abordagem políticas educacionais antirracistas

Um país com o passado colonial como Brasil, com uma história de quase quatro milhões de negros africanos escravizados, que resultou numa herança de mais da metade da população com suas vidas impactadas negativamente em termos de diretos civis (trabalho, educação, moradia, saúde, segurança, educação, alimentação, cultura, lazer), tem uma dívida histórica que deve ser sanada. É nesse quadro que as políticas educacionais afirmativas se fazem necessárias e urgentes, a exemplo da política de cotas raciais na educação.

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A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) realizada pelo IBGE em 2019, mostra que 56,2% da população brasileira se declara negra. Embora sejam a maioria, os negros não aparecem na mesma proporção em lugares/cargos de destaque e de valorização econômica e política.

Pelo contrário, seguem na base da pirâmide social e se mantêm elevados em dados de violência e de maior população carcerária, por exemplo, mas com poucos direitos efetivamente alcançados.

O que o Atlas da Violência nos diz

O que o atlas da violência revela é que, entre 2009 e 2019, a taxa de negros mortos subiu em 1,6%, enquanto a de não negros caiu 33%. Esse mesmo documento mostra que 77% das vítimas de homicídios no Brasil são negros, ou seja, a chance de um negro ser assassinado é 2,6 vezes maior que a de um não negro.

Dados como esses revelam que a população negra permanece submetida à extrema situação de violência e desigualdade. Em razão disso, discutimos políticas afirmativas como ações antirracistas indispensáveis à construção de outra sociedade.

A reflexão que realizamos aqui se dá em perspectiva discursiva e pragmática para, a partir da problematização de discursos que se contrapõem ao mito de democracia racial, como também das ações do Movimento Negro na afirmação de uma identidade negra positiva, bem como da produção acadêmica que reflete sobre os efeitos do racismo sobre a população negra, pensarmos a efetivação de ações afirmativas, como a política de cotas educacionais.

Discursos de ação e/ou omissão no Estado Brasileiro

Entendemos o discurso como prática social, ou seja, é por meio de discurso que somos constituídos e construímos o mundo. Essa ideia compreende uma composição discursiva pautada em pelo menos três elementos: texto, prática discursiva e prática social.

Em diálogo com esse entendimento, retomamos a compreensão pragmática de que “dizer é fazer”, isto é, quando usamos a linguagem, nós agimos no mundo, nos colocamos em movimento nos relacionando com as demais pessoas e com o próprio mundo.

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É por esse viés discursivo que refletimos sobre o Brasil como tendo se estruturado no racismo e, consequentemente, pensamos a necessidade de sermos antirracistas, principalmente porque o país foi formado por ações violentas contra negros e indígenas e segue perpetuando muitas práticas condenáveis contra essas populações.

Para essa reflexão, retomamos a lei mais breve em nossa história, considerando seu alcance e sua importância. Estamos nos referindo a Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888, a Lei Áurea, que possui tão somente dois artigos: 

  • Art. 1º É declarada extinta, desde a data desta Lei, a escravidão no Brasil.
  • Art. 2º Revogam-se as disposições em contrário.

 Com esse ato legal, os negros passaram da condição de escravos à condição de “sem absolutamente tudo”. Nenhum suporte, aparato social, foi concedido à população negra liberta que, abandonada à própria sorte, à indiferença e à violência, teve verdadeiramente que sobreviver como foi possível.

Diferente do que se fez com outros povos que aqui chegaram, como consta no Decreto nº 9.801/1911 que regulamentou o serviço de povoamento do país, não só financiando a vinda de estrangeiros europeus, como ofertando os suportes, utensílios necessários para que aqui eles se estabelecessem e atuassem na agricultura, comércio e indústria.

