“Luz, câmera, ação”: o que os trailers cinematográficos podem nos ensinar sobre argumentação?

Sempre fui uma entusiasta do cinema, mergulhando em todo o ritual: desde a escolha cuidadosa do filme e da sala de exibição até a chegada antecipada para garantir a pipoca e os ingressos, e, claro, a imperdível sessão de trailers cinematográficos. Acompanhar as novidades que estavam por vir sempre foi parte da programação, mas, com o tempo, percebi que minha conexão com esse gênero ia além do simples entretenimento.
Você, colega leitor(a), provavelmente concordará: nossa “skin” — ou “máscara/função social”, termo já popular nas redes sociais — nos acompanha a lugares e situações que transcendem a sala de aula. É comum, em nossos momentos de lazer, ouvir uma música, ler um texto, assistir a um filme ou série e pensar: “Isso renderia uma aula incrível!”.
Durante meu doutorado, imersa nas teorias de semiótica e multimodalidade, fui desafiada por uma professora a criar um ensaio visual para explicar o conceito de modo. Naquela ocasião, considerei usar exemplos da linguagem audiovisual, por sua vasta exploração de recursos semióticos na construção da imagem em movimento.
Para a apresentação do meu trabalho, precisei selecionar cenas e sequências de filmes que se adequassem aos critérios de tempo e espaço. Foi assim que decidi usar o trailer cinematográfico como objeto de investigação da minha pesquisa, que posteriormente se tornou minha tese (você pode acessá-la na íntegra aqui, caso tenha curiosidade ou interesse no tema). Durante a pesquisa, confirmei o que já intuía: os trailers cinematográficos podem ser um recurso didático altamente eficiente para o ensino de linguagem, especialmente no que tange à argumentação. É sobre essa reflexão que nos aprofundaremos.
A origem dos trailers cinematográficos: Uma viagem no tempo
No decorrer da minha pesquisa, descobri uma série de particularidades sobre a origem dos trailers cinematográficos, seus contextos de produção e sua relação com a audiência. Compartilharei algumas dessas informações para que vocês se familiarizem, do ponto de vista sócio-histórico, com o gênero.
Os primeiros esboços do que viria a ser o trailer cinematográfico no formato atual remontam ao início do século XX, mais precisamente a 1912. Inicialmente, o “trailer” era uma faixa preta adicionada ao final de cada filme para proteger a película. Sua primeira utilização com função promocional, tal qual conhecemos hoje, ocorreu durante a exibição de um episódio da série “O que aconteceu com Mary?”. Ao final de cada episódio, uma parte do texto exibia a mensagem: “Veja o episódio da próxima semana” ou “Continua na próxima semana”.
Naquela época, o cinema, como inovação tecnológica, atraía multidões às salas de exibição, curiosas pela projeção das imagens em movimento. Com o tempo, contudo, o apelo da novidade diminuiu. Os proprietários dos cinemas, que também detinham os estúdios de produção de filmes, precisaram, então, conceber uma estratégia de marketing para manter a audiência e consolidar, entre a parcela da população com acesso a bens culturais, o hábito de frequentar essas salas.
Os exibidores perceberam, então, que as sessões de cinema se tornariam um hábito apenas se as pessoas fossem atraídas pelas histórias dos filmes. Ficou evidente, para os empreendedores da indústria cinematográfica da época, que a melhor forma de manter a venda de ingressos era promover esse novo “produto” cultural. Diante da percepção desse nicho de mercado, a Paramount foi a primeira produtora a criar, em 1916, sua própria divisão publicitária.
Com o crescimento da demanda, o mercado se especializou, criando nichos. Os exibidores passaram a ser responsáveis apenas pela comercialização dos filmes, e surgiram estúdios e produtoras com propósitos específicos: alguns dedicados à produção de longas e curtas-metragens, enquanto outros se especializaram em estratégias publicitárias para a promoção dessas obras. Assim, surgiram as trailer houses, empresas especializadas em desenvolver, em parceria com os grandes estúdios, um sistema de gêneros promocionais que hoje abrange desde a criação de pôsteres e cartazes, anúncios para televisão e internet, teasers e, naturalmente, os trailers cinematográficos.
