A questão título desta reflexão nos coloca diante de outras: quem está autorizado a falar? A quem permite-se o espaço de escuta? São questionamentos de extrema complexidade, sobretudo porque, como explica Gayatri Spivak, ao subalterno, não apenas falta o direito de fala, mas principalmente o direito de compreensão. Assim nos colocamos diante da necessidade de ler escritas pretas.

A mulher negra, como bem denunciou a filósofa Sueli Carneiro, sofre uma dupla asfixia porque está submetida a limitações políticas, econômicas, sociais tanto por não ser homem, quanto por não ser branca.

Essa dupla asfixia se revela igualmente no campo literário, já que escritoras pretas são as que menos figuram nos catálogos das grandes editoras. Logo, faz-se necessário diversificar os discursos que circulam nas escolas subvertendo a ordem perversa, excludente, racista e, consequentemente, limitada e limitante da sociedade brasileira.

Qual o perfil dos escritores brasileiros?

Muitos são as escritoras e os escritores negros que denunciam dificuldades em ter suas obras publicadas no país.

Conceição Evaristo, que cunhou o termo “escrevivência” (evidenciando ou mesmo inaugurando novas possibilidades para escritas pretas), por exemplo, costuma afirmar que, para mulheres negras, em um mercado editorial hegemônico, “publicar é um ato político”.

Com isso, a autora chama a atenção para como sua escrita demorou a chegar ao mercado, tendo como primeiro leitor o povo negro que tinha acesso aos Cadernos Negros

Buscando entender o abismo que se estabeleceu no campo literário para pessoas negras, podemos lembrar o minucioso estudo liderado pela professora Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília, que traçou o perfil do romancista brasileiro em mais de quatro décadas:

Ele é homem, de classe média, branco, heterossexual e sudestino, mais especificamente nascido no eixo Rio-São Paulo.

Outro dado fundamental que essa pesquisa apresentou mostra como os narradores, os protagonistas e também os coadjuvantes criados por esses escritores apresentam um perfil semelhante, podendo viver em “outras” grandes cidades. 

Nesse cenário, foi possível identificar um crescimento no número de escritoras mulheres, o que não representa necessariamente uma mudança no campo, uma vez que não correspondeu a uma real mudança no perfil dos narradores, protagonistas e coadjuvantes, por exemplo.

Ou seja, também as mulheres parecem ter se apropriado melhor do universo masculino e branco para tematizá-lo mais vezes em sua escrita.  

Quando a questão diz respeito a escritores e escritoras negras, então, os números despencam. Apenas 2% figuram como autores e 6%, como personagens. O que esses dados nos explicam é que, no campo literário brasileiro, vigora um discurso único.

Discurso esse que promove uma imagem também única para quem pode ser escritor no país, bem como termina uniformizando as narrativas que nos são apresentadas. Assim, mais que necessário, é urgente e indispensável romper com esse ciclo, oportunizando a leitura de outras narrativas.

Escritas pretas florescendo no asfalto

Se toda a estrutura do país capitalista periférico organiza-se de modo a seguir aniquilando pessoas negras, os movimentos de insurreição e de resistência, terminam se realizando nas brechas, nos espaços e situações organizados para fazer ecoar vozes negras, como no campo da literatura, por exemplo.

Escritas pretas, enquanto atos de resistência, também são “flores que nascem no asfalto”, como lindamente escreveu Vilma Piedade.

Longe de ser exceção, escritores e escritoras negras existem, são reais, escrevem romances, contos, novelas, poemas… E resistem à invisibilidade e à perversidade que o mercado editorial ainda ajuda a fomentar.

Assim, escritos negros se tornaram periféricos, quando muito, publicados por pequenos grupos que já se fortalecem estrategicamente para subverter a ordem imposta. 

As dimensões continentais do Brasil contribuem para que as dificuldades nesse cenário da literatura se tornem ainda mais perversas, pois escritores e escritoras do norte e nordeste são ainda mais invisibilizados, já que não têm a mesma divulgação para seus trabalhos, muito menos acesso às editoras. Subvertendo o que se coloca como norma, escritas pretas resistem muitas vezes de modo independente.

Odalita Alves

A escrita da recifense Odailta Alves é um bom exemplo dessa luta por se fazer poeta em produções independentes. Poeta negra e feminista, Odailta conta como se faz existir no que lhe é insistentemente negado. Tornou-se leitora das narrativas brancas e únicas que lhes foram apresentadas.

A partir dessas limitantes histórias, foi criando o seu mundo particular, se permitindo viver e ser quem quisesse.

Isso foi até o momento em que a escritora, então adolescente, descobriu que poderia caber no poema, junto a sua avó; ambas cabiam na escrita de Solano Trindade (“Sou Negro/ meus avós foram queimados pelo sol da África/ minh`alma recebeu o batismo dos tambores…”.) que a escola não a apresentou, mesmo o texto tendo sido encontrado “perdido” em um livro didático. 

Odailta, como tantas escritoras negras, lamenta a demora por se constituir poeta. Ela atribui esse encontro “tardio” à falta de contato com escritas pretas, à dificuldade de se perceber possível para além dos limites da cozinha da casa grande.

