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Possibilidades de valorização da herança africana no Brasil através da literatura

11 de novembro de 2025,
Rafael Palasio
Possibilidades de valorização da herança africana

No ano de 2024, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), realizado por milhões de pessoas em todo o país, trouxe em sua redação um tema altamente pertinente e, ainda assim, bastante inesperado: Desafios para a valorização da herança africana no Brasil.

Tal tema pode ser uma oportunidade para refletirmos sobre o espaço que está sendo destinado às discussões em torno da cultura africana na Educação Básica, possibilitando, também, reavaliarmos nossas práticas na busca de diálogos possíveis com a mediação desse conteúdo. A importância de discutir questões étnico-raciais na escola tem ganhado cada vez mais destaque nos últimos anos.

Muitos professores, em algum momento de sua trajetória profissional, já devem ter se deparado com esse tema, seja pelas discussões proporcionadas pela promulgação da Lei 10.639/2003, seja pela presença de tais discussões em livros didáticos, que passaram a abordar tais questões, ou ainda, pelo trabalho de divulgação feito por sindicatos, ONGs e demais grupos militantes organizados. Durante a formação inicial do docente, esse assunto pode ter ganhado algum relevo dependendo dos docentes com os quais o graduando entrou em contato. Também, uma vez formado e atuando em redes de ensino, vez ou outra a necessidade de abordar as histórias e a culturas afro-brasileiras de modo interdisciplinar acaba sendo ventilada em formações continuadas.

Ainda assim, quando se trata de Educação no Brasil, é notório que apenas o fato de um encaminhamento pedagógico estar garantido por lei e ser divulgado por diferentes canais de comunicação não é suficiente para que as práticas escolares cotidianas incorporem tal indicação. Refazendo a afirmação anterior no formato de uma pergunta: quais caminhos devem ser trilhados para que a falta de segurança que muitos professores sentem ao abordar esses temas em suas aulas possa ser superada?

A importância e história da lei nº 10.639/2003

Antes de mais nada, é importante retornarmos à situação legal e explorá-la um pouco melhor. Não custa lembrar que o cenário nacional que tornou a Lei nº 10.639/2003 necessária é fruto de séculos de escravidão e discriminação da população negra, além de toda a luta dos movimentos negros. Logo, podemos dizer que essa lei veio para reconhecer e institucionalizar essas lutas.

Leia mais: Educação e antirracismo: Vamos refletir sobre uma educação antirracista!

Durante mais de três séculos da história de nosso país, a principal mão de obra era a oriunda do tráfico negreiro. Estima-se que o Brasil recebeu em torno de 5 milhões de africanos, o que representa a maior porcentagem de pessoas escravizadas de toda a América. Além disso, o Brasil foi um dos últimos países do mundo a abolir a escravidão, o que ocorreu apenas em 13 de maio de 1888 através da Lei Imperial nº 3.353, comumente conhecida como Lei Áurea. Mesmo com a promulgação desta lei, não podemos dizer que os efeitos de séculos de escravidão foram apagados ou reparados da noite para o dia, as cicatrizes ainda perduram.

Sobre a Lei nº 10.639/2003, também é importante destacar que, antes de sua promulgação, projetos similares já tramitavam no Congresso brasileiro há décadas. Um dos primeiros foi o Projeto de Lei nº 1.332 de 1983, proposto por Abdias Nascimento, o fundador do Teatro Experimental do Negro, quando ele foi deputado federal pelo Partido democrático Trabalhista (PDT) do Rio de Janeiro. Outro exemplo é o Projeto de Lei nº 18/1995, da senadora Benedita da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT) do Rio de Janeiro, que propunha “incluir a disciplina ‘história e cultura da África’ nos currículos”, que, por não ter sido aprovado, foi arquivado. Por último, temos o Projeto de Lei nº 259/1999, de autoria dos deputados federais Ben-Hur Ferreira (PT/MS) e Esther Grossi (PT/RS), que “dispõe sobre a obrigatoriedade da inclusão, no currículo oficial da Rede de Ensino, da temática ‘História e Cultura Afro-Brasileira’”. Na justificativa, é informado que sua autoria original é do deputado Humberto Costa (PT/PE) e que o projeto procura: “criar condições para implantação de um currículo na rede nacional de ensino que inclua o ensino de História da Cultura afro-brasileira, visando à restauração da verdadeira contribuição do povo negro no desenvolvimento do país.”.

O Projeto nº 259/1999 seguiu, então, para tramitação, foi aprovado por unanimidade pelas comissões competentes por sua avaliação, e, em 2003, foi publicado na forma da Lei nº 10.639/2023. No caput da Lei lemos que ela “altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática ‘História e Cultura Afro-Brasileira’”. Cinco anos após sua publicação, há uma atualização através da Lei nº 11.645 de 2008, que estabelece no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “história e cultura indígena”.

