Se a vida imitasse a arte e, tal qual nas histórias de ficção, alguém tivesse ficado congelado ao longo dos últimos 20 anos e despertasse em pleno 2021, certamente não se surpreenderia “apenas” ao encontrar um mundo ainda pandêmico com os episódios de racismo, machismo e homofobia.

Na verdade, mesmo com metade deste tempo de ausência, esta pessoa fictícia já se perceberia em meio a um ambiente bastante diverso daquele em que vivia. Um universo turbulento, indefinido, mutante e, tal como algo em transformação, maleável.

Afinal, nos últimos anos, nunca se combateu ou, ao menos, discutiu tão abertamente a respeito de questões como machismo, racismo, xenofobia, misoginia, homofobia. 

Se, ao contrário, a vida imitasse a arte, será que estaríamos naquela fase da trama em que todos os conflitos explodem para que possam ser resolvidos e, enfim, dirijam o espectador ao esperado final feliz? É possível que estejamos rumo ao desenlace de intrincados problemas estruturais da sociedade? Isso significaria que estamos próximos do fim, enquanto humanidade?

Complexo exercício retórico e imaginativo a que já se dedicaram alguns estudiosos. Assim como nas melhores obras literárias ou cinematográficas, entretanto, a resposta só chegará mesmo ao final e ninguém, até então, conseguiu spoilers.

Um cenário de constantes mudanças e discussões

Independente dos próximos capítulos, o fato é que estamos em meio a discussões que englobam uma série de temas considerados tabus até pouquíssimos anos.

Beijos entre LGBTQIA+ já não são sofrem mais tanta censura na TV, preconceitos contra nordestinos estão sendo mais rechaçados, as mulheres e os negros encontram cada vez mais visibilidade nos meios de comunicação (embora ainda longe do ideal), sendo epicentro de debates nacionais, e o combate ao feminicídio é uma luta encampada por um número cada vez maior de pessoas.

Recentemente, a advogada e nordestina Juliette Freire que enaltecia suas raízes foi campeã do reality show Big Brother Brasil – campeão de audiência nacional – com recorde de votação. Ainda no BBB, o beijo entre dois homens foi exibido sem cortes em todos os horários da programação televisiva, incluindo o matinal. 

Em outdoors e comerciais de TV ou veiculados em revista, os negros estão onde nunca estiveram: em destaque. Campanhas a respeito da violência contra a mulher ganham adesão das mais queridas celebridades nacionais (homens e mulheres).

Não faltam exemplos de que, mesmo estando o mundo ainda longe do ideal de equidade, justiça e democracia desejados, alguma coisa está acontecendo. O que será?

Evolução ou continuidade? 

De acordo com o professor de história da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Pablo Porfírio, o fato de ser uma revolução ou processo evolutivo depende da perspectiva histórica com que se esteja analisando e enxergando esses processos.

“Particularmente, eu não usaria o termo revolução. Acredito que seja não evolutivo, mas algo caminhando em várias direções. Vai para frente, para trás, para o lado, volta.

O processo histórico tem que ser entendido dentro dessa sua complexidade e, claro, numa visão um pouco mais ampla do que propriamente o que acontece hoje. Todo historiador tem que saber estabelecer estas conexões entre o hoje e o ontem para saber que nada surge do nada.

O que se coloca como novo vem sempre de um processo muito mais antigo, que tem outros caminhos traçados anteriormente”, opina lembrando que estes passos são das lutas de determinados grupos durante muitos séculos. 

“O que vemos hoje talvez seja potencializado pela ferramenta da internet que nos possibilita comunicar lutas, processos, manifestações, mobilizações de qualquer parte do mundo para qualquer parte do mundo.

Isto cria uma visibilidade muito maior, mas o enfrentamento de determinadas estruturas machistas, racistas, já vem de muitos séculos. É construção de processo de autonomia por determinados grupos”, opina.

Renato Athias, Doutor em Antropologia, professor do Departamento de Antropologia e Museologia da UFPE, também menciona o papel da comunicação. “À medida que as sociedades humanas interagem mais, mais comportamentos desta natureza vão aparecendo e são mais fáceis de serem identificados. Coisas que não eram facilmente identificadas antes uma vez que a sociedade, anteriormente, não tinha todos os meios de comunicação. Sobretudo, hoje, temos uma veiculação quase direta com as pessoas”, afirma.

