Como pode ser o ensino da história do Brasil? No seu livro Quincas Borba (1892), Machado de Assis eternizou a frase proferida pelo personagem-título – “ao vencedor, as batatas” –, de maneira que ela rendeu estudos de diversos literatos.

Genericamente, podemos dizer que, de acordo com a maioria destes estudiosos, a frase faz referência aos direitos dos vencedores quanto aos seus prêmios e que “o homem comemora aquilo que lhe é vantajoso ou aprazível, ainda que isso implique a ruína de outros”, segundo a professora de Literatura Brasileira, Ana Maria Lisboa Mello. Resumindo: na luta pela sobrevivência, quem vence é o mais forte. 

A frase de Machado e sua interpretação pode ser relacionada a algo que vai além da obra do autor carioca. Podemos, sem receio de hiperbolizar, trocar a expressão “as batatas” por “relato da história”, quando nos referimos à maneira como a trajetória brasileira, desde o “descobrimento” do país, é ensinada às crianças e adultos.

Ou seja, é dos colonizadores o ponto de vista a partir do qual o passar do tempo em terras nacionais sempre foi contado.

Um relato parcial e, ainda por cima, desestimulante já que a linguagem utilizada costuma ser engessada, nem sempre palatável e, portanto, não das mais atrativas. Falta mais descontração, coloquialismo. Há uma certa movimentação, entretanto, por parte de alguns autores, que vêm buscando sintetizar essa história ou determinados aspectos dela em enfoques e vocabulários mais modernos, acessíveis e diretos.

A história é contada pelos vencedores?

General Duque de Caxias, Getúlio Vargas e Carlos de Lima Cavalcanti são exemplos de denominações de logradouros nos mais diversos estados e cidades do Brasil. São várias ruas, praças, monumentos e espaços públicos que fazem referência a estes famosos brasileiros.

Que a homenagem é para personagens históricos e da nobreza ou fidalguia da colônia ou império, boa parte das pessoas sabe. À pergunta “mas quem foram, exatamente, eles?”, contudo, nem todos conseguem responder ou mencionam vagas referências. 

Quem foram os bandeirantes na história do Brasil?

Bandeirantes são, como ficaram conhecidos, os sertanistas do período colonial. Segundo boa parte dos sites existentes na internet, “pessoas que, a partir do início do século XVI, penetraram no interior da América do Sul em busca de riquezas minerais (sobretudo o ouro e a prata, abundantes na América espanhola), para caçar indígenas com o objetivo de escravizá-los ou visando ao extermínio de quilombos. Pessoas que contribuíram, em grande parte, para a expansão territorial do Brasil além dos limites impostos pelo Tratado de Tordesilhas, ocupando o Centro Oeste e o Sul do Brasil. Também foram os descobridores do ouro em Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso” Fonte: Wikipedia.

O que pouco se destaca na maioria deles é o predominante traço predatório do grupo. Tanto em relação à própria dilapidação das riquezas naturais e minerais quanto à escravização e extermínio de boa parte dos indígenas.

Além disso, segundo Laurentino Gomes no segundo volume da trilogia Escravidão, capítulo 3, eram indivíduos bastante heterogêneos na cosmografia da colônia brasileira, não um grupo homogêneo e resoluto em prol do desbravamento. 

A gana era pelo ouro. Muitos, como os paulistas, já tinham como estilo de vida a perambulação de meses pelos sertões.

Esta frequência, inclusive, fazia com que as autoridades portuguesas suspeitassem que eles já conhecessem as localizações das minas, mas que só revelariam o segredo diante da garantia da Coroa quanto à contrapartida que julgavam ter direitos.

Coincidência ou não, pouco depois de uma promessa de cartas de nobreza e honrarias, por parte do governador-geral do Brasil, elas não tardaram a aparecer.

Como os bandeirantes são vistos no Brasil? Heróis ou vilões?

