Em matéria do dia 3 de novembro de 2021, a revista Isto É Dinheiro publicou uma notícia que entristeceu muitos saudosistas ou ainda adeptos dos jogos de tabuleiro que fizeram sucesso nas décadas de 80 e 90: brinquedos como Detetive, Cara a Cara, Jogo da Vida e Combate estão na lista dos que devem sair das prateleiras.

Isso porque, após quase 15 anos de disputa na Justiça com a americana Hasbro, a brasileira Estrela, fabricante desses jogos, pode ter de retirá-los de circulação às vésperas do Natal. A empresa nacional ainda terá que devolver os registros de propriedade industrial dos brinquedos da Hasbro e pagar os royalties devidos para a empresa pelo uso, sem autorização, de propriedade intelectual desde 2007. A dívida da Estrela com a Hasbro ultrapassa R$ 64 milhões.

Esses brinquedos prestes a desaparecer fazem parte da memória afetiva de muitos adultos, a exemplo também de Banco Imobiliário, Perfil, Imagem&Ação e tantos outros. Objetos que trazem à lembrança momentos de reuniões divertidas com familiares e amigos. Trata-se de um costume que descende de nossos antepassados, quando jogos de tabuleiro se tornaram alternativa de diversão, provavelmente desde as primeiras civilizações, nos anos 5.000 a.C, na região conhecida como Mesopotâmia.

Quais são os benefícios de jogar jogos de tabuleiro?

Natália Lima, psicóloga, neuropsicóloga, pós-graduada em Terapia Cognitiva Comportamental para Crianças e Adolescente e pós-graduanda em Desenvolvimento Infantil, explica por que essas brincadeiras divertem há tantos anos e por que, além disso, desempenham uma função essencial no desenvolvimento social, emocional e cognitivo dos indivíduos. Segundo ela, isso se deve à “interação” entre os jogadores.

“Além disso, do ponto de vista emocional, os jogos passam a ser uma boa estratégia de regulação das emoções, e também de tolerância à frustração. Afinal, como já sabemos, nem sempre ganhamos. Do ponto de vista cognitivo, também temos a possibilidade de desenvolver habilidades. Uma delas, a de atenção. Já temos no mercado, inclusive, alguns jogos com essa proposta de desenvolvimento cognitivo de atenção”, afirma.

Os Jogos de Tabuleiros continuam vivos e mais complexos

Para quem acredita que esse tipo de diversão não tem mais tanto espaço no mundo digitalizado, ledo engano. Novidades, vendas e até campeonatos e colecionadores de jogos analógicos nunca deixaram de existir. Prova da permanência desse sucesso são as famosas luderias (bares especializados em jogos de tabuleiros) mais comuns no estado de São Paulo, mas presentes em todo o país.

Além disso, as versões online dos jogos clássicos contam sempre com muitos jogadores. Sem contar que o mercado se repaginou, com diversos boardgames sendo criados por plataformas de financiamento coletivo (crowdfunding) ou colaboração coletiva (crowdsourcing). 

Porque os jogos de tabuleiro estão mais presentes durante a pandemia?

É fato que o isolamento social advindo da pandemia da Covid-19 trouxe um novo significado para os jogos de tabuleiro, tradicionais ou não. Divulgadores de empresas do ramo de jogos e entretenimento afirmam que já sentiram diferença na procura por esses produtos desde que a pandemia começou, inclusive nas plataformas de venda online.

Claro que mais busca não necessariamente reflete em maior quantidade de vendas, principalmente neste período pandêmico. A movimentação, entretanto, demonstra um interesse maior nesses produtos que vão além do passatempo. 

Pensando à luz do momento pandêmico que estamos vivendo, os jogos ainda cumprem uma função específica. Afinal, os humanos, há séculos, costumam utilizá-los para passar por momentos de crise. “O nosso cérebro não consegue pensar, nem fazer duas coisas ao mesmo tempo.

Vamos à prática disso: tente escovar os dentes e beber água ao mesmo tempo. Para fazer uma coisa, você terá que parar outra. Da mesma forma, os jogos acabam sendo uma estratégia de fuga durante as crises.  Se por um lado, isso permite viver outra realidade durante o jogo, também nos ensina como lidar de forma assertiva na resolução de problemas, e em momentos de crise, como a pandemia, por exemplo”, afirma Natália.

Além disso, por serem projetados para ser jogados em grupos, acabam aproximando as pessoas. Dentro das suas casas, no período de isolamento, muitos acabam imersos em seus próprios aparelhos de celular. A alternativa de diversão em um jogo de tabuleiro minimiza esse isolamento e contribui para a fortificação da união dos entes familiares.

Jogos de Tabuleiro como fuga do mundo virtual

Falando mais sobre essa “desintoxicação virtual” que os jogos podem proporcionar, a principal vantagem deles, conforme Natália, é que eles possibilitam que todos tenham “uma vida real”; ela explica que, em seu consultório, costuma recomendar que os pais brinquem com seus filhos, ao menos por uma hora, uma vez por semana.