Trata-se de uma indústria que movimenta milhões e que conquistou reconhecimento tanto do público quanto da crítica especializada. Prova disso é a criação, em 1999, nos Estados Unidos, do Golden Trailer Awards (GTA), uma cerimônia que julga e premia as melhores produções de trailers cinematográficos do ano em diversas categorias. Essa breve contextualização nos permite reconhecer que o trailer cinematográfico é um gênero pertencente ao domínio discursivo da publicidade e, como tal, compartilha diversas características com outros tipos de anúncio, especialmente no que tange ao uso de estratégias de persuasão.
Há, no entanto, uma particularidade que define o gênero: enquanto a maioria dos anúncios promove produtos exaltando características palpáveis — como custo-benefício, eficácia, sabor, valor nutricional e distinção social —, o trailer cinematográfico dialoga diretamente com as emoções dos espectadores. Para compreendermos como a linguagem atua na construção dos sentidos desse gênero, é fundamental abordarmos a retórica.
A arte de persuadir: Retórica e multimodalidade nos trailers cinematográficos
Os trailers cinematográficos podem ser definidos como textos intensamente multimodais, nos quais diversos modos semióticos são combinados, e partes de textos originalmente criados para outras finalidades são transferidas, reorganizadas e suplementadas para alcançar um propósito promocional (adaptado de Maier, 2009). Essa definição salienta que, embora atrelado ao produto que promove, o trailer cinematográfico possui sua própria construção narrativa.
Embora o trailer cinematográfico ofereça ao público uma síntese do enredo do filme que promove, sua função primordial é envolver a audiência emocionalmente, motivando-a a sair de casa e pagar pelo ingresso. Para essa audiência, fatores como o valor do ingresso, a comodidade de assistir a um filme em casa sem enfrentar trânsito ou filas, no dia e horário mais convenientes, tornam-se secundários diante da emoção de acompanhar uma história na tela do cinema.
Trata-se de uma escolha não racional, mas emocional. E os produtores do gênero estão cientes disso. A construção do discurso persuasivo dos trailers cinematográficos apoia-se, portanto, em pressupostos da retórica. Desde a Antiguidade Clássica, filósofos que estudavam o poder de persuasão do discurso argumentativo, a exemplo de Aristóteles, defendiam que a elaboração de uma argumentação eficaz dependia, em geral, de uma combinação de fatores que extrapolava a ordem do verbal.
Os argumentos incorporavam discussões de ordem filosófica, meticulosamente organizadas em textos que reuniam, além dos argumentos verbais, estratégias de persuasão como o gestual, a postura corporal dos oradores, seu posicionamento e proximidade em relação à audiência. O discurso, por meio do qual o orador buscava atingir e obter a adesão do auditório, deveria ser muito bem estruturado, a partir de provas socialmente reconhecíveis e aceitas, a ponto de o público abrir mão de fatos irrefutáveis para legitimá-lo.
As provas técnicas, segundo Aristóteles, eram obtidas pela reunião de estratégias retóricas desenvolvidas pelo orador. Tais provas, ou apelos, eram classificadas como ethos, pathos e logos. O ethos diz respeito à forma como o orador se apresenta diante da audiência, à imagem que constrói de si. O pathos seria a manifestação dos sentimentos e emoções do orador por meio do discurso e, por fim, o logos diz respeito à organização estrutural do discurso a partir da lógica, estando, portanto, mais relacionado à racionalidade.
Essas três provas, em geral, atuam de forma conjunta, podendo, a depender do efeito pretendido, uma delas influenciar mais contundentemente a maneira como o discurso é construído e como o orador se relaciona com a audiência. No caso dos trailers cinematográficos, a estratégia patêmica — ou seja, o uso de recursos filiados ao pathos — é fundamental.
