educação inclusiva e multiculturalismo

Partimos da educação inclusiva

Outro dia, uma famosa atriz brasileira afirmou em um programa de televisão que, se o teatro não for acessível para a pessoa com deficiência, não serve para mais ninguém.

Ainda que inicialmente a atriz estivesse falando de acessibilidade arquitetônica (rampas, portas largas etc.) e para as pessoas surdas, ela ampliou o conceito, afirmando que a acessibilidade deveria existir em todas as apresentações teatrais e que deveria ser a norma, e não a condição especial, caso alguém necessite[1].

Na pandemia, em um curso on-line de extensão sobre direitos humanos, da Universidade de São Paulo, uma pesquisadora enfatizou que as pessoas deveriam começar a se relacionar de forma mais leve com a doença mental, percebendo-a como uma coisa corriqueira, como uma enxaqueca[2].

O que esses pequenos relatos expressam? O que revelam sobre nossa sociedade? Por que nos chocamos com eles?

Ambos expressam uma plasticidade por parte das pessoas em ver a deficiência não a partir da falta, do desencaixe, do desalinho. Ambos deixam de procurar as causas em diagnósticos e se viram para a sociedade, questionando-a e provocando a reflexão sobre o quanto ela é responsável pela exclusão das pessoas com deficiência.

Os relatos caminham no sentido da inclusão, que, para Sassaki (2009, p. 10), é:

[…] como um paradigma de sociedade, é o processo pelo qual os sistemas sociais comuns são tornados adequados para toda a diversidade humana – composta por etnia, raça, língua, nacionalidade, gênero, orientação sexual, deficiência e outros atributos – com a participação das próprias pessoas na formulação e execução dessas adequações.

Tais relatos mostram também como podemos enxergar a diferença, desconstruindo as barreiras atitudinais, que dizem respeito às nossas atitudes discriminatórias e, por isso, se alinham ao paradigma da educação inclusiva, que enxerga a diversidade a partir da riqueza da convivência entre os diferentes.

Conceitos da educação inclusiva

Segundo a Declaração de Salamanca (1994), a educação inclusiva é aquela que abre as portas da escola para acolher a diversidade de alunos:

  • com deficiências,
  • superdotados,
  • em risco de vida,
  • que vivem nas ruas,
  • negros e indígenas, acolhendo suas diferenças em termos linguísticos, étnicos, sociais e culturais.

Nesse sentido, não se trata apenas de acolher o público-alvo da educação inclusiva mais conhecido, ou seja, as pessoas com deficiência ou superdotadas, mas todos os que vivem em situação de vulnerabilidade e discriminação, por fazerem parte de grupos étnicos e sociais subalternizados.

Com o reconhecimento das diferenças e a ampliação das oportunidades para a diversidade, passam a se relacionar: educação inclusiva, inclusão social e democracia (MENDES, 2006).

A partir dos anos 1990, a busca por uma maior igualdade de oportunidades é o paradigma da educação inclusiva (ANTUNES; GLAT, 2019), que passa a considerar a diversidade não apenas de corpos, mas de condições sociais e culturais, destacando o quanto está atrelada às desigualdades sociais, denunciando o papel da escola, com a produção do fracasso escolar, como peça importante nesse jogo.

O movimento mundial pela educação inclusiva atua no sentido de fazer as pessoas perceberem que todos os alunos devem estar juntos, aprendendo e sem nenhuma discriminação (BRASIL, 2008).

A educação inclusiva se fundamenta nos direitos humanos, que veem igualdade e diferença como valores inseparáveis, e busca uma equidade formal ao contextualizar “a produção da exclusão dentro e fora da escola” (BRASIL, 2008, p. 1).

A educação inclusiva parte do princípio de que os ambientes heterogêneos facilitam a aprendizagem de todos, favorecendo seu crescimento e desenvolvimento (BRASIL, 2008).

O que diz a legislação

A Lei nº 9.394/96, ou Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, afirma o compromisso de que o público-alvo da educação inclusiva possua as mesmas oportunidades de socialização e desenvolvimento cognitivo e emocional que os demais alunos (BRASIL, 1996).

