alunos que exemplificam o multiculturalismo e a educação

O E-docente vai conversar hoje multiculturalismo e educação, de modo a trabalhar esse assunto tão importante nos dias atuais na formação de cidadãos mais conscientes e capazes de transformar a sociedade.

Em tudo em nossa vida, para falarmos sobre qualquer assunto, devemos ter um ponto de partida. E sobre o Multiculturalismo, não é diferente.

De onde partimos?

Partimos do princípio de que, se por um lado vivemos em uma sociedade multicultural, multirracial e multiétnica, por outro lado, temos dificuldade de lidar com as diferenças. De acordo com Candau (2008a, p. 116): “A sociedade está informada por uma visão cultural hegemônica de caráter monocultural. Especialmente a educação está muito marcada por esse caráter monocultural”.

Em outras palavras, assumimos a herança das visões coloniais dos europeus e norte-americanos em relação aos povos colonizados, vistos como escravos ou serviçais. Esta posição assumiu a ideia de construção de uma cultura comum, deslegitimando dialetos, saberes, línguas, crenças e valores diferentes pertencentes a grupos considerados inferiores (CANDAU, 2008a).

Fomos socializados para ver o “outro” como uma ameaça, prestes a nos confrontar, e o tratamos como inferior, ou seja, de modo hierarquizado. Não respeitamos o outro, que é negado, silenciado, destruído até fisicamente, ou no imaginário coletivo, através da educação (CANDAU, 2008a).

Alguns exemplos são os povos originários assassinados, pretos e pardos presos injustamente ou mortos, transexuais fora do mercado de trabalho formal, enfim, quando observamos minorias, formadas pelos “diferentes”, também chamados de “outros”, sem direitos.

Todos somos afetados?

Ainda que façamos parte de uma sociedade multicultural, com tantos desafios relacionados à diminuição das desigualdades e à inclusão social, nem todos os indivíduos são igualmente afetados. São os “outros”, com suas características sociais e étnicas, que não se enquadram em uma sociedade marcada pela competitividade e pela lógica do mercado, os “perdedores”, os “descartáveis” que são impedidos de acessar sua cidadania diariamente (CANDAU, 2008a).

O multiculturalismo e educação

O multiculturalismo parte do princípio de que não há culturas atrasadas ou evoluídas. Há culturas, e estas estão ligadas a como os grupos habitam um território, como criam valores e significados que dão sentido à vida (CANDAU, 2008a). Então, falar de multiculturalismo é falar de diversidade. Diversidade de ser, de viver e habitar um espaço coletivamente.

Por outro lado, multiculturalismo também remete à igualdade de direitos: direitos humanos, direitos à educação, à moradia, à terra e a condições de vida dignas. Neste sentido, observamos a perspectiva de Santos (2003, p. 56):

Temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito de ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.

Porém, há culturas invisibilizadas, culturas que são inferiorizadas e postas de lado nas sociedades. Na América Latina observa-se em um primeiro momento as populações negras, indígenas e as mulheres, mas também é possível perceber esse olhar inferiorizante para pessoas LGBTQIA+, pessoas com deficiência e aquelas que vivem em condições de vulnerabilidade social e econômica.

Esses grupos podem ser invisibilizados também na escola, quando esta não reforça sua autoestima e assume um modelo colonial, europeu ou americanizado (CANDAU, 2008a).

A sociedade, através de suas instituições, como a escola, pode difundir o epistemicídio. Com isso, a formação de uma consciência sobre as diferentes formas de agir e pensar no mundo ficam confusas, ou até reforçam os preconceitos.

Mas o que é o epistemicídio?

É o

“[…] processo de destituição da racionalidade, da cultura e civilização do Outro” (SANTOS, 1995, p. 328). É a forma de operar da empreitada colonial, a partir de sua visão civilizatória, que alcançará sua formulação plena no racialismo do século XIX (CARNEIRO, 2005).

O epistemicídio silencia e apaga os saberes e os conhecimentos das populações subalternizadas, fazendo com que os indivíduos reconheçam e assumam o modelo ocidentalizado de cultura, que por sua vez também sofre um recorte, conforme avalia Santos (1995, p. 328):

(…) o genocídio que pontuou tantas vezes a expansão europeia foi também um epistemicídio: eliminaram-se povos estranhos porque tinham formas de conhecimento estranho e eliminaram-se formas de conhecimento estranho porque eram sustentadas por práticas sociais e povos estranhos. Mas o epistemicídio foi muito mais vasto que o genocídio porque ocorreu sempre que se pretendeu subalternizar, subordinar, marginalizar, ou ilegalizar práticas e grupos sociais que podiam ameaçar a expansão capitalista (…) ocorreu tanto no espaço periférico, extra europeu e extra-norte-americano do sistema mundial, como no espaço central europeu e norte-americano, contra os trabalhadores, os índios, os negros, as mulheres e as minorias em geral (étnicas, religiosas, sexuais) (SANTOS, 1995, p. 328).

A ideia de que as relações entre brancos, negros e indígenas foram e são harmoniosas é um mito, uma falseamento da realidade. A escola reforça o epistemicídio quando não discute o racismo, o machismo, a homofobia e o etnocentrismo, invisibilizando as diferenças.