Estamos em evolução?

Athias também não enxerga o momento atual como parte de um processo evolutivo. “Não significa que a dita nossa cultura evoluiu, mas que foi transformada por diferentes concepções. Não podemos falar, por exemplo, simplesmente de cultura pernambucana, mas de diversas que coabitam esta noção territorial de Pernambuco.

É parte da história que é acumulativa, mais do que evolutiva, diria. Porque acumulamos experiências e saberes de outras gerações. Vamos tendo, portanto, essa transformação cultural a partir das nossas fronteiras étnicas, sociais, mas sobretudo de entendimento e compreensão de uma geopolítica, de um entendimento sobre o outro”, exemplifica.

As lutas de poder envolvidas nestas questões 

O professor de história, Pablo Porfírio, também acredita que, embora não estejamos vivendo um momento de inflexão, talvez estejamos passando por uma aceleração dessa luta, de mobilização mais intensa. “Que também acontece ao mesmo tempo em que há uma reação a estes movimentos por determinados grupos, que intensificam mecanismos de manutenção dos seus privilégios.

O caso dos supremacistas, de grandes conglomerados midiáticos, detentores de capital de forma geral e outros grupos que mantém ou tentam manter frente a essa nova aceleração, à nova forma de organização e linguagem que tenta se colocar em torno destas lutas emancipatórias”, afirma. 

Uma tentativa que ocorre de formas diversas, segundo o historiador. Alguns setores reagem de forma brutal, truculenta, violenta e retrógrada e com intimidação, enquanto, por outro lado, grupos já estabelecidos no poder econômico e político tentam se apropriar dessas lutas, como um despotismo esclarecido do próprio do século XIX.

“Abrem-se representações, colocam-se espaços para a população negra, fazem discurso contra o racismo, abrem possibilidade para as mulheres, combatem o feminicídio, mas há determinadas áreas que não são mexidas como estruturas racistas do estado – que dizem respeito ao encarceramento ou criminalização dessa população – estruturas patriarcais – que mantém mulheres com salário muito menor, com a divisão do trabalho não igualitária. Mexer nelas, nesta sustentação do machismo, do racismo, isso é que é difícil”, explica. 

Dilema e herança para as futuras gerações

Uma dicotomia, uma disputa de interesses que precisa ser entendida para além do momento atual. “Os grupos disputam para saber que narrativa vão construir para o futuro. Então, o que vislumbro para os próximos anos é o debate que se coloca no presente acerca do racismo, machismo e homofobia.

Um debate extremamente duro, mas em que tem mudanças importantes dentro deste cenário de racismo, machismo e homofobia. Não dá para dizer, dentro dessa perspectiva, se será melhor ou pior”, acredita.

Para ele, inclusive, a geração de crianças e adolescentes em idade escolar está totalmente perpassada por esses embates. Algo considerado extremamente positivo se mobilizado no sentido de construção da reflexão. “É menos interessante quando se cria apenas um embate para se ter que tomar uma posição e não refletir. Melhor é entender como essa tomada de posição vai se dar a partir de um processo de reflexão e construção dessa posição de forma autônoma por parte dessa criança e adolescente”, sugere Porfírio.

Qual, então, o papel da escola na discussão do racismo, machismo e homofobia?

Segundo o historiador, o papel da escola é construir este processo. “A escola tem que desenvolver, trazer os embates e discussões para dentro dela, oferecendo aos estudantes a possibilidade de construírem um entendimento, terem instrumentos argumentativos e reflexivos sobre estas questões e, a partir daí, construir seus posicionamentos no mundo. Sempre sabendo que são passíveis de mudança a partir do momento que se trazem outros debates, se criam outros instrumentos de análise, de reflexão”, afirma.

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Ou seja, a escola precisa ensinar a ter criticidade e oferecer instrumentos de análise do mundo para que o(a) estudante possa construir essa autonomia de se colocar no mundo a partir do que analisa, da capacidade que tem de refletir. Algo que, segundo o historiador, pode estar sendo prejudicado pelo processo do ensino remoto, da virtualização da escola e das relações.

