discussão raça e etnia

“Somos todos humanos”. “Não vejo cor”. Esses discursos voltam vez e sempre ao debate público no Brasil que persiste como um país com racismo, mas sem racistas.

Durante um dos primeiros diálogos na edição do reality Big Brother Brasil 2022 (BBB22), a cantora Naiara Azevedo, uma das participantes do programa, mulher branca, declarou:

“Não existia, para mim, ruivo, loiro, negro, branco. Todo mundo, para mim, é como se eu enxergasse tudo igual. Eu não vejo tonalidades de pele diferentes aqui. Acho que não existe assim. Eu não fui ensinada assim”.

O discurso emblemático de Naiara Azevedo reascendeu o debate em torno das relações étnico-raciais no país. Ao não enxergar a diferença, a cantora revela não se dar conta da situação de desigualdade, de injustiça, de encarceramento e de extermínio a que está mais sujeito o negro.

Com isso, termina revelando outra face do racismo, isto é, negar o racismo mostra a eficácia da ideologia racista no Brasil. Aqui o racismo se esconde ou fica na maioria dos brasileiros que se tornam incapazes de percebê-lo. Vejamos o que explica a historiadora Aline Nascimento, em matéria do jornal Extra.

Afirmações polêmicas, como a da cantora sertaneja, podem se constituir em boas oportunidades para o trabalho em sala de aula de questões voltadas à educação das relações étnico-raciais.

Com o propósito de ampliar a compreensão sobre os conceitos de raça e etnia, debatemos nesse texto sobre como estes, ainda bastante controversos, se constroem discursivamente.

Optamos por refletir sobre os temas na ciência e na sociedade brasileira, a partir dos discursos que circulam no cotidiano, para compreender a ressignificação por que passou o termo raça, especialmente quando reclamado/adotado pelo Movimento Negro.

Como denominar raça e etnia?

Como é possível nomear loiro, ruivo, negro, branco sem os enxergar? A fala de Naiara nos expõe a gravidade do racismo em um país construído com base no mito da democracia racial, da ausência de conflitos.

Ora, primeiro, precisamos reafirmar que classificar é um ato necessário à organização do pensamento humano, como explica o antropólogo congolês-brasileiro Kabengele Munanga (2000).

Segundo o professor, a classificação realiza um importante e necessário papel na nossa vida cotidiana, seja para organizar uma biblioteca, as prateleiras de uma farmácia, uma lista de compras ou mesmo os contatos em uma agenda.

Em um segundo momento, poderia ser ponto pacífico que a utilização do termo raça não fizesse referência ao conceito biológico, rejeitado na sociologia e na antropologia, ainda que popularmente seja utilizado para tratar das características fenotípicas dos sujeitos (Barros e Santos, 2011).

Entretanto, se referir às pessoas com a palavra raça ainda pode gerar confusões, além de insatisfação, sendo necessário atentar para o contexto de uso, para os usuários, bem como para a necessidade da utilização, como salienta Gomes (2005).

Vamos entender um pouco mais desse debate no contexto da autodeclaração e da diferença entre os conceitos de raça e etnia, assistindo ao episódio do Sexta Black, produzido pelo Canal GNT, com apresentação de Luana Génot.  

O conceito de raça, tomado de empréstimo da Biologia e Zoologia, até o século XVIII, se referia a grupos com ancestrais comuns.

Já as diferenças entre senhores e escravos, entre os séculos XV e XVI, se explicam pelo paradigma cristão, segundo o qual, os escravos haviam sido amaldiçoados por serem descendentes de Cam, que teve punição por presenciar seu pai, Noé, nu e embriagado. Nessa perspectiva, algumas sociedades de pagãos e hereges não estariam destinadas ao progresso.

Cabem aqui parênteses sobre discursos da escravidão em África: “negros também escravizaram outros negros”. Afirmação comum entre os que tentam ler a história de modo linear, não atentando minimamente para a complexidade dos fenômenos. Somente no contexto da expansão europeia do século XVI, é que a escravidão recebe associação ao africano de pele preta.

Nas sociedades da região mediterrânea, a escravidão (de prisioneiros de guerra, criminosos e pobres) não era organizada a partir da ideia de raça. Ademais, os escravos podiam se tornar livres e inclusive pessoas poderosas (Barros e Santos, 2011).

No período iluminista, ganha espaço a ideia de que, como parte de uma cadeia de seres criados por Deus, os seres inferiores tinham obrigação de servir aos superiores.

Segundo Malik (apud Barros e Santos, 2011), na gênese do discurso moderno de raça, reside o sentido de pertencimento, uma essência de unidade, pela qual se buscou abrigar os efeitos fragmentários do capitalismo europeu. Nesse contexto, a chamada “elite” já se colocava como raça superior às massas.

Charles Linnaeus (1701-1778), além de estabelecer tipos básicos de ordem descendente, atribuiu características de caráter a cada raça. Para ele, “europeus e americanos brancos eram suaves e inventivos, vermelhos americanos eram obstinados, asiáticos amarelos eram melancólicos, cobiçosos e os africanos, pretos indolentes e negligentes” (Barros e Santos, 2011, p. 11).

