O papel da escola pública na construção de valores socioambientais

O debate central: escola como mercado vs. escola como formação cidadã
A reflexão sobre o papel da escola pública nos convida a revisitar uma questão essencial, já proposta por Michael Young e resgatada por Érika Dias em seu editorial, onde ela aborda para que servem as escolas? (2023). Essa pergunta, longe de ter uma resposta simples, expõe a tensão que define as políticas educacionais contemporâneas.
De um lado, há uma forte pressão para que a escola se concentre em preparar para o mercado de trabalho, moldando-se a uma lógica de resultados e eficiência. Do outro, emerge a visão da escola como um espaço fundamental para a formação de um cidadão consciente, crítico e pleno para viver em sociedade, uma tese que este texto defende veementemente.
Educação como direito social: a escola como bem comum e espaço de proteção
Ao nos alinharmos a esta segunda perspectiva, compreendemos a educação como um direito social e a escola como um bem comum, um projeto político coletivo que extrapola interesses individuais. Nessa visão, a escola pública se firma como um espaço de proteção social, cuja função vai muito além da simples socialização de conteúdos instrucionais.
Ela se torna o lugar onde se delibera sobre o modo de vida que, coletivamente, escolhemos preservar e onde se cultiva a base para uma sociedade mais justa e solidária. É a partir dessa concepção de escola que a construção de valores se torna não uma atividade acessória, mas uma tarefa central.
A oposição da “lógica das competências” e o risco de desumanização
Contudo, como alertam os autores Marques e Oliveira (2025), essa visão humanista enfrenta a forte oposição do que chamam de lógica das competências. Guiada pelos interesses do capital, essa abordagem tende a esvaziar a formação de sua profundidade teórica e crítica, promovendo um “saber fazer” pragmático que visa à adaptação dos sujeitos à ordem vigente.
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Ao reduzir a educação a um treinamento para o mercado, corre-se o risco de precarizar o trabalho docente e anular o potencial da escola como espaço de transformação, reforçando um modelo que, em sua essência, pode ser desumanizador.
O caminho freireano: educação como prática de humanização e emancipação
É em contraposição a essa lógica que a pedagogia freireana, revisitada por Eliana e Raimundo, oferece um caminho alternativo e potente. Ela nos lembra que a educação é, fundamentalmente, uma prática de humanização, um projeto que nos ensina a assumir nossa vocação de “sermos mais”.
Uma educação que se orienta pela problematização da realidade, pelo diálogo e pela consciência crítica não busca a conformidade, mas a emancipação. Portanto, a formação de valores socioambientais deve ser compreendida como um projeto educativo focado na formação de sujeitos conscientes de sua condição histórica e de seu poder de intervir no mundo.
O papel do professor dos anos iniciais na formação socioambiental
Para os professores dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, assumir esse papel significa entender que é nessa fase que as crianças começam a construir as bases de sua percepção sobre o mundo e a comunidade. A construção de valores socioambientais, sob essa ótica, não é sobre transmitir informações ou regras de comportamento. É um processo de cultivar a sensibilidade, a empatia e a curiosidade, de ajudar a criança a se perceber como parte de um todo interligado. O ponto de partida para essa jornada é, portanto, o despertar de um olhar atento e cuidadoso para a realidade que nos cerca.
Despertando um olhar curioso e cuidadoso
Redescobrindo o mundo: desnaturalização do cotidiano e observação atenta
A construção de valores socioambientais na escola começa com um convite à redescoberta do mundo que nos rodeia, incentivando a observação atenta e o silêncio. O objetivo inicial é desnaturalizar o cotidiano, ou seja, transformar o que é visto como comum em algo extraordinário e digno de atenção
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Este é um exercício para aguçar a percepção das crianças, estimulando-as a notar as texturas, os sons, as cores e as vidas que compõem o ambiente escolar, desde a formiga que carrega uma folha no pátio até o ciclo de vida da planta no jardim.
Pedagogia problematizadora: transformando curiosidade em pesquisa
Essa prática de observação atenta serve como alicerce para uma pedagogia problematizadora, como a defendida por Marques e Oliveira (2025). O papel do professor é fomentar perguntas que nascem da própria curiosidade infantil.