O Brasil retoma, no ano de 2023, a rota em direção à educação inclusiva, após ter revogado a Política Nacional de Educação Especial, de 2020, que apoiava o modelo de educação segregada, com escolas e classes especiais.

O norte retomado é dado pelas legislações que pensam a inclusão e as estratégias para alcançá-la, mas a questão que queremos discutir não está especificamente associada às leis voltadas para a inclusão, que são indiscutivelmente necessárias[3].

Aqui, convidamos o leitor a refletir sobre a mudança de olhar proposta pela educação inclusiva. Neste sentido, estamos todos envolvidos, e não apenas a escola.

Educação Inclusiva: O preconceito como obstáculo à inclusão

Segundo Crochík (2011), o preconceito é um obstáculo à inclusão que não tem a ver com a vítima, mas com as necessidades psíquicas que temos de nos relacionar apenas com o que idealizamos sobre as pessoas, seja inferiorizando-as ou valorizando-as.

Há uma reação idealizadora tanto na medida em que se aprecia quanto na que se deprecia o outro. Com isso, deixamos de ter contato com o outro ao ponto de nos identificarmos com ele, para considerar apenas o que pensamos sobre ele.

A idealização distancia os indivíduos. A identificação, ainda que possua certa idealização, aproxima.

Para o autor, negar a identificação – o processo de me ver no outro, ainda que em seguida seja para me distanciar dele, para formar a minha própria identidade, e vice-versa – é deixar de ver o outro como humano (CROCHÍK, 2011).

Por isso, nas relações humanas, o processo de identificação é fundamental, mas tem sido deixado de lado por conta da idealização, que nos afasta do outro, desumanizando-o e alimentando o preconceito. Agora vamos pensar o processo de idealização na sala de aula.

Antunes e Glat (2019, p. 5) chamam a atenção para o quanto a visão equivocada, irreal do aluno ideal vai impactar a forma como os “sujeitos ‘reais’ da educação” – aqueles que têm diferentes modos de aprender – serão vistos.

Isso porque as representações sociais dominantes caminham no sentido da inferiorização da diferença: “Permeado por representações que inferiorizam as pessoas como deficiência, o cotidiano da escola é marcado por uma série de equívocos pedagógicos” (ANTUNES; GLAT, 2019, p. 79).

A ruptura com o capacitismo

O preconceito dirigido a pessoas com deficiência é chamado de capacitismo (GALA, 2022). Para Santos et al. (2023, p.8), “o capacitismo se apresenta como força opressora, sistemática e estrutural na sociedade brasileira, assim como a misoginia e o racismo que discriminam e silenciam grupos considerados minoritários e/ou em situações de vulnerabilidade”.

Então, a mudança na forma como enxergamos a diferença é fundamental para a educação inclusiva.

Através da metodologia denominada História de Vida (ANTUNES, 2012), Antunes e Glat (2019) entrevistaram alguns jovens com deficiência intelectual das escolas públicas do Rio de Janeiro sobre o cotidiano escolar.

Baixa expectativa da parte dos professores, infantilização do sujeito deficiente, repetência, fracasso escolar, marginalização, salas superlotadas e dificuldade para entender a matéria e fixar conteúdos estão entre os acontecimentos narrados pelos estudantes.

Para as autoras, urge romper com atitudes marginalizadoras e limitadoras do potencial das pessoas com deficiência intelectual e com a visão que limita o potencial do cérebro.

Ações governamentais, estratégias de gestores e políticas públicas são fundamentais nesse processo, bem como práticas pedagógicas baseadas na educação inclusiva (ANTUNES; GLAT, 2019).

Mas, antes de qualquer coisa, um outro olhar voltado para o público da educação inclusiva é fundamental, e aqui não nos referimos apenas às pessoas com deficiência, mas aos pobres, aos alunos que têm que ajudar nas despesas do lar, aos negros, indígenas, refugiados, entre outros, ou seja, o já mencionado “sujeito ‘real’ da educação” (ANTUNES; GLAT, 2019, p. 5), com suas limitações e potencialidades.

