Uma pedagogia engajada é possível? Neste artigo, discutimos a educação enquanto prática da liberdade, buscando refletir a respeito da relação entre teoria e prática, de modo a pensar a necessidade de mudança, e mesmo de transformação, da atividade do(a) professor(a) seja frente ao conhecimento ou frente a sua postura em sala de aula (consigo e com os(as) estudantes).

O debate que fazemos retoma ideias desestabilizadoras tanto sobre o reconhecimento da crise educacional, quanto do fazer docente num contexto em que posturas revolucionárias são urgentes.

Optamos por desenvolver esse debate a partir de uma provocação feita por bell hooks e apropriada a um contexto de crise educacional que é a ideia de que “o aluno não quer aprender e o professor não quer ensinar”.

Ou seja, nos colocamos diante de uma perspectiva nada fácil, muito menos simples, que é reconhecer o nosso papel nesse quadro e, sobretudo, refletir sobre os caminhos e as ações que podemos realizar para transgredir o status quo.

Acompanhamos aqui o pensamento da escritora e feminista estadunidense bell hooks que, em “Ensinando a Transgredir: a educação como prática da liberdade”, obra em que realiza um explícito diálogo com a pedagogia crítica do educador brasileiro Paulo Freire, ressalta a necessidade de que estudantes e professores(as) se percebam como seres integrais numa prática pedagógica revolucionária, essencialmente anticolonial.

Antes ou para além da escola

A ideia de uma pedagogia engajada entende estudantes e professores(as) a partir da inseparabilidade entre corpo, mente e espírito.

Assim, para além dos conhecimentos, eles também possuem suas histórias, culturas, emoções e sentimentos como partes integrantes de suas vidas e não zeram quando adentram o espaço escolar.

Parece fundamental, então, recuperar esses aspectos em um país em que os direitos civis (saúde, moradia, educação, alimentação, segurança, lazer, cultura) costumam ser, no mínimo, negligenciados, principalmente se pensarmos o quão o acesso a tais direitos é mais difícil, ou mesmo inexistente, a certos grupos sociais, como por exemplo, à população negra e periférica.

Para pensar as consequências dessas questões de desigualdade e injustiça no Brasil, retomo o poema “Os miseráveis”, de Sérgio Vaz: 

Vítor nasceu… no Jardim das Margaridas. 

Erva daninha, nunca teve primavera. 

Cresceu sem pai, sem mãe, sem norte, sem seta. 

Pés no chão, nunca teve bicicleta. 

Já Hugo, não nasceu, estreou. 

Pele branquinha, nunca teve inverno. 

Tinha pai, tinha mãe, caderno e fada madrinha. 

Vítor virou ladrão, Hugo salafrário. 

Um roubava pro pão, o outro, pra reforçar o salário. 

Um usava capuz, o outro, gravata. 

Um roubava na luz, o outro, em noite de serenata. 

Um vivia de cativeiro, o outro, de negócio. 

Um não tinha amigo: parceiro. O outro, tinha sócio. 

Retrato falado, Vítor tinha a cara na notícia, enquanto Hugo fazia pose pra revista. 

O da pólvora apodrece penitente, o da caneta enriquece impunemente. 

A um, só resta virar crente, o outro, é candidato a presidente.

O texto de Sérgio Vaz é contundente ao representar não apenas as diferentes origens e destinos para Vítor e para Hugo. Mas, sobretudo, por constatar a leitura e o tratamento desigual que as ações das personagens têm.

A escrita de Vaz denuncia a história de desumanização em que estruturalmente foi posta a pessoa negra no Brasil, país que se constituiu por séculos de escravização e, no pós-abolição, perpetua o negro em lugares de menor valor social e humano.

Consequentemente, isso contribui para a naturalização da pessoa negra como sem sentimentos, sem família, sem história, criminosa, inapta ao conhecimento, ou seja, inferior aos brancos.

Leia também: Para que praticar leituras femininas a partir de escritas pretas?

O conhecimento dessa estrutura de classe e de raça não pode ser desprezado em uma educação que se pretende insurgente.