Uma poça d’água depois da chuva se torna uma oportunidade para questionar: “De onde veio essa água? Para onde ela vai quando o sol aparece?”. O lixo acumulado perto do portão vira o ponto de partida de uma investigação: “Quem colocou esse lixo aqui? Por quê? O que tem dentro dele?”.
Essa postura transforma as crianças em pequenas pesquisadoras de sua própria realidade, em sintonia com os ideais de uma educação libertadora.
Conexão entre percepção, empatia e cuidado com a vida
O olhar curioso é cultivado junto a um olhar cuidadoso. A construção de valores, como nos lembra a reflexão de Érika Dias (2023), é um processo de humanização e aperfeiçoamento do sujeito.
Por isso, a percepção do ambiente está intrinsecamente ligada à empatia. Ao investigar uma planta, a criança é convidada a pensar sobre o que ela precisa para viver. Ao observar os pássaros, ela pode refletir sobre onde eles encontram abrigo e comida. A escola, ao se assumir como um espaço de proteção social, torna-se o local ideal para cultivar o sentimento de cuidado com os colegas e com todas as formas de vida com as quais compartilhamos nosso espaço.
Ao final desta etapa, o resultado esperado é uma transformação na qualidade da atenção dos alunos. Eles aprendem que o mundo ao seu redor é cheio de histórias, conexões e mistérios a serem desvendados. Com essa nova lente de curiosidade e cuidado, a criança estará preparada para dar o próximo passo: organizar suas descobertas e começar a ler, de forma mais intencional e coletiva, o lugar que habita no mundo.
Lendo o nosso lugar no mundo
Da percepção à investigação: a escola como laboratório de pesquisa
Com o olhar das crianças agora mais atento e sensível, a jornada pedagógica avança da percepção para a investigação. A curiosidade despertada no primeiro eixo é canalizada para uma leitura intencional do território mais próximo e significativo para elas: a própria escola e seu entorno imediato. Este é o momento de aplicar a pedagogia freireana na prática, transformando a sala de aula e o pátio nos primeiros laboratórios de pesquisa dos alunos, onde eles aprendem a ler o mundo a partir do espaço que habitam.
Compreendendo o espaço coletivo: dinâmicas socioambientais em pequena escala
O foco desta etapa é aprofundar a compreensão da escola como um bem comum, conforme a reflexão proposta por Érika Dias (2023). A criança é convidada a investigar como esse espaço coletivo funciona, quem cuida dele e quais são as relações que ali se estabelecem. O olhar se volta para a sala de aula, o refeitório, os corredores e o pátio. O objetivo é que os alunos, por meio de suas próprias observações, comecem a perceber as dinâmicas socioambientais em pequena escala, seja o fluxo de pessoas, o uso da água e da luz, a geração de resíduos e os espaços de convivência.
Ferramentas lúdicas e participativas para a leitura crítica do território
Para que essa investigação seja rica e apropriada para os Anos Iniciais, são utilizadas ferramentas lúdicas e participativas. Os professores podem propor a criação de mapas afetivos, onde as crianças desenhem os lugares de que mais gostam na escola e também aqueles que as incomodam.
As caminhadas investigativas pelo quarteirão, equipadas com lupas e cadernos de anotação, permitem registrar descobertas, desde um canteiro abandonado até o caminho que o lixo faz depois de coletado. As conversas com funcionários, como o pessoal da limpeza ou da cozinha, revelam saberes valiosos sobre o funcionamento da escola, humanizando essas relações e valorizando todos os que nela trabalham.
Através dessas atividades, as crianças desenvolvem a capacidade de identificar problemas e potencialidades em seu ambiente. Elas deixam de ser apenas usuárias do espaço para se tornarem suas leitoras críticas. Este processo é um passo fundamental para a construção de uma consciência que, como defendem Eliana e Raimundo, se opõe à acomodação e ao ajustamento. Ao compreenderem as complexidades de seu próprio território, os alunos preparam o terreno para a próxima etapa: a ação coletiva e transformadora.
Pequenas ações, grandes transformações
Da reflexão à práxis: ação coletiva e transformadora na escola
Com certeza. Agora, vamos tecer a conclusão do nosso texto, que corresponde ao terceiro e último eixo da nossa estrutura, o momento da ação transformadora.