“Esse brincar pode ser por meio do jogo. É um momento que permite interação familiar, tempo de qualidade exclusivo para a criança/adolescente e conexão entre pais e filhos. Esses momentos também podem ser utilizados para discussão de temas éticos, morais, e dilemas familiares. Pensar criticamente, onde todo um “clima” foi preparado, é uma boa forma de viabilizar o pensamento crítico.

Uma outra vantagem desses momentos, é que nessas situações não há hierarquização de poder. Pais e filhos são iguais, lá, ambos precisam cumprir as regras. Como já dito, isso viabiliza mais conexão emocional entre os participantes”, salienta. 

Benefícios dos jogos de tabuleiro para sua saúde mental

Além de todos os aspectos positivos já listados dos jogos de tabuleiro, eles ainda podem contribuir de maneira significativa para manter o cérebro mais ativo por mais tempo e, consequentemente, mais jovem, incorrendo em menores riscos de declínio cognitivo. Um estudo feito pelo New England Journal of Medicine, por exemplo, demonstrou que jogar jogos de tabuleiro estava associado a um risco reduzido de demência e doença de Alzheimer.

Os jogos sociais ainda podem ajudar a exteriorizar emoções e ensinar pessoas a lidar com desafios e problemas. “Crianças e adolescentes com questões de comportamento cujas famílias me procuram no consultório, geralmente recebem essa recomendação: incluir os filhos em atividades sociais em grupo”, afirma Natália.

Reduzindo o estresse e auxiliando até no trabalho

Nem precisaria que um estudo comprovasse tal fato, mas outra pesquisa a respeito dos jogos de tabuleiro, desta vez da Real networks Inc, mostrou que eles ainda auxiliam a reduzir o estresse. É uma oferta de escape, de abandono temporário das preocupações diárias. 

Até mesmo no ambiente profissional, eles podem contribuir. Jogos de tabuleiro, como Damas, Xadrez e Dominó, são modalidades levadas a sério na Olimpíada Nacional da Justiça do Trabalho (ONJT). As competições acontecem entre atletas de todo o Brasil. Segundo Natália Lima, a relação entre os jogos e a melhor convivência no ambiente profissional se dá pelo fato de eles auxiliarem a lidar com regras e com a frustração. “Além disso, jogos e esportes, de forma geral, sempre serão uma ferramenta de desenvolvimento de habilidades sociais”, explica. 

Qual é o papel dos jogos de tabuleiro na aprendizagem?

Além de estimularem os alunos a se relacionarem entre si durante as partidas, bem como os incentivar a obedecer às regras e limites do adversário, que outras vantagens os jogos de tabuleiro oferecem para a criança, tanto do aspecto afetivo quanto cognitivo? “É possível desenvolver principalmente as funções executivas do cérebro como planejamento, controle de impulso e pensamento crítico”, afirma Natália Lima. Respeitar a vez do colega e aprender a saber ganhar e perder, exercendo a competitividade de forma saudável, ainda traz vantagens para o crescimento emocional.

Ao se trabalhar com essa ferramenta em sala de aula, é importante, entretanto, ter cuidado com alguns critérios de seleção dos jogos. Eles precisam, por exemplo, ser escolhidos de acordo com os objetivos didáticos. É importante, também, que fiquem disponíveis em sala de aula, de forma que os alunos tenham autonomia, liberdade e fácil acesso para escolher os que preferirem. Outra dica é que, ao planejar essas atividades, o professor esteja atento ao espaço da sala e às divisões das equipes. As partidas podem servir de parâmetro para algumas avaliações externas à questão didática como aspectos cognitivos e de comportamento.

Os conhecimentos e aprendizagens adquiridos pelos alunos nos jogos ainda poderão ser utilizados em outras ações que vão além da prática pedagógica, como prepará-los para situações e adversidades enfrentadas na vida. De que forma? “Incentivando-os a colocar em prática na vida real o que aprenderam nos jogos. Fazer o link das dificuldades encontradas neles e das estratégias utilizadas para resolver problemas. Tentar levar isso para a prática”, conclui Natália.