Entretanto, a escola costuma invisibilizar histórias de vida dos(as) estudantes, exigindo tão somente a reprodução de certos saberes. Além de negar voz a esses indivíduos e, consequentemente, não reconhecer a potencialidade política do ensino.

Uma das explicações para o elevado índice de reprovação ou mesmo de evasão escolar (de acordo com o IBGE, em 2018, 8,8% dos jovens entre 15 e 17 anos de idade estavam fora da escola) pode passar pelo entendimento desses processos de não reconhecimento dos(as) estudantes enquanto sujeitos sociais e políticos. 

É comum a escola também excluir os(as) estudantes que não se adaptam ao sistema de ensino, o qual põe o(a) professor(a) como detentor do conhecimento e o(a) aluno(a) como mero aprendiz que deve geralmente calar e obedecer para conseguir finalizar o curso com êxito. Podemos refletir sobre esses processos a partir do filme “Sementes Podres”, disponível na Netflix.

O longa-metragem apresenta a história de Waël (protagonizado pelo também roteirista e diretor Kheiron), rapaz órfão, sobrevivente de guerra, que vive nos arredores de Paris com a aposentada Monique (Catherine Deneuve), com quem aplica pequenos golpes para sobreviver.

Ele tem sua vida verdadeiramente transformada quando assume o papel de mentor de jovens que foram expulsos do ensino tradicional e se encontram em um projeto de reintegração.

A história de vida dos jovens faz Waël relembrar sua própria história, desde o momento em que perdeu os pais. A vida do pequeno Waël é de derreter os corações mais gelados! 

O projeto social para reabilitação de jovens é coordenado por Victor (André Dussollier) que aceita Waël temporariamente na função de conselheiro, após indicação de Monique (amiga antiga de Victor).

Em um dos diálogos, Victor alerta Waël: “não se esqueça de que uma criança que causa problemas é uma criança com problemas”.

O filme é muito útil, não apenas para questionar todo um sistema econômico, social e político de fato apodrecido, mas também para pensarmos sobre espaços educacionais que percebam seus agentes integralmente.

No projeto, Waël é um ouvinte dos jovens e cria um ambiente de entusiasmo, vivenciando com eles momentos de prazer, dando ênfase ao bem-estar.

Esses aspectos (entusiasmo, prazer, bem-estar) são fundamentais na superação do tédio escolar, nas palavras de bell hooks. O amor também é sentimento indispensável numa prática insurgente e isso está longe de ingenuidade. Na perspectiva de uma educação engajada, é importante lembrar que todo mundo tem algo a ensinar e todos são capazes de aprender.

Estudantes e professores(as) como seres integrais

O entendimento de como eles seres integrais exige algo muito básico, que é o reconhecimento da humanidade desses sujeitos.

Isso implica compreender algo também essencial, que é saber que o sucesso de um processo de ensino e aprendizagem não depende apenas da boa vontade do(a) professor(a). Precisamos lembrar que cada turma é única e que, portanto, estratégias didáticas que funcionaram com um grupo não necessariamente terão o mesmo êxito com outros. 

Esses entendimentos podem nos ajudar tanto no sentido de diminuir uma inquietação inicial de que a nossa prática seja responsável pelo insucesso na educação, quanto para fazer perceber que uma mudança é possível.

Mais que possível, mudar é indispensável, embora não seja nada fácil executar ideias simples e não necessariamente novas. Isso implica que corpo, mente e espírito são tão inseparáveis quanto teoria e prática também o são.

Bell Hooks

Estas são entendidas por bell hooks de modo interseccional, ou seja, uma influencia a outra, uma está na outra. Assim a estudiosa busca ressignificar a prática pedagógica relacionando três orientações: pedagogia crítica, teoria feminista e budismo engajado. 

Podemos ilustrar essas questões, inicialmente, a partir do que nos apresenta o filme “Efeito Pigmaleão”, disponível na Netflix.

A narrativa não trata de expectativas, mas do cotidiano escolar, mostrando com naturalidade as semelhanças entre professores(as) e estudantes que amam, odeiam, sofrem, trabalham, se desiludem, se vingam…

A história se passa em uma escola da periferia de Paris, tendo como protagonistas a conselheira educacional Samia Zibra (Zita Hanrot) e um aluno com problemas, Yanis (Liam Pierron).

