“Quem lê viaja”. Certamente, você já deve ter se deparado com essa afirmação em enaltecimento do poder da leitura em nossas vidas, na vida de quem se aventura a ler e fazer reflexões.

É possível conhecer novos cenários, ouvir outros cânticos, conhecer falares e costumes tão distantes em tempo e espaço que, não raro, pode nos causar estranheza quando, inadvertidamente, eles nos parecem tão familiares.

Como algo produzido há séculos pode nos dizer tanto, nos dias de hoje? Esse efeito lhe parece familiar? E se fosse possível, como uma máquina no tempo (ou como um clique em hiperlinks), que um livro nos transportasse efetivamente para outros momentos históricos e tivéssemos a oportunidade de encontrar grandes ídolos, gênios da pintura, da música, da literatura, das Artes? 

É exatamente com este mote que é construído o episódio “Meu amigo Vicente” (décimo oitavo, da terceira temporada) do desenho animado Irmão do Jorel, criado por Juliano Enrico e exibido pelo canal Cartoon Network Brasil.

É a partir das relações intertextuais estabelecidas nesta animação que tecerei algumas reflexões acerca das potencialidades de um trabalho pedagógico a ser realizado mais especificamente no âmbito do componente curricular Arte, da área de Linguagens e suas Tecnologias, conforme apregoa a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

Em busca da orelha perdida

Primeiramente, para fins de breve contextualização para quem desconhece o desenho, cabe dizer que o personagem principal nunca é nomeado.

É sendo sempre referido, inclusive por toda sua família, como “o irmão do Jorel”, dada a sua suposta “pequenez” diante da figura solar, irretocável, admirada, enaltecida, quase celestial de seu irmão mais velho; no entanto, ironicamente – mas nada está posto em vão –, ele é o único que não tem voz.

Dito isso, sigamos: no episódio “Meu amigo Vicente”, em decorrência do baixo rendimento nas aulas de educação artística, o Irmão do Jorel passa a receber aulas de reforço escolar de seu pai, que o apresenta à “maior enciclopédia do mundo”, por meio da qual os encontros fantásticos ocorrerão.

Inicialmente, Seu Edson apresenta a seu filho três artistas – Ludwig van Beethoven (1770-1827), William Shakespeare (1564-1616) e Vincent van Gogh (1853-1890) –, que terão suas biografias intercruzadas por uma tecitura ludicamente intertextual.

Durante esse processo de mediação de leitura, um efeito sonífero mágico (o que poderia apontar para uma crítica às maneiras enfadonhas com que a leitura de clássicos é, muitas vezes, promovida na escola) faz com que o personagem principal seja levado ao “Campo de trigo com ciprestes”, título de famosa tela pintada à óleo por Van Gogh em 1889.

Quadro 1 – Três artistas que serão abordados na animação.
Quadro 2 – Efeito sonífero mágico da leitura.

Em uma experiência imersiva fabulosa, o Irmão de Jorel conhece Vicente (o artista frisa que não gosta de ser chamado por Van Gogh), que apresenta três fortes características que estarão bem salientes em todo episódio:

a) não é muito hábil em vender seus próprios quadros (“caracoles, não é à toa que você só vendeu um quadro na vida/pô, você é o pior vendedor que já vi na vida”);

b) fala em um volume muito alto (“eu não tenho uma das orelhas, acabo falando alto sem querer”);

c) apresenta uma variante linguística com construções e verbetes de nossos dias (“foi mal aí/ eu fui roubado/ eu tirei para poder pintar a orelha com mais realismo, no autorretrato; eu ia colocar de volta, mas aí passou um cara correndo e levou”). 

Quais as reflexões que temos

Como é possível apreender dos trechos de fala destacados, são mencionadas relevantes informações referentes à biografia do artista plástico.

Que passa, então, a se articular mais brevemente com a de Shakespeare (o clássico casal Romeu Julieta, que dá nome a sua famosa tragédia, é abordado/importunado por Van Gogh ao tentar vender sua arte.

Eles estão no “Terraço do café à noite”, outra famosa obra do pintor) e, mais fortemente, com a de Beethoven, que compôs muitas sinfonias já acometido pela completa surdez (a quinta sinfonia, por exemplo, é cantarolada por Irmão do Jorel em duas ocasiões no episódio). 