Sua poesia denuncia as muitas violações de direitos que sofreu e segue a sofrer o povo negro; ela é visceral contra o racismo, em “Nenhuma palavra de amor”: 

Eu não falarei de amor

O meu amor ficou

Do outro lado do Atlântico

Não foi escravizado

E um dia, quem sabe um dia

Ele brotará em poema

Por enquanto, meu verso é edema

Inchaço de dor

Minha poesia sangra

E mancha as páginas brancas

Do livro do colonizador. 

A literatura escrita por mulheres pretas no contexto escolar

Escrita preta é ancestralidade, e esta é a marca identitária para o povo que foi escravizado por mais de três séculos no Brasil. Como sankofa (pássaro africano de duas cabeças), o povo negro vai em busca de seu passado, olha para o que ficou para trás e, assim, projeta o futuro.

A escrita negra revela muito dessa filosofia que se originou em Gana e, posteriormente, se propagou por Togo, Costa do Marfim e África Ocidental.

Escritas negras apresentam narrativas humanas do ponto de vista negro e assim se constituem em um fundamental instrumento na luta contra o racismo.

Quem poderia melhor dizer o cotidiano de uma favela, senão uma favelada como Carolina Maria de Jesus? Em seu diário, cada sobra, cada resto mostra a imposição social que se fazia para ela e para seus semelhantes, mas que ela subvertia pela palavra. A palavra para Carolina também foi arma contra a fome e a desumanização que insistentemente se apresentavam. 

Através da palavra preta, a representatividade de fato pode se fazer. Como que trazendo consigo outras tantas vozes silenciadas, escritoras negras constroem narrativas diversas e apresentam corpos negros a partir de outros olhares.

Carolina gostava da sua cor e chegou a dizer que o cabelo negro era mais educado, onde o colocasse ele ficava. Já o cabelo dos brancos era indisciplinado, saindo do lugar com qualquer movimento.  

O cabelo, tema recorrente para o povo preto, ligado à autoestima, ao sentimento de pertença, utilizado como mapas, também costuma aparecer nas mais diversas escritas pretas.

A escritora fluminense Luciene Nascimento, em “Tudo nela é de se amar”, constrói uma bela imagem para o cabelo da mulher preta: “O cabelo que trava entre os dedos na hora de acarinhar/ que é como se dissesse: se eu te permiti tocar/ tão profundo, então pode permanecer entre/ os meus fios”.

A expressão sob o olhar das vozes pretas

Com escritas pretas, editoras e escolas dizem que pretos podem ser escritores; que suas histórias podem também expressar o mundo, veicular cultura e divulgar as narrativas dos que foram colocados à margem da sociedade e da história.

Pensando a importância de tais questões, sobretudo a necessidade dessas vozes, gostaria de exemplificar com um fato que registrei em 2019.

Fui convidada para atuar como avaliadora em uma mostra de trabalhos de Língua Portuguesa no Instituto Federal de Garanhuns/PE. Avaliei a atividade de retextualização de dois grupos, compostos por homens que tinham entre dezesseis e vinte anos de idade, em maioria, brancos, estudantes de cursos técnicos.

Os alunos retextualizaram a peça teatral “Os dois ou o inglês maquinista”, de Martins Pena (1842), em quadrinhos.

O que apresento aqui para nossa reflexão é o apagamento dos negros, menos do Negreiro (negociante de escravos). Quando perguntei a razão para não aparecerem mais na história recontada, os rapazes argumentaram que só apagaram todas as personagens negras que não tinham fala, portanto, não eram, segundo eles, importantes.

Recontando as histórias dando voz a quem ficou em segundo plano

Uma escola que se pretenda inclusiva, que eduque para a liberdade, não pode continuar silenciando vozes que poderiam compor, com a do escritor branco, hetero e de classe média, um repertório mais diverso e também mais real do Brasil.

Por que não recontar as histórias dando voz a quem ficou em segundo plano? Escritas pretas podem ser utilizadas estrategicamente para valorização da literatura afro-brasileira e da diáspora. Podem ser, então, ferramentas contra o racismo.

Escritas pretas não tratam, nem têm a obrigação de tratar, apenas de questões raciais. Como já posto aqui, o olhar negro é colocado para expressar questões humanas. A mudança do olhar precisa passar pelo reconhecimento dessa humanidade, antes mesmo da autoria.

Que a escola possa, assim, apresentar Maria Firmina dos Reis, Inaldete Pinheiro, Lepê Correia, Miriam Alves, Jovina Souza, Auta de Souza, Noémia de Sousa, Ana Paula Campos, Eliana Alves Cruz, Jarid Arraes e tantas outras.

Para saber mais

Jaciara Gomes

Doutora em Linguística pela UFPE. Atua como professora adjunta na UPE/ Campus Garanhuns, nos cursos de Graduação em Letras e no Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS/CAPES). Realiza pesquisas sobre práticas de letramentos culturais, bem como sobre o ensino de leitura e de escrita.