Os jogos preferidos de pernambucanos famosos

Lembro muito quando era guri, pequeno. Fui criado por uma família que me adotou. Minha tia, de criação, era professora e só me dava jogos assim, de dama, trilha. Na adolescência, comecei a jogar dominó na rua. Era muito sagaz, mas acabei me viciando e jogando dinheiro. Ficando adulto, dentro do movimento punk, um amigo chamado Marcos Sá Barreto, que mora no Ibura ainda, me ensinou a jogar xadrez. Eu saía, todo domingo, do Alto José do Pinho para o Ibura, com a maior vontade, só para isso. Marcos tinha um tabuleiro de xadrez gigante, do tamanho da mesa, com quadrados feitos de crochê. Não me tornei um expert, mas adorava e jogava muito. No Alto José do Pinho, quase virava a noite com Luciano Lins, baixista que tocava comigo (eu na bateria) na banda: B.U. Gostava porque me fazia desconcentrar do mundo e ter a concentração totalmente voltada para o jogo. Além disso, no xadrez, não importa ter muitas peças. Mesmo com poucas, e das mais simples, como os peões ou sem a rainha, poderia ganhar. Essa parte de o menos poder ser mais era o que mais gostava. E aquela coisa de estar sempre desafiando o outro, mentalmente. Inventando jogadas ou tendo que perder peças. Como no dia a dia mesmo, quando às vezes temos que dar dois passos para trás para poder avançar cinco à frente. O xadrez é muito isso. Além disso, você tem sempre que pensar também na jogada do outro, não só no seu jogo. É o que mais me encanta. Tanto que até hoje, aos poucos, estou ensinando minha filha, que já sabe colocar as peças no lugar e mais ou menos como se jogam. Recentemente, fui para um estúdio na Boa Vista chamado Bay Area na rua do Sossego, só para jogar xadrez enquanto a galera das outras bandas estava ensaiando”.

Cannibal, Músico

Eu jogava ludo. Não lembro bem das regras, mas me recordo que era fácil e que era necessário ter sorte nos dados. Além disso, todo mundo sabia jogar, então era bem legal. Eu me distraía muito. Na verdade, gosto muito de jogos. Adoro dominó, inclusive, e jogo até hoje. Já joguei gamão, embora lembre muito pouco de como era. Recordo que tinha uma estratégia e era interessante porque demandava raciocínio, todo um planejamento. Xadrez eu nunca joguei. É uma frustração nunca ter aprendido. Imagem & Ação é o mais engraçado. Para grandes grupos, até hoje não tem coisa melhor. Anima qualquer ambiente. O Perfil, acho interessante porque, com ele, a gente aprende o que não sabia e lembra do que tinha esquecido. Sobre toda esta questão, acho que há ganhos que são indiscutíveis. É algo bem diferente do que jogar com a máquina, por exemplo. Por mais inteligente que a inteligência artificial seja, ela ainda não consegue ser a nossa inteligência. E nem falo de ser maior ou menor. Falo do modo humano de pensar. Isso máquina ou jogo nenhum tem, ainda. Então, é muito mais desafiador jogar com o imprevisível. Existe uma constância na máquina porque ela sempre vai jogar bem. As pessoas, não. Eu, por exemplo. Me acham criativa para jogar Imagem e Ação, mas tem vezes em que não estou assim. Então, é sempre uma surpresa jogar comigo. É sempre uma surpresa, também, jogar com as pessoas com quem jogo. Há vezes em que aqueles que têm sacadas extraordinárias para mímica escorregam numa bobagem que qualquer um saberia fazer, digamos assim. Então, lidar com esse imprevisível exige uma plasticidade que não tem preço e que máquina nenhuma consegue substituir, isso que é bem humano. Então, viva os jogos de tabuleiro!”. 

Bianka Carvalho, jornalista

Minha infância foi bem diferente da dos meus filhos. A gente tinha uma relação forte com a questão do grupo, da urbanidade, do coletivo, não de forma virtual, mas presencial. Estávamos nos bairros, na periferia, na Zona Oeste do Recife. Mesmo antes disso, na Zona da Mata Norte, quando a gente brincava de situações imaginárias: um pedaço de madeira era um cavalo, um pé de manga poderia ser um ‘malassombro’, as histórias que vovó contava. Comecei a ter acesso a jogos de tabuleiro na minha adolescência, já aqui em Recife, entre os bairros de Areias e Barro, onde vivi toda a minha juventude antes de casar e vir para Casa Forte, na Zona Norte. A gente passava a noite (eu, minha irmã, mamãe, os colegas da rua) jogando dominó, dama. Sempre fui louco, louco, louco para aprender xadrez. Ainda tenho esse desejo, esse sonho de aprender este jogo de estratégia, de inteligência. Joguei também muito War e aquele de dados em que a pessoa vai respondendo ou pagando algumas prendas. Dama e dominó foram os mais presentes, entretanto, não só pela competição de marcar campeonato com a turma, a oportunidade de estarmos juntos, fazer tabela, mas também por serem acessíveis. Afinal, eram tabuleiros simples, baratos. Por ser de família pobre, sempre ganhava de aniversário (risos)”.

Silvério Pessoa, Músico

O que sempre gostei de jogar foi dominó e baralho. Dominó gosto mais porque sempre tenho mais vantagem, sempre ganho (risos). Ainda jogo com amigos quando viajo para algum local que tem uma tranquilidade maior, sempre à noite. Quando não, jogamos aquelas batalhas de conquistar países ou fortuna virtual, que são bem divertidos. Era mais ou menos o que gostava quando era criança e hoje ainda jogo, embora não com frequência”.

César Santos, Chef de Cozinha

Patrícia Monteiro de Santana

Jornalista formada pela Universidade Federal de Pernambuco em 2000. Com atuações em veículos como TV Globo, Revista Veja e Diário de Pernambuco, além de atuante em assessoria de comunicação empresarial, cultural e política.