Quadro 3 – Diálogos com Shakespeare e Beethoven.
Fonte (imagem 1): https://i.ytimg.com/vi/ThAkjYwod1g/maxresdefault.jpg
Fonte (imagem 2): https://i.ytimg.com/vi/om3pH7TszAU/maxresdefault.jpg

Todo esse emaranhado de referências sinalizadas na superfície textual da animação nos é apresentado por diversos recursos semióticos, para além do “verbo” – volume do som, cor, movimento, textura, perspectiva etc. –, o que reforça a necessidade de reflexões para textos com essas configurações mais complexificadas quanto a aspectos multimodais.

Uma vez que alusões, menções, metáforas e reflexões são construídas, neste caso, para citar alguns exemplos, por:

  1. feições no rosto das personagens: por que Irmão do Jorel fica com cara raivosa ao cantarolar a quinta sinfonia de Beethoven? Como isso dialoga com a biografia do compositor?
  2. tom da voz: por que van Gogh fala alto? Por que ele é representado como vendedor de quadros? Em que isso se relaciona com sua história?
  3. transição de cenários: por que, a cada viagem no tempo, há sons que aludem a uma ventania, sobrepostos por sons metálicos e com cores coloridas enevoando a tela? Por que esse efeito remete à magia? Quais outros exemplos em que isso ocorre podem reforçar essa memória construída coletivamente?
  4. cenários: quais obras do artista constituem cenários na animação? Quais são contempladas apenas nos quadros que se tenta vender? Qual tela é a única vendida no episódio (em diálogo com a biografia), ela é representada no episódio? Haveria um porquê para algumas figurarem como cenário e outras, não?
  5. figuras pictóricas: por que os personagens de Romeu e Julieta, quando surgem na animação, estão representados em preto e branco? Por que eles destoam das cores vivas que predominam na tela? Por que eles apresentam uma textura “em 2D”, assemelhando-se a um recorte? Por que a orelha perdida de Van Gogh também apresenta esta textura? Por que Beethoven, ao falar, alude a um boneco de ventrículo?
  6. contraste com elementos culturais: por que, em alguns momentos, há menção visual a itens do presente (como um lanche composto por hambúrguer e refrigerante em lata ou coxinhas sendo servidas em recital do século XIX) em momentos do passado? Que efeitos de sentido isso provoca?

Para frisar a necessidade de também ler esses aspectos dos textos, gostaria de retomar, neste momento, o enunciado – “Quem lê viaja” – com que iniciei estas reflexões.

E o faço à luz da provocação com que Magda Soares (2007) constrói sua argumentação no texto “Ler: verbo transitivo”, a saber:

“Ler, verbo transitivo, é um processo complexo e multifacetado: depende da natureza, do tipo, do gênero daquilo que se lê, e depende do objetivo que se tem ao ler. Não se lê um editorial de jornal da mesma maneira e com os mesmos objetivos com que se lê a crônica de Veríssimo no mesmo jornal; não se lê um poema de Drummond da mesma maneira e com os mesmos objetivos com que se lê a entrevista do político; não se lê um manual de instalação de um aparelho de som da mesma forma e com os mesmos objetivos com que se lê o último livro de Saramago. Só para dar alguns poucos exemplos.”

De maneira análoga, para “viajarmos”, ou seja, fazer reflexões e divagamos sobre os sentidos possíveis de um texto, para ponderarmos sobre as razões de intertextos serem construídos.

As reflexões são necessárias para compreendermos como aspectos sócio-históricos e culturais influenciam em uma produção artística. Entre outras razões, é preciso definir o que se lê, definir quais são os propósitos de leitura.

Recorte pedagógico

Neste contexto em que nos inserimos, precisamos ter em mente que o recorte pedagógico que transversa o trabalho com a animação em questão se norteia pela função da Arte e das razões pelas quais é preciso ensiná-la.

O que nos posiciona diante das habilidades que se busca desenvolver nos(as) estudantes quando estes se envolvem/interagem com obras artísticas. Atentaremos mais sobre isso no próximo tópico.

Entre sinfonias e silêncios: as reflexões de Arte

Por “Arte”, no contexto da BNCC (2019), entende-se um dos componentes curriculares que constituem a área de Linguagens, por meio do qual são articulados saberes oriundos de fenômenos artísticos de outras quatro linguagens – Artes Visuais, Dança, Música e Teatro –, no caso do Ensino Fundamental, e pelo qual é possível consolidar e ampliar as habilidades de uso e reflexão acerca dessas linguagens, no caso do Ensino Médio.

