Não apenas “todo carnaval tem seu fim”, como também os anos e seus 365 dias, formato como a maior parte das civilizações divide e lida com o tempo. Ao longo dos séculos, o entendimento e a consequente organização/domínio do seu entorno por parte do homo sapiens foi um aprendizado típico e exclusivo da nossa espécie, como bem explica Yuval Harari em seu livro Sapiens: uma breve história da humanidade (2014).

Aprendemos a compartilhar um conceito de coletividade que impulsionou todas as demais conquistas. A partir de então, o céu deixou de ser o limite e o homem adentrou o espaço e pisou em seu satélite.

Diante desta contextualização, parece inconcebível que, em meio a tantos desbravamentos, ainda esbarramos em algo bem mais simples: nós mesmos. Não entender, aceitar ou, no mínimo, respeitar o outro em sua essência, opções ou características segue sendo um desafio. 

Sete pulinhos, branco, missa do Galo e Iemanjá. Tudo junto e misturado

Desde os tempos mais antigos, a ignorância a respeito do outro resultou em dor, tristeza e até mesmo em morte. Na Idade Média, por exemplo, muitas mulheres comuns com conhecimentos, práticas e uso de ervas e suas propriedades eram taxadas de curandeiras, bruxas ou feiticeiras, sendo punidas por isso simplesmente por agirem de forma diferente do modus operandi reinante. 

Será que estamos vivendo novos tempos e podemos ter esperança de um futuro mais harmônico? Vejamos: temer passar em baixo de escada ou associar determinado número a bons ou maus auspícios; reter sorte ao encontrar um trevo de quatro folhas ou azar ao quebrar um espelho são hábitos e superstições adquiridos de diversos povos, como celtas, gregos ou romanos em variados períodos de tempo.

Esses costumes, geralmente, nunca têm sua origem questionada, bem como o hábito de utilizar roupas brancas no réveillon, pular as sete ondas na beira da praia ou jogar flores ao mar. O que talvez nem todos saibam é que o uso da cor mais clara, assim como a oferta à Iemanjá, remete aos cultos africanos.

Seriam, então, as festas de fim de ano um símbolo de esperança de que a falta de importância concedida à origem/história/característica de alguns costumes possa traduzir-se em paz e harmonia? Que o hábito tipicamente brasileiro de vestir branco, dar os sete pulinhos, oferecer flores a Iemanjá e, depois, assistir à Missa do Galo ao chegar em casa possam ser uma espécie de simbologia da harmonia entre os povos? Que os tempos vindouros respondam positivamente. 

O perigo de uma história única sobre intolerância religiosa

Em seu livro Na Minha Pele, Lázaro Ramos questiona o fato de as pessoas, constantemente, referirem-se à África como um país. Ele menciona o fato de costumarmos dizer que viajamos para Portugal, Espanha ou Itália e não à Europa, genericamente. Quando o destino é Angola ou Nigéria, entretanto, costuma-se afirmar que se vai à África.

O fato de o preconceito racial estar tão enraizado em vários povos, inclusive o brasileiro, não remete somente ao tempo da escravatura, mas a isso que o autor deixa explícito em sua observação: a desfragmentação da identidade africana. Algo também abordado pela autora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, em seu livro Americanah.

Nele, Adichie denuncia a construção de uma história única sobre a identidade africana, por parte dos ocidentais brancos. Vivemos em uma sociedade onde é corriqueira a contação de histórias únicas sobre um indivíduo ou grupo de pessoas que, à força de serem repetidas, acabam por parecer definitivas.

Dessa forma, essa história única serve para descredibilizar “minorias” em detrimento de um só povo. A falta de equilíbrio de narrativas, experiências e realidades diversas é, portanto, campo propício para o preconceito e a intolerância. Inclusive, no ambiente escolar. 

Intolerância religiosa nas escolas 

Em julho deste ano, em Salvador, uma ialorixá denunciou que sua filha de santo, de 13 anos de idade, foi impedida de entrar na escola onde estuda por estar vestida com roupas próprias do candomblé, sua religião. A questão é que, de acordo com ela, a adolescente estava em “regime religioso” (ou resguardo) e não poderia utilizar a farda.

Um caso complexo, em que a questão pessoal da jovem e a regra básica de fardamento da instituição de ensino entraram em desarmonia. Nem sempre, entretanto, precisa haver um confronto tão claro de interesses para que haja problemas ou intolerância de cunho religioso nas escolas do País.

Em 2018, por exemplo, foram registrados sete casos no Rio de Janeiro, de acordo com dados da Secretaria de Direitos Humanos do Estado. E, ainda assim, o órgão salienta a questão da subnotificação.

As leis de alguns estados acerca da intolerância religiosa

Prova do quanto o quantitativo de casos não é irrelevante é o fato de o estado do Rio de Janeiro ter criado mecanismos para facilitar as denúncias, como o serviço Disque Cidadania e Direitos Humanos (0800 023 4567).

Além disso, promulgou uma Lei específica, de nº 9.210 de 11 de março de 2021 (embora haja uma Lei Federal que já abarque as questões estaduais).