Por isso, a desconstrução dos preconceitos é um passo importante na direção de um mundo mais inclusivo.

Conclusão

A educação inclusiva discute o lugar da escola como reprodutora das exclusões sociais e aponta a possibilidade de um outro tipo de instituição educacional, mais inclusiva para todos os alunos, superando a lógica da exclusão (BRASIL, 2008).

A formação das identidades é enriquecida através do convívio com a diferenças, pois “em cada particular, a diferença enuncia outra possibilidade de ser, o que fortalece a individuação e a sociedade” (CROCHÍK, 2011, p. 34).

O multiculturalismo é o antídoto contra o preconceito, porque torna possível a experiência da vivência com outras pessoas, além daquelas às quais já estamos acostumados. Dessa forma, a educação inclusiva caminha junto à educação multicultural, que se abre para as possibilidades de convivência entre as diversas etnias e grupos sociais que fazem parte da escola.

Referências

ANTUNES, Katiuscia Vargas.  História de vida de alunos  com  deficiência  intelectual:  percurso  escolar  e  a  constituição do sujeito. 2012. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, Rio de Janeiro, 2012.

ANTUNES, Katiuscia Vargas; GLAT, Rosana. Das relações entre representações sociais e educação especial nos processos de aprendizagem de alunos com deficiência intelectual. InterMeio – Revista do Programa de Pós-graduação em Educação, Campo Grande, MS, v. 25, n. 50, Dossiê Especial 2, p. 73-99, 2019.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial (SEESP). Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília: MEC/SEESP, 2008.

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília: Presidência da República, 1996.

CROCHÍK, José Leon.  Preconceito e inclusão.  Web Mosaica – Revista do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall, v. 3, n. 1, p. 32-42, jan./jun. 2011.

DECLARAÇÃO DE SALAMANCA. Sobre Princípios, Políticas e Práticas na Área das Necessidades Educativas Especiais. Salamanca, Espanha: 1994.

GALA, Ana Sofia. Capacitismo: o que é, exemplos, consequências e como combater. Handtalk, Blog, 01 dez. 2022. Disponível em: https://www.handtalk.me/br/blog/capacitismo/#:~:text=A%20palavra%20%E2%80%9Ccapacitismo%E2%80%9D%20significa%20a,em%20virtude%20de%20suas%20defici%C3%AAncias. Acesso: 29 out. 2023.

MENDES, Enicéia Gonçalves. A radicalização do debate sobre inclusão escolar no Brasil. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 11, n. 33, p. 387-559, set./dez. 2006.

SANTOS, Giselle Cristina Menezes dos; SANTOS, Paola Portugal Barbosa dos; PRÍNCIPE, Gizele Abreu Marques Soares; VALIM, Rosa Lidice de Moraes; ALMEIDA, Veronica Eloi de. Barreiras atitudinais: discutindo inclusão no cotidiano escolar através do combate ao capacitismo. Revista Educação Especial, v. 36, n. 1, e. 46, p. 1-28, 2023.

SASSAKI, Romeu Kazumi. Inclusão: acessibilidade no lazer, trabalho e educação. Revista Nacional de Reabilitação (Reação), São Paulo, Ano XII, p. 10-16, mar./abr. 2009.

Citações


[1] Programa Assim como a Gente, apresentado pela jornalista Fátima Bernardes, de 27 de outubro de 2023.

[2] Curso de extensão Direitos humanos e populações que vivenciam situações de vulnerabilidade: Desafios e Potencialidades para o Exercício de Direitos por Indivíduos com Transtornos Mentais, da Liga de Direitos Humanos e Saúde (LIDIHUS), da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo – USP. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=InMOj7Ri6QA

[3] Quanto a isso, no próprio blog da plataforma E-docente, há uma artigo interessante que apresenta as principais leis voltadas para a inclusão, cuja leitura recomendamos: SANTANA, Patrícia Monteiro de. Educação inclusiva e sua adaptação humanizada. E-docente, Blog, 4 abr. 2023. Disponível em: https://www.edocente.com.br/blog-educacao-inclusiva/