Desse modo, na aprendizagem de Arte, é possível o desenvolvimento não só de formas de expressão que manifestem subjetividades, sensibilidades, pensamento e emoções, mas também de interações críticas entre os(as) estudantes que favoreçam “o respeito às diferenças e o diálogo intercultural, pluriétnico e plurilíngue, importantes para o exercício da cidadania” (2019, p.193).

É por essa razão que a Base aponta seis dimensões do conhecimento que, “de forma indissociável e simultânea, caracterizam a singularidade da experiência artística”:

  • criação (o fazer artístico em si),
  • crítica (a articulação entre a ação propositiva e as releituras artísticas da realidade),
  • estesia (a experiência sensível, no diálogo entre o Eu e o Outro),
  • expressão (as possibilidades de manifestação artística),
  • fruição (o deleite no envolvimento com expressões artísticas)
  • e reflexão (o processo analítico decorrente do consumo da arte).

Tendo isso em vista, somando-se ao fato de que a Base também aponta para as potencialidades de conexões entre essas linguagens/dimensões em meio digital, com a mediação de novas tecnologias, torna-se bastante salutar uma proposta de trabalho relacionada ao episódio “Meu amigo Vicente”.

Uma vez que ele propicia trabalhos que promovem essas seis dimensões, como é possível observar das produções do quadro 4 (meio físico) e das potencialidades no uso de filtros digitais que simulam os cenários de obras, assim como ocorre com o Irmão do Jorel em sua viagem.

Quadro 4 – “Autorretrato Com Bandagem e Cachimbo”, “Noite Estrelada” e autorretratos diversos de Vincent van Gogh, recriadas no âmbito do projeto #virearte do Canal Arte 1.
Fonte (imagem 1): https://www.instagram.com/p/CAERhcqnb3J/
Fonte (imagem 2): https://www.instagram.com/p/CQMme8eNhp_/
Fonte (imagem 3): https://www.instagram.com/p/CQCFoRVtQE4/
Quadro 5 – Filtros dos Stories do Instagram, que permitem imersões em cenários de pinturas de Van Gogh.

“Tô ralando forte nesses quadros, dá uma força”: as reflexões da arte e a interdisciplinaridade

Para nos encaminharmos à conclusão destas reflexões, ainda é importante destacar o trabalho interdisciplinar que pode ser desenvolvido a partir de “Meu amigo Vicente”, atentando principalmente para as dimensões da crítica e da reflexão, que precisam estar sempre em “nosso radar” quanto ao ensino de arte, uma das mais pungentes linguagens para viver e recriar realidades. 

No episódio em questão, vemos representadas algumas cenas corriqueiras em nosso cotidiano (considerando, principalmente, um contexto mais urbano), como um artista que se põe a vender sua arte em lugares diversos, incluindo alguns considerados inapropriados para abordagens dessa natureza, o que gera incômodo de muitas pessoas.

Ainda há uma alusão (pela fala do personagem Beethoven, à altura de 10 min do episódio), ao modo como muitos músicos recebem seus cachês por suas apresentações – em forma de refeições, de presentes, de “dar visibilidade ao trabalho” e afins –, em clara demonstração de desvalorização do que é produzido/oferecido.

A biografia de Van Gogh especialmente focada no desenho é uma prova disso: um gênio da pintura, um dos principais representantes de um movimento estético, cujos quadros têm valores inestimáveis atualmente, vendeu apenas um quadro em vida. 

Possibilidades de exploração

Essas reflexões poderiam ser exploradas também em componentes curriculares como História, Filosofia e Sociologia ou mesmo em itinerários formativos relacionados ao cinema, ao teatro, a produções audiovisuais, que privilegiem, por exemplo, o estudo acerca das técnicas de luz/sombra, trilha sonora, cenários, captação, edição etc. 

Ou ainda ampliando o escopo para além das áreas de Linguagens e Ciências Humanas: por que não atentar para objetos de conhecimento de Física, para pensar como a perspectiva/angulação funcionam no manejo de refletores, espelhos e outros recursos para produzir um dado efeito de sentido?