De acordo com ela, “fica instituída, no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, a política de combate à intolerância religiosa no ambiente escolar, com o fito de regulamentar o Capítulo III da Lei nº 8.113, de 20 de setembro de 2018, que cria o Estatuto Estadual da Liberdade Religiosa e dá outras providências”. 

São Paulo também possui a Lei de nº 17.346, de 12 de março de 2021. Destina-se a combater toda e qualquer forma de intolerância religiosa, discriminação religiosa e desigualdades motivadas em função da fé e do credo religioso que possam atingir, coletiva ou individualmente, os membros da sociedade civil, protegendo e garantindo, assim, o direito constitucional fundamental à liberdade religiosa a toda população do Estado de São Paulo. 

Pernambuco e a Legislação

Rosália Soares, técnica formadora de Ensino Religioso na Secretaria Estadual de Educação de Pernambuco, lotada na Gerência de Políticas Educacionais dos Anos Finais do Ensino Fundamental (GEPAF), lembra que o Brasil, enquanto país signatário da ONU, comprometeu-se com a Declaração de Princípios sobre a Tolerância, aprovada pela UNESCO no ano de 1995.

Além disso, o Código Penal Brasileiro (CP), enquanto norma jurídica de âmbito nacional, regulamenta os atos considerados como infrações penais.

O Estado de Pernambuco, enquanto unidade federativa, está subordinado a ele. “Neste sentido, o art. 208 do CP determina que escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso pode conduzir à pena de detenção (um mês a um ano) ou multa”, afirma.

Ela acrescenta que, para além desse dispositivo jurídico de âmbito nacional, Pernambuco estabeleceu várias datas comemorativas no calendário de eventos.

“O objetivo é despertar e incentivar a população do Estado à reflexão e ao debate sobre a importância de acabar com o preconceito religioso”, esclarece Rosália.

A técnica cita, ainda, o Decreto nº 30.362, de 17/04/2007, que criou a atual Gerência de Políticas em Educação Inclusiva, Direitos Humanos e Cidadania. Sob a coordenação da Secretaria Executiva de Desenvolvimento da Educação (SEDE), tem como objetivo principal “discutir e propor estratégias de fortalecimento das Diretrizes Curriculares para a Educação em Direitos Humanos, Educação Especial na perspectiva inclusiva, Educação para as relações Étnico-Raciais”, dentre outros temas, sempre articulada com as Gerências Regionais de Educação (GREs) e escolas.

Mais informações no site: <http://www.educacao.pe.gov.br/portal/?pag=1&men=179>

* 21 de janeiro: Dia Estadual de Combate à Intolerância Religiosa e ao Vilipêndio Religioso, pela Lei nº 17.068, de 7 de outubro de 2020.  

*6 de fevereiro: Dia Estadual da Juventude Negra, instituído pela Lei nº 14.399, de 22 de setembro de 2011.

 * 15 de março: Dia Estadual de Combate à Intolerância no Ambiente Escolar, estabelecido pela Lei nº 17.428, de 30 de setembro de 2021. 

*25 de maio: Dia Estadual da Liberdade Religiosa, mesma data do Dia Mundial da Liberdade Religiosa, instituído pela Lei nº 15.102, de 20 de setembro de 2013.


Como fazer uma denúncia de intolerância religiosa

Estudiosos do tema apontam a subnotificação como um entrave no combate à intolerância religiosa nas instituições de ensino. Em Pernambuco, a Secretaria de Educação e Esportes disponibiliza o serviço de ouvidoria que pode ser acionado por telefone (0800.286.8668). Ou por meio de preenchimento de formulário, no site da Secretaria de Educação e Esportes.

Por essas duas vias, é possível fazer denúncias ou efetuar um pedido sobre qualquer situação que envolva a educação, inclusive intolerância religiosa.  A par do assunto, a ouvidoria encaminha a denúncia ou relato para as gerências, por competências.

São elas que atendem ao pleito com as devidas providências e retornam com o caso solucionado ou com propostas para a ouvidoria ou para as Gerências Regionais de Educação (GREs).

Ferramentas governamentais para a sala de aula

De acordo com Rosália Soares, o Plano Estadual de Educação (2015-2025), apresenta estratégias de combate à violência, à discriminação, ao racismo, à xenofobia e a intolerâncias correlatas.

Ela conta que a Secretaria de Educação e Esportes de Pernambuco (SEE-PE) também implementou o Currículo de Pernambuco. “Trata-se de um compromisso para uma abertura de combate à intolerância, cujo trabalho converge para a sensibilização da comunidade escolar”, declara Rosália.

Segundo ela, as escolas podem trabalhar para implementar uma política proativa e preventiva em relação ao combate à intolerância religiosa, implementando este Currículo de Pernambuco em todos os componentes curriculares e abordando os temas transversais, que perpassam várias dimensões sociais, históricas, culturais e éticas. São eles:

  • Educação em Direitos Humanos;
  • Direitos da Criança e Adolescente;
  • Educação das Relações Étnico-raciais;
  • e Ensino da História e Cultura Afro-brasileira, Africana e Indígena e Diversidade Cultural.