Trailers cinematográficos na prática: Análise de casos
A principal categoria do Golden Trailer Awards, “Best in Show”, apresenta uma seleção de filmes promocionais feita por um júri especializado, que é então submetida ao voto popular. O vencedor mais recente foi o trailer cinematográfico de “Deadpool & Wolverine” (Marvel Studios). No filme, o mercenário Wade Wilson — que incorpora a persona de Deadpool — tenta viver uma vida aparentemente pacata ao lado de sua esposa e amigos, enquanto Wolverine, um X-Men já em decadência, busca recuperar-se de seus ferimentos. A trama se desenrola quando um inimigo comum ameaça a sociedade, levando-os a unir forças para combatê-lo. Já no início do trailer cinematográfico, as personalidades e condições das personagens centrais (já conhecidas do público em produções anteriores) são evidenciadas:

O início da sequência apresenta um homem sentado no balcão de um bar, sendo hostilizado pelo barman que se recusa a servi-lo. As cenas sugerem a construção de um estereótipo de vulnerabilidade e indesejabilidade, contrastando com a imagem de um super-herói valorizado e admirado. O movimento da câmera revela seu rosto, e o espectador reconhece a icônica costeleta do X-Men Wolverine.
Deadpool o aborda, apresentando-se não apenas pelo traje característico, mas também pelo deboche com que se refere a Wolverine. A partir desse momento, o diálogo explora os traços de personalidade de cada protagonista: um é insistente, debochado e inconveniente (Deadpool), enquanto o outro é soturno, mal-humorado e impaciente (Wolverine).
A junção inusitada desses personagens clássicos da cultura pop aguça a curiosidade dos espectadores. Wolverine é um personagem da franquia X-Men, uma série de quadrinhos de super-heróis mutantes publicada pela Marvel Comics e, posteriormente, adaptada com grande sucesso pelos Estúdios Marvel para o cinema. Também criado no universo Marvel, Deadpool é um anti-herói em toda a acepção do termo: irônico, debochado, de moral duvidosa, ele transita no limiar da vilania.
A tendência de humanizar os super-heróis, antes apresentados ao público como infalíveis, moralmente inabaláveis e de força descomunal, tem sido empregada pelos estúdios como estratégia para gerar identificação e empatia na audiência e, consequentemente, conquistar fãs.
À medida que as discussões sobre gênero ganharam popularidade, a sociedade passou a problematizar a fórmula desgastada de personagens masculinos que não demonstravam vulnerabilidade, o que impactava diretamente os super-heróis. No trailer cinematográfico de “Batman, o Cavaleiro das Trevas” (também premiado na nona edição do GTA), já era possível observar Bruce Wayne, personagem que encarna a persona do Homem-Morcego, em conflito:

Nesse caso, o personagem do Coringa se destaca como a grande estrela do trailer cinematográfico. Na época do lançamento, o burburinho foi intensificado pelo falecimento do ator Heath Ledger, que interpretava o vilão, antes da estreia do filme, por overdose de ansiolíticos e calmantes, extenuado pelo trabalho de construção da personagem. O trailer cinematográfico evidencia, para a audiência, essa dualidade entre o bem — teoricamente representado por Bruce Wayne/Batman — e o mal, personificado pelo próprio Coringa através da narração.
Em ambos os exemplos de trailers cinematográficos, tanto o de “Deadpool & Wolverine” quanto o de “Batman, o Cavaleiro das Trevas”, foram empregados recursos semióticos como trilha sonora, sons de explosões, tiros, socos e transições aceleradas, típicas da dinâmica dos filmes de ação. Além disso, destacou-se o componente do estranhamento, causado pela junção de personagens tão distintos em postura e linguagem (Deadpool e Wolverine), e pelo realce de um vilão que, apesar de perverso, demonstrava mais carisma que o herói da trama (Coringa e Batman).
É importante ressaltar que, no processo persuasivo dos trailers cinematográficos, a linguagem visual figura como um dos recursos retóricos mais eficientes. Além das imagens, outros importantes recursos de persuasão incluem a trilha sonora, a tipografia escolhida para títulos e outros textos verbais inseridos, a narração e o uso de diálogos marcantes do filme. Esses elementos, além de serem responsáveis pela condução narrativa idealizada pelos produtores, são empregados de forma tão recorrente que estabelecem uma relação emocional de identificação, reconhecimento e familiaridade entre o gênero e a audiência.
Considerando os aspectos destacados, o discurso argumentativo nos trailers cinematográficos exige da audiência a percepção dos seguintes elementos característicos do gênero:
- A narrativa construída no trailer cinematográfico é uma leitura pessoal (ou institucional), intencional e motivada por fatores diversos do seu produtor. Trata-se de uma perspectiva, um ponto de vista em relação ao filme que é apresentado ao público. Dessa forma, não há compromisso com a fidelidade total ao enredo original; o trailer cinematográfico é uma interpretação.