Resgate da história

Vamos resgatar parte dessa história com a música “14 de Maio” de Jorge Portugal e Lazzo Matumbi, declamada brilhantemente por Matumbi na terceira edição da Comenda Abdias do Nascimento no Senado Federal 

No dia 14 de maio, eu saí por aí
Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir
Levando a senzala na alma, eu subi a favela
Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci

Zanzei zonzo em todas as zonas da grande agonia
Um dia com fome, no outro sem o que comer
Sem nome, sem identidade, sem fotografia
O mundo me olhava, mas ninguém queria me ver

No dia 14 de maio, ninguém me deu bola
Eu tive que ser bom de bola pra sobreviver
Nenhuma lição, não havia lugar na escola
Pensaram que poderiam me fazer perder

Mas minha alma resiste, meu corpo é de luta
Eu sei o que é bom, e o que é bom também deve ser meu
A coisa mais certa tem que ser a coisa mais justa
Eu sou o que sou, pois agora eu sei quem sou eu

Será que deu pra entender a mensagem?
Se ligue no Ilê Aiyê
Se ligue no Ilê Aiyê
Agora que você me vê

Repare como é belo
Êh, nosso povo lindo
Repare que é o maior prazer
Bom pra mim, bom pra você
Estou de olho aberto
Olha moço, fique esperto
Que eu não sou menino

Olhar para a negação de seus direitos fundamentais

Nesse poema-canção, o enunciador retrata com veemência a ausência de cidadania e mesmo de humanidade para o negro no contexto pós-abolição. Esse texto nos permite perceber as injustiças, violências e desigualdades a que foram submetidos os negros nesse período, bem como evidencia a construção de uma autoestima preta, contrariando o que poderia se esperar de quem só conheceu a experiência da escassez.

O poema aponta ainda para o olhar atento do negro a toda negação de direitos, como também para a consciência de sua humanidade e do reconhecimento de seu SER como um ser de direitos, lembrando que isso é o melhor para todos, é indispensável à construção de outra sociedade, como bem argumentou o professor Abdias do Nascimento.

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Sobre esse Brasil construído com sangue indígena e preto, podemos acompanhar, pelo menos, os dois primeiros episódios da série documental Guerras do Brasil.

O primeiro episódio trata das Guerras da Conquista, mostrando como a luta do povo indígena, dizimado desde a tomada do território nacional, persiste buscando a demarcação de terras. Já no segundo episódio, entendemos como aproximadamente doze milhões de negros escravizados foram violentamente trazidos para cá. 

https://www.youtube.com/watch?v=ABO5XI4GZhM

Esse evento apresenta o racismo sedimentando a história do país a partir da Guerra de Palmares. Tais registros nos permitem retomar algumas chagas que ainda hoje são indispensáveis não apenas para repensar o país, mas sobretudo para construção de outro marco civilizatório.

Sobre o persistente genocídio do povo negro

“Genocídio do povo negro”, histórico estudo do professor e ativista dos direitos civis para o povo negro, Abdias do Nascimento, é retomado para entendermos primeiramente a democracia racial como um mito, uma vez que ao negro não foi reconhecida nem mesmo sua humanidade e foi implementada no país uma política de branqueamento que contribuiu fortemente para uma representação social negativa da pessoa negra.

Em seguida, essas discussões se encaminham para mostrar, com base em dados estatísticos, as condições de desigualdades múltiplas a que está submetida a população negra (condições de moradia, saúde, emprego, mortalidade, bem como acesso à educação). 

Nosso foco aqui se volta para os dados educacionais para assim chegarmos à indispensabilidade das cotas. Segundo o PNAD Educação, em 2019, 71,7% das pessoas entre 14 e 29 anos, que não completaram alguma etapa da educação básica (seja por abandono ou por nunca ter frequentado) são negras.

O mesmo documento aponta que 25,3% das pessoas de 15 a 29 anos de idade que não se qualificam, nem trabalham nem estudam são negras. Ademais, a taxa de analfabetismo é 5,3% maior para pretos e pardos. 

