Quando falamos ou escrevemos, nossas escolhas linguísticas são determinadas pelo contexto de produção, ou seja, pelo gênero a ser produzido, pelo nosso interlocutor, pelo suporte onde esse texto irá circular.

As nossas escolhas linguísticas também marcam o lugar social que ocupamos, as ideias que temos a respeito das coisas, como destaca Bagno em seu texto Falar X comunicar?: usamos a língua “para comunicar quem somos, de onde viemos, a que comunidade pertencemos”. 

Assim, já podemos chegar a duas breves conclusões: as nossas escolhas linguísticas não são aleatórias e essas escolhas, expressas em diferentes modos de dizer, provocam variados efeitos de sentido no interlocutor.

Quer saber mais sobre como as nossas escolhas linguísticas se determinam pelo contexto com as quais produzimos? Então, confira o conteúdo a seguir!

Saiba mais sobre nossas escolhas linguísticas e produção de sentidos a serviço da leitura

Saiba mais sobre nossas escolhas linguísticas e produção de sentidos a serviço da leitura

Como dissemos, nossas escolhas linguísticas não são aleatórias e cada uma delas, expressas em diferentes modos de dizer, provocam variados efeitos de sentido no outro.

Essa conclusão revela a necessidade de uma mudança de perspectiva no ensino de Português, já proposta por Geraldi (1984) na obra “O texto na sala de aula: leitura & produção”: as práticas de análise linguística como uma alternativa ao ensino tradicional de gramática.

Essas práticas, entendidas como complementares às práticas de leitura e de produção de textos orais e escritos, possibilitam reflexões sobre questões não apenas gramaticais, mas também textuais e discursivas.

Em um ensino voltado para as práticas de análise linguística, muda-se o foco do trabalho com a língua em vários aspectos como, por exemplo, da estrutura das frases e da fixação das regras em exercícios repetitivos para a análise da função social dos gêneros e para a reflexão sobre a adequação do registro à situação de comunicação.

Nessa perspectiva, os efeitos de sentido constituem o ponto central das discussões realizadas em sala de aula (MENDONÇA, 2006). 

Por que esta palavra e não outra?

Certamente, você já deve ter observado, em chamadas de notícias divulgadas na mídia, que alguns termos são escolhidos por determinados veículos midiáticos em detrimento de outros.

Alguns exemplos são as palavras invasão e ocupação: a primeira, com carga semântica negativa, indica ação contraventora; apropriação, sem autorização, do espaço do outro; a segunda, com carga semântica positiva, remete a uma atitude produtiva, necessária para preencher vazios, nesse caso, da terra, da produção, da oportunidade. Podemos observar esses usos nos casos a seguir:


MST invade sede da Aprosoja, picha paredes e apedreja o prédio

Grupo chegou ao local, em Brasília, na manhã desta quinta-feira (14) e deixou o lugar depredado”

Fonte. Acesso em 16 de agosto de 2022.

PB: MST retoma ocupação de terras dentro da jornada de lutas “Por Terra, Teto e Pão

Cerca de 40 famílias estão acampadas nas terras pertencentes à antiga Fazenda Maravilha, localizada às margens da BR 101″

Fonte. Acesso em 16 de agosto de 2022

A escolha pelos termos invadir ou ocupar não é aleatória; pelo contrário, expressa a leitura de mundo de quem a faz.

Por esse motivo, Bagno afirma com veemência: “A língua é muito mais do que um simples instrumento de comunicação. Ela é palco de conflitos sociais, de disputas políticas, de propaganda ideológica, de manipulação de consciências, entre muitas e muitas outras coisas”.

Assim, entendemos que o veículo que opta pelo termo invasão mostra-se ideologicamente contra o movimento; por sua vez, aquele que escolhe ocupação demonstra adesão às ideias defendidas pela causa.

Além dessas preferências lexicais, que revelam muito sobre o modo como aprendemos a realidade, há outras escolhas linguísticas que apontam para a natureza da função social dos diversos gêneros que circulam no nosso dia a dia e apontam também para a produção de diferentes efeitos de sentidos no interlocutor.