- A persuasão no trailer cinematográfico ocorre a partir da relação emocional entre a audiência e o orador (neste caso, o produtor), intermediada pelo discurso. Esse discurso é construído pela orquestração de diversos recursos semióticos: visuais (tipos de plano, posição e movimento da câmera, cor, tipografia), verbais (legendas) e auditivos (narração e sons diegéticos e não diegéticos).
- Os modos de representação atuam de forma conjunta, motivada e contextualizada social e culturalmente para produzir sentido. Operando de maneira orquestrada, eles constroem os sentidos da narrativa e provocam emoções no espectador, que se permite envolver pelas estratégias empregadas, muitas vezes sem ter consciência dos esforços conjugados e do planejamento por trás da produção do gênero.
- Embora haja um respeito a elementos formais e características intrínsecas ao gênero, cada trailer cinematográfico possui uma constituição própria, em função de objetivos específicos.
Sobem os créditos: Considerações finais sobre a argumentação em trailers cinematográficos
A análise de trailers cinematográficos confirma pressupostos importantes que sustentam os estudos retóricos contemporâneos. Para promover nossas ideias e pontos de vista em diversas situações de interação cotidiana, estamos sempre negociando sentidos, escolhendo modos de dizer — e de representar significados a partir da combinação de diferentes modos de representação da linguagem — para influenciar nossos interlocutores.
No que diz respeito à Educação Básica, destacamos que o ensino de argumentação não se restringe apenas aos professores de Língua Portuguesa. A competência argumentativa, segundo Platin (2008), desenvolve-se a partir da organização do planejamento lógico-discursivo, que engloba a competência da fala em suas múltiplas dimensões (emocional, objetal, relacional). Não basta saber falar para saber argumentar; são necessárias competências e aprendizagens específicas.
Sendo assim, cabe a todos nós, em nossas distintas áreas de atuação docente, contribuir para que nossos estudantes (re)conheçam, identifiquem, analisem e apliquem recursos diversos que favoreçam o desenvolvimento de um discurso argumentativo eficiente, considerando os seguintes aspectos:
- A argumentação é uma das dimensões constitutivas da linguagem e está presente em todo e qualquer texto, seja ele predominantemente oral, escrito ou imagético.
- Os recursos retóricos que atuam na organização dos textos não são meros adornos formais, nem visam apenas embelezar o texto. São, na verdade, escolhidos pelo produtor, de forma consciente, para produzir sentidos, construir juízos de valor, formar opiniões e gerar adesão ao discurso.
- Argumentar pressupõe intencionalidade e aceitabilidade; portanto, é crucial ter consciência do contexto de produção, dos propósitos associados aos textos e do perfil dos interlocutores.
- Assim como não existe linguagem neutra, não existe percurso argumentativo que não mobilize crenças e valores dos interlocutores; sendo assim, ele é de base contextual.
Referências
BORBA, Paloma. A construção dos sentidos no trailer cinematográfico: aspectos sociorretóricos. Tese (Doutorado em Letras). Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco. Recife, PE. 2013. Disponível em: https://www.pgletras.com.br/_documentos/acervo/teses/2013/linguistica/paloma_pereira_borba_pedrosa.pdf. Acesso em: 19 maio 2025. MAIER, Carmen Daniela. Visual Evaluation in Film Trailers. Visual Communication, 2009, pp.159-180. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/1470357209102112. Acesso em: 19 maio 2025. PLATIN, Christian. A argumentação: histórias, teorias, perspectivas. Tradução Marcos Marcilonilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
Sobre a Autora
Paloma Borba é doutora em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). É professora adjunta do curso de Letras / Português da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e coordenadora do curso de Especialização em Estudos da Linguagem e Formação Docente (LINFOR/UFRPE). Atua na área de Linguística, com ênfase nos estudos sobre Gêneros Textuais, Multimodalidade, Letramentos e na Linguística Aplicada ao Ensino de Língua Portuguesa.uística Aplicada ao Ensino de Língua Portuguesa.
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