Ao invés de serem vistos como vilipendiadores ou comerciantes, entretanto, muitos destes homens acabaram virando verdadeiros heróis nacionais. Pelo menos, durante muito tempo. Recentemente, em São Paulo, duas pessoas foram presas por incendiar a estátua de dez metros de altura e vinte toneladas de um dos mais famosos dos bandeirantes: Manuel Borba Gato

Sabe quem era Manuel Borba Gato? fugitivo da lei. Acusado de matar dom Rodrigo de Castelo, fidalgo português administrador-geral das Minas, em 28 de agosto de 1682, tinha se acobertado com seu bando na região do rio das Velhas”, como destaca Laurentino Gomes, concluindo, mais adiante, esta história.

“Em troca da localização das minas, o rei de Portugal não apenas anistiou o bandeirante como lhe cumulou com cargos, honrarias e terras nas quais poderia explorar os depósitos de ouro. Num piscar de olhos, Borba Gato deixou de ser considerado um criminoso fugido da lei e foi imediatamente promovido ao posto de guarda-mor das minas de Caetés, tornando-se fidalgo do rei”, finaliza Laurentino.

Heróis negros esquecidos pela História do Brasil

Em várias das décadas e séculos de escravização dos negros no Brasil, foram eles e os mestiços a grande maioria quantitativa da população da colônia.

Segundo o banco de dados Slavevoyages.org, no primeiro século da colonização, entraram na América Portuguesa cerca de 30 mil africanos escravizados, segundo Laurentino Gomes na mesma trilogia citada (volume II, capítulo 11). Números que se multiplicaram rapidamente depois. 

No final do século XVIII, o Brasil teria a maior concentração de negros escravizados em todo o Novo Mundo.

Censo de 1789, por exemplo, constatou que 49% dos 168.709 habitantes da capitania do Rio de Janeiro eram escravos. Levantamento de 1775, em Salvador, por sua vez, registrou 35.253 habitantes, dos quais 42% eram escravos. Brancos somavam 36% enquanto negros e mulatos livres, 22%.

Em 1798, o Brasil tinha população estimada em 3,25 milhões de pessoas: 48,7% de escravos, 31,1% de brancos, 12,5% de negros e mulatos libertos e 7,7% de índios “pacificados”. 

Diante de um contingente tão vultoso, por que apenas, entre os negros, nomes como Zumbi dos Palmares ganharam projeção no tempo e espaço?

Líderes negros lutaram e libertaram escravos por toda a América Latina muitos anos antes e depois de Palmares, além de terem participados de grandes movimentos da história do país. Dentre eles, João Cândido, líder da Revolta da Chibata; Ganga Zumba e Chico da Matilde. 

Mulheres dentro da luta e fora dos relatos

Da mesma forma, várias mulheres estiveram no epicentro de revoltas, revoluções, comandos e reviravoltas tanto no Nordeste açucareiro, quanto no Sudeste cafeicultor, entre os quilombos e palácios.

Ainda de acordo com o mesmo livro de Laurentino Gomes citado anteriormente, no Brasil escravista, elas aparecem frequentemente “na documentação histórica, em geral escrita por homens, em forma de relatos de viajantes, cartas, regulamentos, memorandos, porém jamais com a importância que mereceram pelos múltiplos e decisivos papéis que desempenharam na construção da sociedade brasileira”, explica.

No Brasil, exemplos como a escravizada e ex-prostituta Rosa Maria Egípcia, venerada como santa negra do Brasil colonial, a princesa Aqualtune e a heroína baiana Maria Quitéria fizeram a história e a diferença. Há, entretanto, pouca menção a estas participações na grande maioria dos livros didáticos. 

Ensino da história do Brasil: novas, adaptáveis e diferentes linguagens

Laurentino Gomes

Em sua trilogia Escravidão, cujo primeiro volume foi lançado em 2019, o jornalista e pesquisador Laurentino Gomes disseca os meandros da escravização dos seres humanos desde antes do comércio negreiro. Isto porque essa prática remonta à Antiguidade.

Tanto que a palavra escravo vem do latim “sclavus”, que significa “pessoa que é propriedade de outra”, e de “slavus”, que significa “eslavo”, pois muitas pessoas desta etnia foram capturadas e escravizadas em outras épocas.

A informação é de Alberto da Costa e Silva, ex-diplomata, membro da Academia Brasileira de Letras e autor do livro “A enxada e a lança”, considerado um dos mais completos estudos sobre o continente africano.