Demais escolhas linguísticas


Por exemplo, os verbos no modo imperativo estão presentes em diversas construções textuais, mas com diferentes finalidades:

  1. nos anúncios ou campanhas publicitárias, o uso desse modo verbal objetiva convencer o leitor a consumir determinado produto ou a praticar determinada ação; 
  2. nas receitas culinárias e nos textos instrucionais, esses verbos expressam orientação, indicação de como agir para alcançar o propósito de fazer uma comida ou montar um equipamento, se for o caso; 
  3. nas orações e rezas, o verbo no imperativo expressa pedido, súplica. 

Como se vê, há diferentes motivos para o uso dos verbos no modo imperativo nesses textos, que se justificam pela funcionalidade do gênero e pelos efeitos de sentido a serem provocados no interlocutor.

Compreendendo escolhas e construindo sentidos

Compreendendo escolhas e construindo sentidos

Bons exemplos de como as escolhas linguísticas produzem diferentes sentidos estão nos textos poéticos, como nas letras de canções.

Vejamos como isso se dá em “Construção”, de Chico Buarque de Hollanda, considerada uma das canções mais brilhantes da Música Popular Brasileira.

Construção

Amou daquela vez como se fosse a última

Beijou sua mulher como se fosse a última

E cada filho seu como se fosse o único

E atravessou a rua com seu passo tímido

Subiu a construção como se fosse máquina

Ergueu no patamar quatro paredes sólidas

Tijolo com tijolo num desenho mágico

Seus olhos embotados de cimento e lágrima

Sentou pra descansar como se fosse sábado

Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe

Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago

Dançou e gargalhou como se ouvisse música

E tropeçou no céu como se fosse um bêbado

E flutuou no ar como se fosse um pássaro

E se acabou no chão feito um pacote flácido

Agonizou no meio do passeio público

Morreu na contramão, atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse o último

Beijou sua mulher como se fosse a única

E cada filho seu como se fosse o pródigo

E atravessou a rua com seu passo bêbado

Subiu a construção como se fosse sólido

Ergueu no patamar quatro paredes mágicas

Tijolo com tijolo num desenho lógico

Seus olhos embotados de cimento e tráfego

Sentou pra descansar como se fosse um príncipe

Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo

Bebeu e soluçou como se fosse máquina

Dançou e gargalhou como se fosse o próximo

E tropeçou no céu como se ouvisse música

E flutuou no ar como se fosse sábado

E se acabou no chão feito um pacote tímido

Agonizou no meio do passeio náufrago

Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina

Beijou sua mulher como se fosse lógico

Ergueu no patamar quatro paredes flácidas

Sentou pra descansar como se fosse um pássaro

E flutuou no ar como se fosse um príncipe

E se acabou no chão feito um pacote bêbado

Morreu na contramão atrapalhando o sábado

Fonte: HOLLANDA, Chico Buarque. Construção [CD]. São Paulo: Gravadora Phillips, 1971

Reflexão

A partir da letra dessa canção, podemos refletir, de um modo mais geral, sobre as estruturas sociais e os modos de organização do trabalho; sobre como o operário brasileiro trabalha sob condições insegurança; sobre como suas tarefas são realizadas de forma mecânica e pouco reflexiva; sobre a realidade do trabalhador socialmente excluído, que é, por isso mesmo, invisível, anônimo; sobre a precarização do trabalho e a banalização da morte, entre outros temas.

Podemos, ainda, pensar sobre como a narrativa é construída nessa letra de canção: trata-se de histórias diferentes ou de uma única história contada sob diferentes pontos de vista?

Atentando para algumas escolhas linguísticas e seus efeitos

De todas essas reflexões possíveis, tomemos pelo menos duas delas para refletir a partir das escolhas linguísticas feitas pelo compositor:

  1. a realização do trabalho de forma mecânica e pouco reflexiva e; 
  2. a realidade do trabalhador socialmente excluído, que é, por isso mesmo, invisível, anônimo.