Quando pensamos o ensino superior, os dados podem ser ainda maios graves, no sentido de reveladores da desigualdade a que segue submetido o povo negro.

Apenas 28,8% das pessoas negras de 18 a 24 anos estão estudando; destas 16,1% cursam a graduação, enquanto o número de brancos no ensino superior é de 29,7%. Entre os que nessa faixa etária já possuem diploma, apenas 2,8% são pretos e pardos. Esses números não são maiores por causa da política de cotas, Lei nº 12.711/2012, que têm contribuído para a alteração positiva desse quadro.

Discursos sobre políticas educacionais

Os negros foram postos fora do processo educacional brasileiro. A Lei de 1837 – 1839 dá conta dessa exclusão, dessa ação por não educar o povo negro e, consequentemente, privilegiar brancos e descendentes europeus nesse contexto do ensino.

É através de políticas públicas afirmativas que essa realidade passa a ser alterada. Sobretudo, a partir das demandas do Movimento Negro exigindo políticas de reparação históricas das desigualdades contra o povo preto, como a conhecida política de cotas.

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Denunciando a cor da miséria no Brasil, bem como o racismo e a discriminação do povo preto no sistema educacional, o economista Hélio Santos defende políticas públicas de inclusão para combater o círculo vicioso do país que não se percebe como majoritariamente negro.

O professor, em entrevista ao programa Roda Viva, contesta a expressão “cotas”, atribuindo-a à imprensa brasileira, e explica se tratar de uma política de flexibilização do acesso ao ensino: “eu, por exemplo, sou a favor da redução de cotas; já existe, Markun [apresentador do programa], na educação brasileira cotas radicalíssimas de 100% para brancos. Eu proponho que essa cota seja reduzida, para 70, 80%…”.

Hélio Santos denuncia o preconceito camuflado revelando a ausência do negro enquanto uma entidade fundadora, ou seja, indispensável à vida nacional.

O professor discute ainda como a desigualdade racial é o que explica as disparidades sociais que colocam o negro em condição de inferioridade e subserviência. Para superação desse quadro, os negros precisam ser incluídos em outro projeto de nação. As políticas de ação afirmativas se mostram como um caminho que possibilitará a potencialização dos grupos excluídos.

Conclusão

Com essa discussão, buscamos trazer o debate sobre “cotas” para o devido lugar, ou seja, para ser pensado enquanto uma política de reparação histórica. Isto implica entendê-lo como uma questão negra, como bem o fez o professor Milton Santos, também chamado a esse debate durante uma entrevista no programa Roda Viva:

Milton Santos: “O país ainda não descobriu a cidadania, o negro é tratado como inferior” | 1997  

O questionamento trazido pelo professor no debate é o que retomamos aqui: que Brasil queremos? Se o Brasil se pretende outro país, mais justo e igualitário, não pode seguir excluindo as populações não brancas dos espaços de maior prestígio social.

Isso implica ainda retomar o pensamento do professor Hélio Santos para entender que essa decisão passa pelo modo como o Brasil se reconhece e, nesse reconhecimento, precisa lembrar que mais da metade da população é negra. Seguir desconsiderando esse fato é contribuir para a manutenção do grave quadro de violência e desumanidade que só fortalece discursos de ódio e toda sorte de intolerância.

Jaciara Gomes

Doutora em Linguística pela UFPE. Atua como professora adjunta na UPE/ Campus Garanhuns, nos cursos de Graduação em Letras e no Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS/CAPES). Realiza pesquisas sobre práticas de letramentos culturais, bem como sobre o ensino de leitura e de escrita. É líder do grupo de pesquisa em Letramentos e práticas discursivas e culturais (LEPDIC UPE/CNPq). Instagram: @lepdic_upe

Para saber mais:

Atlas da Violência – https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/publicacoes 

NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Editora Perspectiva, 2016.

PNAD Educação https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101736_informativo.pdf