Como resultado de leituras, pesquisas e observações feitas ao longo de seis anos, além de viagens por 12 países e três continentes, Laurentino traçou um amplo panorama desta história desde este momento até as consequências pós-abolição da escravatura no Brasil. O segundo livro foi lançado neste ano de 2021. A previsão é que o terceiro seja disponibilizado em 2022. 

Todas as informações, tabelas, inventários, gráficos, listas são levados ao leitor quase como se ele estivesse tendo acesso a um material ficcional, no sentido da linguagem fluida, atraente e despojada de academicismos.

Uma revisão do ponto de vista do qual a história é contada, pois detalhando martírios sofridos por índios e negros escravizados, dizimados e literalmente, jogados aos tubarões pelos mares em que o tráfico era intenso. Por esta nova ótica, também se reconfigurou a utilização deste vocabulário mais direto e assertivo.

História do Brasil para ocupados

Esqueça o título. Ele não faz jus ao conteúdo. A adjetivação “ocupados” estaria mais adequada para pessoas que vivem a toda velocidade dos tempos atuais, no que vai além da falta de tempo.

O livro, organizado por Luciano Figueiredo, traz artigos de 66 historiadores do país que enfocam nos caminhos e descaminhos destes mais de 500 anos, episódios marcantes e personagens fascinantes de várias épocas e tempos. Alguns já mencionados ou notoriamente conhecidos como Pedro Álvares Cabral, Chico Mendes, Maurício de Nassau e JK.

Dentre as mulheres, famosas e celebradas como Anastácia, Leopoldina e Princesa Isabel e outras menos célebres como Maria Quitéria.

O formato inovador não segue, necessariamente, uma linearidade, buscando destacar os grandes personagens e acontecimentos da história do país. Além do que os aspectos fundamentais de nossa formação social e cultural, como a escravidão, os encontros entre crenças, a sexualidade, a música, a língua.

A leitura é prazerosa, com pesquisa aprofundada que trouxe à tona, também, fatos curiosos e detalhes pitorescos.

A Cara do Rio: não indicado para menores

O objetivo de retratar a “carioquice” da dita cidade maravilhosa em seus variados aspectos foi cumprido pelos autores Ricardo Amaral e Raquel Oguri.

Os interessados na história do país como um todo, entretanto, não ficarão decepcionados com os primeiros capítulos em que é descerrado um panorama do que portugueses, negros e indígenas andaram fazendo por estas terras desde os primeiros anos.

Há uma coisa, no entanto, que merece atenção rigorosa: não se trata de um livro para crianças em idade escolar.

Os voltados à instrução de adultos podem fazer melhor uso dele, visto que a linguagem passa do coloquial à mais popular mesmo, no sentido de incluir até algumas palavras de “baixo calão”. Mas o que é interessante justamente porque esse viés mais cômico e descontraído pode fazer com que a absorção das informações seja mais orgânica.

Entrevista Marina Claudino – Professora de História:

A lembrança que tenho dos livros didáticos na escola, meados dos anos 80 e 90, era de que eles traziam uma visão um tanto quanto tendenciosa e maniqueísta, como se refletissem a ótica dos colonizadores.

Os bandeirantes eram tratados como heróis, os abolicionistas como idealistas sem interesses materiais etc. Além disso, a extinção das comunidades indígenas e a exploração do trabalho escravo não traziam as cores de crueldade que poderiam ou deveriam ter.  Na atualidade, isso continua assim ou mudou em algo? 

A sua lembrança reflete a visão de História Escolar que predominou por muitos anos, uma história fatalista, que não problematiza e que, acima de tudo, é moldada a partir da visão dos vencedores.

Ao invés de incomodar e estimular a mudança, é uma história que acomoda e contribui para a manutenção do status quo. Sem dúvida, essa realidade tem mudado. Na historiografia acadêmica esse processo já está bem mais adiantado, mas, aos poucos, está conquistando o ensino escolar de História.

Muitas coisas mudaram, mas o que posso pontuar de mais emblemático é o fato das vozes terem se pluralizado.