Estratégias e práticas para valorizar a herança africana

Se os caminhos para a criação de uma lei que torna obrigatório o trabalho com a história e cultura afro-brasileira foi árduo, o processo de garantia dessa lei tem todas as possibilidades de ser bastante proveitoso.

Ao corpo escolar, cabe, então, criar situações em que a herança africana seja cada vez mais reconhecida e enaltecida no cotidiano pedagógico, entendendo essa herança não apenas como representações alegóricas e estereotipadas, mas como potência que nos relegou contribuições estéticas, gastronômicas, artísticas, religiosas, musicais, linguísticas, dentre tantas outras.

Literatura infantil e juvenil sobre identidade negra

Nesse percurso, destacando a área da Literatura, é possível desde cedo abordar tal temática com os estudantes, trabalhando com livros infantis e infantojuvenis que tematizam a identidade negra, como, Dandara e a princesa perdida, de Maira Suertegaray; Cada um com seu jeito, cada jeito é de um!, de Lucimar Rosa Dias; Meu Crespo É de Rainha, de bell hooks; Amoras, de Emicida ; ou ainda O pequeno príncipe preto, de Rodrigo França, dentre tantas obras de fácil acesso hoje em dia, tanto em versões físicas quanto em suportes digitais.

Leia mais: Como é a Educação Pública no Brasil? Dados, importância e história

Avançando para o público dos Anos Finais do Ensino Fundamental, a história em quadrinhos Jeremias – Pele, de Rafael Calça e Jefferson Costa, traz reflexões bastante contundentes sobre a negritude do ponto de vista de um jovem, propondo reflexões através de uma narrativa bastante lúdica e cativante. Há ainda a possibilidade de trabalhar com contos folclóricos africanos e suas possíveis representações artísticas, promovendo práticas interdisciplinares entre os componentes curriculares de Língua Portuguesa, História e Artes.

Explorando autorias negras no ensino médio e o cânone nacional

No Ensino Médio, é imprescindível explorar a obra de autorias literárias que durante muito tempo foram ou apagadas do cânone nacional, como, Luiz Gama e Maria Firmina dos Reis, ou embranquecidas, como Machado de Assis e Lima Barreto ; até chegar às autorias contemporâneas, como Marcelo D’Salete, Conceição Evaristo, Eliana Alves Cruz, Ana Paula Maia, Jefferson Tenório, Jarrid Arraes, dentre inúmeros outros.

Por que a valorização da herança africana é fundamental na educação

Independentemente do componente curricular, é fundamental que a menção ao continente africano ou à população negra não ocorra apenas esporadicamente nas aulas de História ou em momentos específicos do ano que antecedem datas comemorativas. A valorização da herança africana no ambiente escolar passa por um constante processo de conscientização sobre elementos constitutivos de nossa identidade que, durante muito tempo, foram omitidos ou menosprezados.

Leia mais: Diversidade na educação: um compromisso com o presente e o futuro

Se, conforme afirma Santos (2014, p. 99): “[…] a educação tem ocupado lugar central dentre os mecanismos de reprodução das desigualdades raciais/étnicas no país, servido em muitos momentos como instrumento de encobrimento dos processos de exclusão e injustiças sociais provocados pelo racismo” , é necessário um olhar ainda mais vigilante para que nossas práticas pedagógicas sejam orientadas por uma perspectiva antirracista e contribuam para a valorização cultural de uma parcela da população que tem sido historicamente marginalizada.

Em um país como o Brasil, detentor da maior população negra fora do continente africano, falar de valorização da herança africana é, portanto, muito mais do que abordar um componente curricular, é, primordialmente, uma estratégia de valorização da ancestralidade de muitos estudantes, um caminho para a elevação de sua autoestima, ou seja, uma forma de reconhecer histórias, identidades e culturas indissociáveis da nossa constituição enquanto povo.

Referências

SANTOS, Sônia Beatriz dos. Crianças e adolescentes negros frente à educação e à escola: uma perspectiva sobre as desigualdades. In: GONÇALVES, Maria Alice Rezende et. al. (org.). História e a Cultura africana e afro-brasileira na escola. Volume 1. 2. e. Rio de Janeiro: Outras Letras, 2014.

Minibio do autor

Diego Domingues possui uma sólida formação acadêmica, sendo graduado em Letras pela UFRJ , mestre em Educação pela UERJ/FFP e doutor em Linguística Aplicada também pela UFRJ. Atualmente, ele integra o corpo docente do Colégio Pedro II, atuando como professor no Departamento de Português e Literaturas de Língua Portuguesa.

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