Esse processo de hierarquização e imutabilidade das raças, com brancos no topo, gerou convicções de que diferentes culturas possuem capacidades mentais distintas, podendo ser percebidas a partir das diferenças físicas (Munanga, 2000).

Essa construção histórica dos sentidos atribuídos ao termo raça é fundamental para compreendermos por que o Movimento Negro, militantes e também intelectuais ainda o utilizam. É importante lembrar que no Brasil o racismo estrutura toda a sociedade.

Como explica Gomes (2005, p. 47), para esses atores sociais, não resolve substituir raça por etnia porque “eles trabalham o termo raça atribuindo-lhe um significado político construído a partir da análise do tipo de racismo que existe no contexto brasileiro e considerando as dimensões histórica e cultural que este nos remete”.

Discursos sobre etnia

O professor Munanga (2000, p. 12) também questiona a substituição direta entre os termos raça e etnia. Explica que, além de não ajudar a resolver o problema do racismo, contribui para o surgimento de problemas na compreensão dos conteúdos, uma vez que a etnia é um conceito social, cultural, histórico e psicológico.

Nas palavras dele,

“Um conjunto populacional dito raça “branca”, “negra” e “amarela”, pode conter em seu seio diversas etnias. Uma etnia é um conjunto de indivíduos que, histórica ou mitologicamente, têm um ancestral comum; têm uma língua em comum, uma mesma religião ou cosmovisão; uma mesma cultura e moram geograficamente num mesmo território”.

Já Barros e Santos (2011) explicam que étnico é um termo de origem grega, ethnos, que era utilizado para se referir ao estrangeiro, mas que a partir do século XV foi utilizado em referência aos próprios gregos.

Também argumentam que, embora etnicidade e nacionalidade se assemelhem, a nacionalidade está relacionada ao Estado. Etnia e nação não correspondem ao mesmo conteúdo.

Foi a partir da década de 1930 que houve uma recusa na utilização do termo raça. Alguns pesquisadores optaram por utilizar a ideia de população, substituindo tipo racial, em estudos estatísticos.

Duas décadas depois, uma pesquisa da UNESCO buscou solucionar os problemas políticos ocasionados pelo uso indevido do termo raça no campo das relações raciais, convencionando o seguinte:

  1. Os problemas raciais passam a denominar-se problemas étnicos;
  2. Houve o reconhecimento de que há diferenças raciais e de que estas atuam no estabelecimento de desigualdades políticas;
  3. O termo situações de relações raciais passou a ser usado para indicar situações marcadas pelo racismo.” (Barros e Santos, 2011, p. 17).  

Nesse contexto, o fenótipo, enquanto matéria-prima física, entra na compreensão histórica do conceito de raça. Tratar de questões étnico-raciais no Brasil é discutir nossa diversidade cultural. É no seio dessa diversidade cultural que podemos melhor compreender as questões socioculturais, políticas e históricas da nossa sociedade (Gomes, 2005).

Para concluir

Há pouco mais de uma década, a iniciativa de “Diálogos contra o Racismo” lançou a campanha “Onde você guarda o seu racismo?”. A ideia era compreender como e por que naturalizamos o racismo.

A pesquisa levantou que, embora 87% dos brasileiros entrevistados declarassem haver racismo no Brasil, menos de 4% se reconheciam racistas. É isto que explica ser o Brasil um país com racismo, mas sem racistas. Essa contradição latente reside no sucesso da instrumentalização do racismo como ferramenta em que se estrutura o país. 

O mito da democracia racial, ou seja, de uma sociedade harmoniosa em que há igualdade racial e de direitos, oferece sustentação a esse fenômeno.

Desvelar esse racismo se torna essencial na busca por superar as desigualdades e injustiças raciais. Nessa luta, a escola tem um importante papel. A partir de um diálogo de um programa de TV, podemos promover ações, situações escolares para trabalhar a temática étnico-racial, como discutimos aqui.

É preciso enfrentar o racismo de cada dia, aquele que passa despercebido nos gestos, no olhar, na palavra aparentemente inofensiva, pois como explica o professor Munanga, é impossível conciliar esses discursos sem reconhecer o problema.

É o reconhecimento do racismo que possibilita a formulação de políticas afirmativas que o combatam, não podemos nos esquecer.

Para saber mais

BARROS, Zelinda dos Santos e SANTOS, Marta Alencar dos. Educação e Relações Étnico-raciais. Brasília: Ministério da Educação. Secretária de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; Salvador: Centro de Estudos Afro Orientais, 2011. (Módulo 4).

GOMES, Nilma Lino. “Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão” In: Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. p. 39-62.

MUNANGA, Kabengele. “Uma abordagem conceitual das noções de Raça, Racismo, Identidade e Etnia”. In: Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira. Niterói: EDUFF, 2000. (Cadernos PENESB; 5).