04 de maio, 2022 - Por e-docente
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Pelos olhos de uma criança, o mundo inteiro pode ser algo muito além dele mesmo. Por meio da sua ótica, o trivial vira encantamento, poesia ou diversão. Uma casca de ovo transforma-se em uma casinha; uma caixa de sapato, em um carrinho; uma panela; em instrumento musical.
E, assim, enquanto tudo o que se enxerga pode ter um significado muito além do usual, a vida ganha sentido.
Esse processo especial e tipicamente infantil de apreender o mundo e seus significados permite que conceitos e percepções se instalem e solidifiquem-se com mais embasamento, quando apreendidos desde cedo.
Por meio da utilização de brinquedos feitos a partir de sucata, portanto, é possível que a criança entenda, desde os primeiros anos, o planeta como seu lar sem “lado de fora” e que, portanto, toda ação de descarte precisa ser planejada.
Lições que ainda podem vir acopladas ao desenvolvimento da criatividade e de noções de empreendedorismo, por exemplo.
Sucata é a denominação de qualquer material, produto descartado ou resíduo que não possa mais atender à finalidade para a qual foi designado, originalmente. Exemplo: peças de computador desativado, garrafas plásticas utilizadas, resíduos de produtos eletrônicos quebrados, peças de PVC ou alumínio, dentre tantos outros.
É importante deixar claro para os pequenos que a reutilização de materiais de sucata é diferente de reciclagem. Nesta, os materiais (vidro, plástico, metal, papel) voltam ao seu estado original, podendo transformar-se no mesmo produto ou em outro. Na reutilização, por sua vez, o produto não será modificado, apenas utilizado novamente após um processo de higienização e/ou reforma.
Para a elaboração destes objetos, pais e professores podem se utilizar tanto dos resíduos domésticos quanto de material obtido (com máximo grau de cuidado) em ferros velhos.
Trabalhar com brinquedos confeccionados a partir de sucata pode contribuir de forma efetiva para uma miríade de aprendizados. Além do incentivo à criatividade e à utilização prática do processo criativo, também desperta as crianças para a consciência ambiental/ecológica.
Fazer com que elas se utilizem de materiais que iriam ser descartados para confeccionar objetos de decoração (vasos, enfeites diversos) ou utilitários (bijuterias, caixinhas de presentes, brinquedos, entre outros) incute a “semente” da consciência ecológica e, consequentemente, a formação de uma geração mais sensível a esta temática.
A professora Luzenira Maria Ferreira da Silva, licenciada em Desenho e Plástica, Arquiteta, Urbanista e mestra em Educação, salienta que desde a “Carta da Terra”, documento assumido pela UNESCO em 2000 que representou um novo código de ética planetário, fala-se em uma aliança global para cuidar do planeta, evitar a nossa destruição e a da diversidade da vida.
“Hoje, em pleno século XXI, após 22 anos da publicação desta Carta, nos deparamos com o relatório alarmante do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) da ONU publicado em abril de 2022. Esse relatório nos dá um ultimato: ou mudamos o nosso sistema de desenvolvimento – o que implica mudar a nossa consciência e padrões de consumo – ou não poderemos reverter os custos humanos e ambientais advindos desse sistema predatório. E o relatório traz ainda um prazo assustador para evitar uma catástrofe maior, até 2025”, ressalta.
Ela acredita que, diante desta situação, o trabalho com sucata pode ser um convite para refletirmos, de forma lúdica, sobre temas tão necessários e urgentes como o nosso modelo civilizatório predador e consumista, que vem abreviando a existência humana e a do planeta.
“Saber a história das coisas, como propõe a ambientalista Annie Leonard, é imprescindível para criarmos essa nova ética planetária. Além de compreender que o ser humano é natureza e não apenas parte dela, e que o seu desenvolvimento deve se dar de maneira equilibrada para não comprometer o todo. O trabalho com a sucata ainda permite a experimentação e a descoberta, estimula a criatividade. Esse estímulo se dá desde o recolhimento da sucata até a ressignificação desses objetos descartados a partir da dimensão pessoal e individual do aluno”, analisa.
O artista e educador de circo social, Cleiton Orman, também costuma trabalhar com esta temática e tipo de material com seus educandos. Ele enumera impactos diversos, principalmente quando o facilitador se planeja para isso.
“É nítido que quando a proposta de utilizar materiais e objetos que virariam lixo é trabalhada na perspectiva educativa de explorar a criatividade de uma criança é, por si só, um impacto de conscientização sobre o meio ambiente. A consciência de que nada se descarta, tudo se reutiliza, se reaproveita, se recicla. E que todo e qualquer artigo de sucata ou lixo pode ganhar um novo significado. Além disso, o educador ainda pode aplicar seu conhecimento sobre o tema, agregando ludicidade e motricidade técnica dos jogos e brincadeiras malabarísticas. E o mais bacana: não é preciso ter dinheiro para criar um jogo ou brinquedo. Quando existe criatividade, a imaginação é o limite”, acredita.