A jornada que começa com o despertar de um olhar curioso e avança para a leitura do mundo próximo encontra seu sentido pleno na ação. A partir do momento em que as crianças investigam e compreendem as dinâmicas do seu ambiente, surge naturalmente o desejo de intervir, de cuidar e de transformar.
Esse é o coração da práxis pedagógica que Eliana e Raimundo, inspirados em Freire, defendem, sendo um movimento contínuo entre refletir sobre o mundo e atuar para melhorá-lo. Para os alunos dos Anos Iniciais, essa intervenção no mundo acontece de forma concreta e imediata, tendo a própria escola como seu principal palco.
A escola como laboratório de cidadania: projetos que nascem dos alunos
A escola, compreendida como um bem comum e um espaço de proteção social, como nos lembra Érika Dias (2023), torna-se o laboratório ideal para a vivência da cidadania. As descobertas feitas durante a investigação no eixo anterior servem de base para que a turma, de forma coletiva, elabore e execute pequenos projetos.
O papel do professor é guiar esse processo, garantindo que as ações nasçam dos interesses e das percepções dos próprios alunos, para que eles se sintam verdadeiros protagonistas da mudança. A escola, assim, cumpre seu papel de formar para a vida em sociedade, ensinando na prática os valores da responsabilidade, da cooperação e do cuidado.
Exemplos de ações socioambientais para os anos iniciais
As possibilidades de ação são imensas e devem estar conectadas à realidade de cada turma e escola. Um grupo que investigou o desperdício de alimentos na merenda pode decidir criar uma pequena composteira no pátio, transformando o que era lixo em adubo para as plantas. Outra turma, incomodada com um espaço sem vida no jardim, pode organizar um mutirão de plantio, envolvendo outras classes.
Ações como a criação de cartazes para incentivar a economia de água nos banheiros, a organização de um “dia do brinquedo consertado” ou a revitalização de um canteiro são exemplos de como a força do coletivo, citada por Eliana e Raimundo, se materializa.
O impacto final: a construção de valores socioambientais pela vivência
Ao final, a grande transformação que buscamos talvez não seja a solução de um complexo problema ambiental, mas sim a mudança que ocorre dentro de cada criança. Ao participar de uma ação coletiva, por menor que seja, o aluno vivencia o poder de sua própria agência, aprende que sua voz e seu trabalho, somados aos dos outros, podem gerar um impacto positivo e visível.
É nesse processo que os valores socioambientais deixam de ser um discurso e se tornam uma experiência vivida, ajudando a criança a cumprir sua vocação de “ser mais”. A escola pública, ao cultivar essas pequenas sementes de ação e esperança, reafirma seu papel insubstituível na construção de cidadãos e de um futuro mais cuidadoso.
Minicurrículo do autor
Vinicius Cavichioli Rodrigues é mestrando em Gestão Ambiental pelo Instituto Federal de Pernambuco (IFPE), formado em Jornalismo pela Universidade do Oeste Paulista (Unoeste) e em Gestão Ambiental pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH/USP), além de ser Especialista em Desenvolvimento Sustentável. Com mais de doze anos de experiência na área ambiental, tem vivência tanto no setor público quanto no privado. Atuou como docente em cursos profissionalizantes no Senac e na graduação de Engenharia Ambiental na Universidade de Santo Amaro (Unisa), disseminando esse conhecimento e abordando temas alinhados com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, sempre com foco na temática ambiental. Recentemente trabalhou como Gestor de Unidades de Conservação no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Atualmente, é Analista de Meio Ambiente na JBS, desempenhando suas atividades na Unidade de Suape.
Referências
DIAS, É. A Educação e a escola. Para que servem as escolas? Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação, Rio de Janeiro, v. 31, n. 120, p. 621-629, jul./set. 2023. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ensaio/a/g96pfWK6JM8KrvMdN3TKHGQ/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 20 set. 2025.
MARQUES, E. S. A.; OLIVEIRA, R. N. M. A pedagogia freireana perante a lógica das competências: um projeto de educação que nos ensina a ser mais. Revista Brasileira de Educação, v. 30, e300068, 2025. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/YT6kkJqsd8ChkdhXYnG7dKN/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 21 set. 2025.
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