Quando e como o preconceito começa

Rosália Soares cita uma famosa frase de Nelson Mandela: “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou, ainda, por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar”. 

Cabe então, antes de falar, propriamente, sobre intolerância religiosa, perguntar como e quando nasce o preconceito? Em que fase da vida e por quê? A psicóloga Betânia Lira, terapeuta de casal e de família, lembra que a criança não nasce intolerante.

“Ela torna-se a partir da educação que recebe por parte dos seus cuidadores ou pais. Pessoas que convivem com ela e que transmitem o que aprenderam, o que carregam do seu sistema familiar. Que trazem estas coisas como valores. E, dependendo da forma como essa transmissão é realizada, pode soar, para a criança ou adolescente, como se esses valores fossem a única forma de ter uma religião”, afirma.

Betânia classifica a intolerância religiosa como a falta de habilidade e de vontade de reconhecer e respeitar as diferenças das crenças do outro.

Algo repassado aos filhos, às vezes, sem nem mesmo a noção de que está sendo feito. “Acredito que os pais, ensinando os valores em que acreditam, mas também a respeitarem o outro, com certeza gerarão maior compreensão e aceitação nas novas gerações”, ensina.

O início do preconceito na sociedade

De acordo com o professor de História da Universidade Católica de Pernambuco, Fábio Cabral, historicamente, não se pode precisar quando houve o início da intolerância religiosa nas sociedades.

“Nas civilizações antigas, já havia estas formas de preconceito. Quando os vencedores conquistavam os povos vizinhos, por exemplo, destruíam templos, toda a herança cultural. É uma coisa que vem de muito distante”, afirma, lembrando que a religião católica surgiu na Idade Antiga, firmou-se na Idade Média, mas as questões de preconceitos religiosos não datam desta época. “As pessoas sempre viram o outro com diferença. Na Antiguidade, no Egito, na Pérsia, na própria Grécia, em Roma. Quem não era romano, grego ou nasceu em outra civilização, era o estranho”, relata. 

O fato de que, hoje, boa parte dos casos de intolerância acontecem contra os adeptos das crenças de matrizes africanas no Brasil, deve-se, segundo ele, também por questões históricas.

“Muitas vezes, pessoas que não conhecem o outro, acham que sua cultura é melhor. Isto gera consequências. No momento, adeptos de matrizes africanas são, sim, os mais susceptíveis, desde o momento da escravização deste povo quando eles eram os estranhos e sua religião não foi aceita. Vale lembrar, entretanto, que também existe muita intolerância entre os cristãos”, afirma.

A importância do debate desde cedo, no ambiente escolar

A psicóloga Betânia Lira lembra que religiosidade é mais uma questão da família do que do Estado ou da escola.

“Cada um sabe os valores em que acredita e que quer passar para os seus filhos. Na fase adulta, eles formam suas próprias opiniões, mas, antes disso, as “importa” dos pais ou dos cuidadores. Acho o trabalho no ambiente escolar pertinente, mas, no meu ponto de vista, é preciso ter muito cuidado. As pessoas destinadas a tratar deste assunto com os alunos devem ser, de fato, maduras e imparciais. Cada um de nós tem sua subjetividade, valores, princípios e acredito que um professor, por si só, já é uma figura de autoridade. Toda figura de autoridade influencia, de alguma forma. Então, essa discussão em sala de aula, se houver, deve ser no sentido de trazer consciência quanto a esta questão do respeito, de entender que cada um é um, com seus valores, princípios e núcleo familiar”, sugere. 

Fábio complementa afirmando que, para ele, a “receita” é conhecimento. “Enquanto acharmos que somos melhores do que o outro, estes preconceitos existirão. Humanos precisam, sobretudo, se reconhecer como iguais”, finaliza.

Um sentimento de esperança

Quando a questão é do universo das crenças, a intolerância se faz presente em variados contextos. Será, entretanto, que as pessoas percebem o quanto incorporam os mais variados costumes, ritos e tradições em hábitos tão arraigados. Como exemplo, nos rituais de festejos do final do ano e quanto isso mostra a total falta de sentido em qualquer tipo de comportamento intolerante?

Depois de quase dois anos de um processo pandêmico que unificou praticamente todas as nações em torno de sentimentos como dor, tristeza e revolta, será que já não passou do momento de nos unirmos também em prol de sentimentos de irmandade, paz e bons anúncios? Que façamos do futuro o tempo de vivermos algo além da tolerância. Porque não basta tolerar, é preciso entendimento e harmonia! Amém, Shalom, Axé!!!

“Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos. Não há hoje, entretanto, no mundo, um muro que separe os que têm medo dos que não têm medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós, do Sul e do Norte, do Ocidente e do Oriente”.
Mia Couto

Patrícia Monteiro de Santana

Jornalista formada pela Universidade Federal de Pernambuco em 2000. Com atuações em veículos como TV Globo, Revista Veja e Diário de Pernambuco, além de atuante em assessoria de comunicação empresarial, cultural e política.