A utilização desta ferramenta de aprendizagem pode trazer outros resultados além dos mais óbvios e já mencionados acima, conforme ressalta Luzenira.
“A educação ambiental acontece do individual para o coletivo. Nos faz perceber que como parte de um sistema, também podemos ajudar a transformar o todo, com ações criativas que ajudam a melhorar a qualidade do ambiente. Além dessa consciência ambiental, o trabalho com a sucata permite ainda o desenvolvimento cognitivo por meio do raciocínio lógico, o afetivo. Isto porque a criança cria um elo com o que foi produzido e a coordenação motora fina, trabalhada no manuseio para a confecção do objeto proposto. O trabalho com sucata permite também a cooperação e a socialização, fortalecendo a ideia de coletividade”, afirma.
Como professores e corpo docente, de maneira geral, podem trabalhar a utilização da sucata, por meio dos materiais reciclados, na sala de aula? Dentre outras possibilidades, por meio de projetos pedagógicos que podem envolver desde uma turma até a escola inteira, como gincanas, exposições, feiras etc.
Lembrando que esse aprendizado de lidar com brinquedos reciclados ou reutilizados no universo lúdico pode acontecer, sim, desde os primeiros anos. “Desde a educação infantil, é possível trabalhar com a sucata, sabendo que nessa fase a exploração dos materiais tem uma importância maior do que criar objetos que atendem as expectativas de adultos e não ao espírito curioso da criança. Já no ensino fundamental, podemos trabalhar mais com a subjetividade dos alunos, criando objetos diversos”, explica Luzenira.
Em casa, pais ou responsáveis também podem incentivar este hábito participando das brincadeiras de seus filhos e, a partir delas, mostrando a importância da reciclagem e reutilização. “As crianças sempre vão procurar objetos descartados para explorar: examinar sua textura, bater para ver se sai algum som ou até mesmo criar histórias a partir de determinada coisa. Então, acredito que seja importante aproveitar esses momentos”, afirma Luzenira.
Com o estímulo e orientação dos professores, os estudantes podem fazer exposições de suas criações e descobertas e até planejar uma feirinha dos objetos construídos. Essa troca de conhecimentos com outros estudantes, além de convidados externos como funcionários, familiares e responsáveis, possibilita que estes aprendizes possam disseminar o conhecimento adquirido.
Mencionando o consumo, essa pauta também rende um interessante tópico a ser abordado na discussão sobre empreendedorismo infantil. Confeccionar seu próprio produto ensina a não desperdiçar. Comercializá-lo traz, já para este universo dos anos iniciais, a noção do valor do dinheiro e dos modelos econômicos vigentes.
“É possível, a partir do estímulo para a participação em uma ética mundial, por exemplo, mostrar como o modelo produtivo baseado no lucro incessante das megacorporações representam a condenação da vida na Terra. Devemos estimular ações coletivas que reúnam grupos de estudantes em trabalhos significativos, para mostrar como cidadania demanda organização e empenho coletivo. Lembrar a frase do líder pacifista indiano, Ghandi: “Se deseja mudar o mundo, comece por sua aldeia”, aponta Luzenira.
O artista circense e educador Cleiton Orman destaca alguns cuidados quanto à segurança no manuseio de sucatas. “A depender da faixa etária, é importante observar se o artigo é produzido com pequenos materiais que a criança possa ingerir e sofrer um possível engasgo, se todo objeto está bem fixado nas emendas ou conexões e se as extremidades do brinquedo estão com bom acabamento, evitando que artigo vire um objeto perfuro/cortante”, informa.
Cleiton destaca, ainda, a importância dos cuidados com a higiene. “É importante observar se o material a ser manuseado está devidamente limpo e higienizado e se a criança tem algum tipo de alergia ao que será manipulado. A depender do material que for confeccionado o brinquedo, manter em local seco e arejado, fazer a lavagem e/ou a higienização periodicamente”, orienta.
Cleiton Orman oferece algumas dicas de como criar diversos jogos e brinquedos com sucatas ou materiais recicláveis, sempre com a supervisão de um adulto:
De acordo com Cleiton, nos malabares, o brinquedo mais comum e mais prático para se confeccionar com material reciclável é a famosa bolinha de papel:
Patrícia Monteiro de Santana
Jornalista formada pela Universidade Federal de Pernambuco em 2000. Com atuações em veículos como TV Globo, Revista Veja e Diario de Pernambuco, além de atuante em assessoria de comunicação empresarial, cultural e política.