos-mello-1904-1991-pioneira-na-luta-por-direitos-das-trabalhadoras-domesticas/. Acesso em 16 abr. 2019.

GOLIN, Tau. “Os Cotistas Desagradecidos.” Portal Geledés. Disponível em: https://www.geledes.org.br/os-cotistas-desagradecidos/.

RODA EDUCATIVA. Breve panorama do Movimento Negro no Brasil. Disponível no canal “Roda Educativa”.

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