“Sem sombra de dúvidas, uma questão futura é como essas crianças e o próprio espaço escolar vão lidar com esse processo de virtualização. Neste momento, isso tem se mostrado de forma muito complexa e, na minha opinião, prejudicial às crianças. Não têm contribuído para o desenvolvimento de um processo mais amadurecido, de forma positiva. Tem trazido, inclusive, muitos problemas como psicológico, psiquiátrico e de aprendizado”, acredita Porfírio. 

A escola com o papel de formação

Um papel que é, portanto, menos informativo e mais formativo já que a informação está por aí, disponível em várias plataformas.

“É sobre como o(a) aluno(a) se coloca frente a estas informações, a essa diversidade que vem com esses movimentos. A escola deve oferecer a possibilidade de construir esses instrumentos de leitura do mundo que levem em consideração a relação com essa diversidade e também que os(as) alunos(as) possam se entender dentro desta multiplicidade de lugares, de formas de vida, de se manifestar.

Que, sim, há diferença, por vezes incômodo, e que eles devem procurar a melhor forma de lidar com esta outra forma de viver, de amar, de se expressar. Acho que isso é o papel fundamental da escola”, afirma.

O antropólogo Renato Athias destaca, ainda, a necessidade de que os educadores precisam ser educados para que possam educar as próximas gerações.

“Compreender certas questões presentes no cotidiano dentro desta ideia de globalização, desta forma de olhar imagem, deste entendimento onde a imagem se torna parte do discurso, onde o discurso se conforma com a imagem”, afirma, complementando que vivemos, atualmente, um retrocesso.

“Tanto por parte dos gestores da educação nacional quanto dos legisladores. Temos diferentes concepções em relação à educação e do pensar em gerações futuras neste campo. Temos que aprender, sim, com a história, que nos permite planejar o futuro porque nos permite olhar o passado a partir desta compreensão que se tem hoje”, complementa.

Renato Athias lembra ainda, que, em toda a história, a escola foi o lugar onde se instalou a mudança, as transformações sociais e o entendimento do presente. “O passado permite prognosticar, dar dimensão para o futuro e a escola teve papel importante em todos os sentidos. Se pensar, recentemente, nestes últimos 60 anos, veremos que as grandes mobilizações surgem do movimento estudantil.

Jovem: agente da revolução

Jovens estudantes e grandes personalidades do mundo político atual são pessoas jovens que estão ainda em idade escolar.

Acho que a escola tem o potencial muito grande de fazer a revolução, mas no momento em que estamos aqui no Brasil, falo especificamente deste governo, temos uma escola que está em rédeas, amarrada. Não só ela, mas também o professorado perseguido por uma ideia que não é de entendimento do que seria essa geração futura ou das questões sobre as quais falamos anteriormente. Isto é perigoso”, finaliza. 

Falta muito para a escola cumprir seu papel acerca do racismo, machismo e homofobia? 

De acordo com Pablo Porfírio, “a escola ainda é um modelo muito formativo no sentido de conteúdos e de competição. Está muito no modelo do século XIX de preparação para o trabalho, de disputa para vestibulares e, mais ainda, para um mundo de empreendedorismo que é talvez hoje o novo campo que se abre.

Então, preparam aulas de robótica e empreendedorismo para uma corrida de ver quem chega primeiro, quem vence na vida. E, claro, que uma pauta assim não tem espaço para um modelo mais empático, onde se construa mais essa multiplicidade porque o modelo do vencer na vida, do concurso, é muito individualista”, explica.

Para ele, o modelo de formação escolar que lide bem com essas questões tem que ser de multiplicidade, “de saber que eu só vivo bem se uma grande parcela da sociedade, ou todos, estiverem vivendo bem.

Não posso dizer que sou bem-sucedido porque ganhei, cheguei primeiro ou consegui empreender. Se a grande parcela que está ao meu redor também não consegue, isso não é um modelo de sucesso. Não adianta dizer eu não sou preconceituoso ou racista se esse individualismo vivenciado na prática, no dia a dia, na competição, vai reforçar o que há de machismo, racismo, homofobia e por aí vai”, conclui.

Patrícia Monteiro de Santana

Jornalista formada pela Universidade Federal de Pernambuco em 2000. Com atuações em veículos como TV Globo, Revista Veja e Diário de Pernambuco, além de atuante em assessoria de comunicação empresarial, cultural e política.