Hoje, muitos livros didáticos trazem a narrativa histórica para além da oficial e dos vencedores, têm um esforço de demonstrar a realidade de outros atores históricos e setores sociais.

É um processo, porém, que está apenas começando. Ainda há um longo caminho a percorrer, sobretudo no que tange a visão eurocêntrica dos nossos livros didáticos e do próprio Ensino de História. Mesmo depois da Lei 10.639 de 2003, o ensino de História da África ainda é muito tímido. 

Livros como a trilogia Escravidão de Laurentino Gomes, e A História do Brasil para Ocupados, organizada por Luciano Figueiredo, trazem um enfoque mais redirecionado e uma linguagem mais acessível, direta, coloquial e sem tantos academicismos. Acha que este é o caminho?

Leituras mais “palatáveis” e acessíveis são sempre muito bem-vindas, talvez sejam o ponto de partida, mas não podem ser consideradas a solução. Mesmo porque, na maioria das vezes, essas são narrativas apenas simplificadas e não novas.

Muitas possuem aquela mesma visão tradicional, aqueles mesmos heróis do passado, sem nenhuma problematização, mas apenas com uma linguagem mais acessível. Às vezes, é só o velho de roupa nova. 

Com a globalização e a distribuição mais disseminada dos recursos tecnológicos, como o ensino da história pode usufruir destes para crianças menores e adolescentes?

O ensino, em geral, está tendo muitos ganhos com a disseminação das novas tecnologias e com a maior circulação de informações.

O ensino de história também ganha com isso em vários sentidos. Por exemplo, poder levar meus/minhas estudantes a um museu e termos a real sensação de passear pelas suas alas, sem sairmos da sala de aula.

Por outro lado, acho que o ensino de história também tem muito o que contribuir com as novas tecnologias, principalmente no que se refere à desconstrução de fake news e revisionismos inadequados.

Os novos tempos trouxeram uma realidade engraçada, como a necessidade de termos aulas para estudar notícias que estão sendo veiculadas pela internet, buscando e discutindo as suas fundamentações históricas. 

Como fazer com que aspectos políticos, socioculturais e econômicos que fazem parte da história do país sejam perceptíveis na vida prática, extracurricular do estudante?

A história só faz sentido quando ela é viva, quando é capaz de interferir no presente, caso contrário, não passa de mera curiosidade. Por isso, é fundamental estudar a história na perspectiva de problemáticas do presente, buscar explicações no passado.

Sempre digo aos meus alunos: “são as nossas inquietações do presente que nos movem para buscar explicações no passado”. Dessa forma, estudar história, além de ser instigante, empolgante, se torna socialmente importante, pois conhecendo as origens das problemáticas do presente podemos buscar soluções. 

Acredita que o panorama geral da situação brasileira na atualidade poderia ser diferente se as pessoas tivessem mais conhecimento do nosso passado? 

Sem dúvida alguma. A História tem um papel importante que é o de desnaturalizar comportamentos, preconceitos e situações sociais. A história é capaz de olhar para a sociedade e ver além da superfície, do reboco. É capaz de enxergar as vigas de sustentação que erigiram a nossa nação.

Por exemplo, se as pessoas tivessem acesso à história da escravidão no país, se pudessem ter a compreensão do quanto 388 anos de escravidão repercutiram na formação da identidade nacional, se soubessem o quanto a nossa abolição foi incompleta, os discursos que invalidam a luta do Movimento Negro não teriam tanta aceitação.

Para saber mais:

FERNANDES, Fernando Roque. Bandeirantes. InfoEscola: navegando e aprendendo. Disponível em: <https://www.infoescola.com/historia-do-brasil/bandeirantes>. Acesso em: 1 ago. 2021.

SANTOS, Ale. Os heróis desconhecidos da escravidão. Superinteressante. 24 out. 2018. Disponível em:
https://super.abril.com.br/especiais/os-herois-desconhecidos-da-escravidao. Acesso em: 1 ago. 2021.

Patrícia Monteiro de Santana

Jornalista formada pela Universidade Federal de Pernambuco, em 2000. Com atuações em veículos como TV Globo, Revista Veja e Diario de Pernambuco, além de atuante em assessoria de comunicação empresarial, cultural e política.