Em comum entre essas personagens, há ainda o fato de terem parentes (o pai de Yanis e o namorado de Zibra) privados de liberdade a quem visitam regularmente.

Yanis é apresentado como um agente desestabilizador do sistema de ensino.

Extremamente questionador, provoca os(as) professores(as) não apenas para saber a utilidade prática, real, do que está sendo ensinado, frente à falta de perspectivas para jovens iguais a ele, mas também para explicitar a perversidade do sistema que reúne todos aqueles que são repetentes ou tidos como maus estudantes em uma única turma, o oitavo ano do qual ele faz parte.

Não é o caso de Yanis não ser um gênio, não demonstrar conhecimentos que o destaque dos demais. É o fato de o próprio sistema de ensino impossibilitar que habilidades excepcionais se mostrem.

Falta flexibilidade e os métodos são os mais conservadores possíveis (livro, lição, quadro, repetição). As aulas bastante tradicionais seguem um roteiro de repetir as ideias já estabelecidas; não há espaço para contestação.

Construir o novo

Como vimos no filme “Efeito Pigmaleão”, o problema da falta de interesse e de envolvimento dos(as) estudantes com o ensino-aprendizagem é sistemático, portanto não pode ser solucionado a partir de uma ação individual.

Todos os agentes educacionais estão implicados na construção do novo. Faz-se necessário, então, uma transformação coletiva. Assim, a posse do conhecimento será para todos, assim como a responsabilidade sobre ele. Nisso reside a compreensão freireana de que, para o mundo mudar, é preciso agir e refletir sobre ele.

Um dos entendimentos de bell hooks compreende a teoria, para além de um lugar de cura do qual o professor é o agente, como um modo de a pessoa descobrir o seu lugar no mundo.

Assim, a sala de aula é espaço de partilha de conhecimentos, o que implica conceder ao estudante espaço de escuta. Essa concessão não é um favorecimento, mas um ato que reconhece valor no saber trazido pelo(a) estudante. Esse saber traz consigo inclusive a língua do(a) aluno(a). Ou seja, não se trata de falar dele pela língua do opressor, mas de que ele se deixe falar, fale por si.

Nessa dimensão de uma língua própria dos(as) estudantes, até os textos selecionados podem dizer dela. bell hooks lembra como o rap tem sido útil nesses casos, fazendo a ressalva de não o deixar passar como a língua errada dos negros.

Aqui cabe recuperar a discussão da historiadora Lélia Gonzalez a respeito do “pretuguês”, da presença e influência negra (do tronco linguístico bantu, como o quimbundo e ambundo) no português brasileiro. Gonzalez chama a atenção para o estudo da língua, da origem dos termos utilizados ou atribuídos aos negros, lembrando que esse conhecimento pode evitar avaliações preconceituosas e racistas. 

Conclusão

Por fim, ainda que estejamos cientes de que a discussão desenvolvida por bell hooks, data de 1994, e do contexto norte americano, reconhecemos sua relevância na atualidade, no ensino brasileiro, sobretudo considerando as dificuldades em implementar uma pedagogia anti colonial, uma pedagogia que enfrente as questões raciais no nosso contexto.

Ademais, o debate aqui desenvolvido retoma Paulo Freire em muitos aspectos. Para Freire, a autorreflexão é fundamental; para bell hooks, a auto atualização dos professores é indispensável.

Para saber mais

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 33 ed.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17 ed.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

GONZALES, Lélia. Para compreender a “Améfrica” e o “Pretuguês”. https://outraspalavras.net/eurocentrismoemxeque/para-compreender-a-amefrica-e-o-pretugues/

HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2017.

Jaciara Gomes 

Doutora em Linguística pela UFPE. Atua como professora adjunta na UPE/ Campus Garanhuns, nos cursos de Graduação em Letras e no Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS/CAPES). Realiza pesquisas sobre práticas de letramentos culturais, bem como sobre o ensino de leitura e de escrita. É líder do grupo de pesquisa em Letramentos e práticas discursivas e culturais (LEPDIC UPE/CNPq). Instagram: @lepdic_upe