Por que, no âmbito de Química, não atentar para as paletas possíveis a partir de reações produzidas por pigmentação? Como elas poderiam ser extraídas da natureza, a partir de determinadas espécimes, em aulas de Biologia? Por que associamos cores quentes à ideia de aconchego/abraço/conforto e as cores frias, a distanciamento?

E, de maneira semelhante, por que certos acordes nos remetem a medo, à tensão enquanto outros nos levam a uma sensação de leveza?

Esse não seria um bom mote de uma aula de Matemática, sobre números fracionários, em que se busque entender como a relação entre tempos e contratempos em uma composição pode levar a essas sensações de angústia, temor ou conforto? Essas são algumas questões, dentre tantas outras possíveis.

Não é uma maravilha o tanto de conhecimento que poderia ser construído, em conjunto, articulando diversas áreas, diversos(as) professores(as), a partir de apenas um episódio de um desenho animado?

Conclusão

Por questões de espaço, vou me despedindo de você que me acompanhou nessa viagem pelas artes que me/nos atravessam, com mais um convite, emparelhado com o episódio de Irmão de Jorel: o filme Meia-Noite em Paris (de Woody Allen) e a colagem compartilhada pelo perfil Artes Depressão, no Instagram. Que você tenha uma ótima viagem, por aí também!

Quadro 6 – Intertextos que podem levar a trabalhos interdisciplinares.
Fonte (imagem 1): https://moviesense.files.wordpress.com/2012/02/midnightinparis1.jpeg
Fonte (imagem 2): https://www.instagram.com/p/CRxJejXn2yM/

Nadiana Lima 

Doutora e mestra em Linguística e graduada em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Dedica-se principalmente aos estudos relacionados à Linguística Textual de base sociocognitiva, à Linguística Aplicada e formação docente, à Multimodalidade e aos gêneros textuais sob a ótica sociorretórica. Atualmente, integra o Núcleo de Produção de Conteúdo e Formação do e-docente, dedicando-se à elaboração de recursos didáticos de natureza diversa para auxiliar, sobretudo, professores da rede pública.

Para ler

Livro Quem vai achar o tesouro de Van Gogh (Ed. Ática, acompanha Guia do Professor):

Livro O Segredo da Arte (Ed. Ática, acompanha Guia do Professor):
https://www.coletivoleitor.com.br/nossos-livros/os-segredos-da-arte/

Livro Romeu@julieta.com.br (Ed. Saraiva):
https://www.coletivoleitor.com.br/nossos-livros/romeujulieta-com-br/

Livro Romeu e Julieta (E. Scipione): https://www.coletivoleitor.com.br/nossos-livros/romeu-e-julieta/

Livro Mano descobre a Arte (Ed. Ática, acompanha Guia do Professor):
https://www.coletivoleitor.com.br/nossos-livros/romeu-e-julieta/

Livro O Segredo da Arte (Ed. Ática, acompanha Guia do Professor):
https://www.coletivoleitor.com.br/nossos-livros/os-segredos-da-arte/

Para assistir/ouvir

Episódio “Meu amigo Vicente”, na íntegra: https://www.youtube.com/watch?v=-lY8lkCtGO4

Trailer do filme Com amor, Van Gogh: https://www.youtube.com/watch?v=3tslxWf9t5w

Animação com compilação de pinturas vívidas de Van Gogh: https://www.youtube.com/watch?v=Kehkn2aG3l8

Quinta sinfonia de Beethoven: https://www.youtube.com/watch?v=fOk8Tm815lE

Animação “Line Riders” com base na 5ª sinfonia de Beethoven: https://www.youtube.com/watch?v=fCFCj6sD9Ik

Trailer do filme O segredo de Beethoven: https://www.youtube.com/watch?v=hMf_86OJx14

Trailer de filmes Romeu e Julieta (1996 e 2013): https://www.youtube.com/watch?v=QdZ_54KT3AE e https://www.youtube.com/watch?v=t2fy1PIe6_8

Hashtag do movimento #virearte do Canal Arte 1: https://www.instagram.com/explore/tags/virearte

Para saber mais

Ler, verbo transitivo (Magda Soares):
http://tudosobreleitura.blogspot.com/2011/07/ler-verbo-transitivo.html

Glossário Ceale – Verbete “Mutimodalidade” (por Brian Street): http://www.ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/multimodalidade

Glossário Ceale – Verbete “Textos multimodais” (por Roxane Rojo): http://www.ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/multimodalidade