Observemos que a letra da canção é formada por versos que se repetem, havendo mudança apenas nas últimas palavras ao final desses versos.

A história começa e recomeça mais duas vezes, como se fossem ciclos idênticos que se abrissem e fechassem ou, ainda, como se fosse um círculo vicioso.

Essas escolhas remetem ao modo como o trabalho era mecânico, rotineiro e pouco reflexivo, realizado “tijolo por tijolo”, ou seja, repetitivamente, sem uma ação reflexiva do trabalhador que pudesse mudar os “rumos da(s) história(s)”.

Atentemos, ainda, para o fato de todos os versos serem iniciados pelas ações praticadas, sem indicação expressa do sujeito que as pratica, o qual não tem nome. Essa opção pelo sujeito elíptico pode indicar justamente a invisibilidade do trabalhador e a ausência dos seus direitos.

Outra reflexão importante a ser feita a partir das escolhas linguísticas realizadas pelo autor da canção tem a ver com o fato de todos os versos terminam com palavras proparoxítonas.

Se considerarmos que a maioria das palavras da nossa língua são paroxítonas e que a menor parte é composta de proparoxítonas, podemos interpretar o próprio trabalho de criação da música como uma construção – daí mais uma possibilidade de compreender o título do texto, que não estaria se referindo apenas ao trabalho do operário na construção civil, que ergue paredes “tijolo por tijolo”, mas também ao trabalho do compositor que, palavra por palavra, estaria construindo possibilidades de sentidos para a canção. 

Conclusão

Conclusão

Como é possível observar, as análises aqui propostas consistem em reflexões sobre a língua e escolhas linguísticas que podem ser caracterizadas como práticas de análise linguística a serviço da leitura, uma vez que a análise linguística, compreendida verticalmente, não é um fim em si mesma, mas um meio, uma ferramenta para ampliar as habilidades de leitura e de produção de textos orais e escritos.

A partir dos exemplos trazidos, entendemos que, quanto mais favorecerem a compreensão da língua em funcionamento nos diversos gêneros textuais, melhor nosso aluno lerá, sendo capaz de desvelar os sentidos dos textos e de constituir-se um leitor maduro e atento aos diferentes modos de dizer – e de ser – pela linguagem.

Gostou de saber mais sobre como as nossas escolhas linguísticas se determinam pelo contexto com as quais produzimos? Então, confira o nosso artigo sobre como construir processos e elaborar atividades complementares!

Hérica Karina Cavalcanti de Lima
é Doutora em Educação (UFPE), na linha de pesquisa Educação e Linguagem, com período sanduíche no Laboratório de Investigação em Ensino de Português (LEIP), da Universidade de Aveiro/Portugal. É também Mestra em Educação (UFPE), na linha de pesquisa Didática de conteúdos específicos, Especialista em Língua Portuguesa e licenciada em Letras (UPE). Atua como professora adjunta do Departamento de Letras da UFRPE e como docente colaboradora do Mestrado Profissional em Letras da UFPE. Realiza pesquisas e trabalhos nas áreas de ensino de língua materna, metodologias de ensino, formação de professores e materiais didáticos de Português.


Para saber mais 

BAGNO, Marcos. Falar x comunicar? Revista Carta Capital. Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/carta-fundamental/falar-x-comunicar . Acesso em 20 de março de 2011.

GERALDI, João. Concepções de linguagem e ensino de Português. In.: GERALDI, João Wanderley (Org.). O texto na sala de aula: leitura & produção. Cascavel: Assoeste, 1984.

MENDONÇA, Márcia. Análise linguística no Ensino Médio: um novo olhar, um outro objeto. In: BUNZEN, Clécio; MENDONÇA, Márcia (Orgs.). Português no Ensino Médio e formação do professor. São Paulo: Parábola Editorial, 2006, p. 199 a 226.