Ou quando se atém apenas às datas comemorativas para tratar da diversidade cultural, em vez de se comprometer durante todo o ano letivo com uma educação plural.

A educação pode ser libertadora na medida em que se alinha com o multiculturalismo, contribuindo para a ampliação do imaginário coletivo, com as diversas representações das identidades sociais e culturais presentes na nossa sociedade. Mas não é só isso.

Afinal somos iguais ou somos todos diferentes?

Antes dos anos 1970, as lutas coletivas tinham a igualdade como referência, como as reivindicações encampadas pelos sindicatos. Pierucci (1999) afirma que desde os anos 70 a consciência de que nós somos diferentes se ampliou, mudou, bem como a atmosfera cultural e ideológica.

Com isso, as lutas por direitos se fortaleceram em torno das identidades – de mulheres, negros, LGBTQIA+, etc. –, tendo o respeito às diferenças como norte para a busca de direitos específicos a determinados grupos.

Somos diferentes, e, para ampliarmos nossa cidadania, isso deve ser traduzido em termos de direitos e políticas públicas. Aliás, esta é uma marca importante para pensarmos o diálogo entre igualdade e diferença, pois deste modo foi ampliada a consciência de que somos diferentes de direito e de fato. O que se deseja a partir de então é o direito de ser pessoal e coletivamente diferente (PIERUCCI, 1999).

Por isso, além das declarações formais de reconhecimento dos grupos que foram historicamente renegados na construção da identidade brasileira, são necessárias políticas de valorização da diversidade, bem como aquelas que ampliam o acesso a oportunidades e ao poder (CANDAU, 2008b).

A educação multicultural

A educação multicultural vai na direção da valorização da diversidade cultural, do combate ao racismo e às discriminações.

Em entrevista, o antropólogo Muniz Sodré afirma que a educação deveria deixar de ser uma “máquina de diplomas e atividades burocratizantes” (TRINDADE, 1999, p. 5), e um dos caminhos é através do reconhecimento da diversidade.

A escola pode ajudar o indivíduo a descobrir que outros mundos são possíveis e outras realidades podem ser aprendidas, além daquelas que já conhecemos, que a Europa criou (TRINDADE, 1999).

Como disse Freire (1977), a educação humaniza o homem e a mulher e pode ajudá-los a caminhar em direção à ampliação da cidadania e à construção de um mundo mais justo.

Por que o multiculturalismo e educação é importante?

Porque precisamos olhar de frente as exclusões, se quisermos construir um mundo mais inclusivo. É preciso incluir porque é o momento de construirmos algo diferente, no sentido da diminuição das desigualdades sociais (CANDAU, 2008b), que alimentamos pelos preconceitos dirigidos aos “diferentes” e pelas desigualdades de oportunidades as quais estão submetidos. 

Conclusão (ou para onde vamos?)

O caminho até a educação multicultural passa por barreiras. Hooks (2017) chama a nossa atenção para o fato de que professores e alunos ainda têm que aprender a aceitar formas distintas de conhecer em um contexto multicultural, e se abrir para novas epistemologias.

Nesse processo de construção de uma educação multicultural, a criação de pontes com os grupos considerados “diferentes” é fundamental, visto que a educação multicultural se realiza a partir da interculturalidade, que investe no diálogo entre as culturas (CANDAU, 2008b).

O reconhecimento da diversidade muitas vezes vai ao encontro do orgulho de ocupar um território, de viver em comunidade, de celebrar as raízes da ancestralidade, que por sua vez se abre também às novas configurações da cultura, desde que o diálogo possa enriquecer ambas as partes.

Para isso, é preciso reconhecer a influência do Norte Global, basicamente formado pelos países da Europa Ocidental e Estados Unidos, e trabalhar em sala de aula também no sentido inverso, ou seja, criar estratégias de reconhecimento da riqueza cultural do Sul Global, principalmente a partir dos países da América Latina e do continente africano.

O Jongo da Serrinha, grupo de dança e batuque da cidade do Rio de Janeiro, e o canto de Clementina de Jesus, música ancestral ecoada pelos negros escravizados e seus descendentes, são manifestações desse orgulho de ser e de ocupar um lugar no mundo. A filosofia africana e a literatura indígena também.

Referências

CANDAU, Vera Maria. Multiculturalismo, educação e direitos humanos. In: CANDAU, Vera Maria; SACAVINO, Suzana (org.). Educação em direitos humanos: temas, questões e propostas. Rio de Janeiro: DP&A, 2008a.

CANDAU, Vera Maria. Direitos humanos, educação e interculturalidade: as tensões entre igualdade e diferença. Revista Brasileira de Educação, v. 13, n. 37, jan./abr. 2008b.

CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 7 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2017.

PIERUCCI, Antônio Flávio. Ciladas da diferença. São Paulo: Editora 34, 1999.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice. São Paulo: Cortez Editora, 1995.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitanismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

TRINDADE, Azoilda; SANTOS, Rafael dos (org.) Multiculturalismo: mil e uma faces da escola. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.