Tecnologias e educação com direitos humanos

Partimos do princípio de que é preciso pensar sobre o uso das novas tecnologias relacionadas aos direitos humanos.

Em certo sentido, isso não é uma novidade, porque a discussão sobre os limites e as possibilidades do uso das tecnologias foi pauta da Primeira Guerra Mundial, quando o uso das metralhadoras e do gás tornou urgente a discussão sobre os limites da ação dos indivíduos (ENCICLOPÉDIA DO HOLOCAUSTO, 2020). O que foi importante para os direitos humanos, porque trouxe o inegociável em termos de direitos dos homens para o debate.

Então, vamos especificar um pouco mais nossa questão: por que proponho o convite para refletirmos um pouco sobre as novas tecnologias e a educação em direitos humanos?

Porque o neoliberalismo tem seguido a passos largos com sua franca destituição de direitos e porque o trabalho e a diversidade cultural estão ameaçados pela não politização quanto ao uso das novas tecnologias (SANTOS, 2011).

Direitos humanos e novas tecnologias

Para Santos (2011), o desenvolvimento do capitalismo traz a dissolução de direitos, como se isso fosse natural e inexorável, com a precarização das relações trabalhistas, a diminuição de postos de trabalho. E, sobretudo, com a perspectiva de que os indivíduos devem se conformar com a existência de uma camada de destituídos, sobre a qual não há qualquer responsabilidade de cooperação.

Enquanto deixamos de discutir as novas tecnologias, estas continuam alterando as formas de relacionamento entre as pessoas, pondo inclusive em xeque o paradigma humanitário. Para o autor, a sociedade ocidental segue seu curso, exigindo que os indígenas, por exemplo, se adaptem ou sejam adaptados, já que a diversidade não tem lugar.

Com isso, corremos o risco de perder nossa capacidade de criar mitos, imaginar e construir outros mundos diferentes. Por isso, a discussão sobre as novas tecnologias e a educação em direitos humanos se torna urgente.

Direitos humanos são os direitos que todos possuímos apenas pelo fato de sermos humanos.

Esses direitos foram conquistados a partir de lutas e mobilizações da sociedade civil e contemplam padrões de dignidade que devem ser protegidos e colocados em prática. Apesar disso, muitos segmentos da sociedade têm sistematicamente seus direitos violados (ITSRIO, 2020).

Direitos Humanos para um novo tempo

Para Herrera Flores (2009), os direitos humanos são o desafio do século XXI. Desafio enfrentado já no século passado, quando um conjunto de países tentou definir conceitos mínimos de proteção à vida humana, a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), do Pacto Internacional sobre Direitos Sociais (1966) e do Pacto Internacional sobre Direitos Civis (1992).

Mas as últimas décadas têm sido marcadas pela destituição dos direitos trabalhistas, o que põe em xeque a dignidade das pessoas.

Herrera Flores (2009) ainda nos chama a atenção para o fato de que, muitas vezes, a forma como estão postos os direitos que fundamentam os direitos humanos, como, por exemplo, na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), dão a equivocada impressão de que, para se ter direitos, basta saber que eles existem:

[…] nos famosíssimos artigos 1.º e 2.º da Declaração, já não se fala de um “ideal a conquistar”, mas de uma realidade já alcançada: artigo 1.º – todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade. E, no artigo 2, se diz: todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. Os direitos, portanto, são algo que já temos pelo fato de sermos seres humanos absolutamente à margem de qualquer condição ou característica social (HERRERA FLORES, 2009, p. 27).

Para o autor, a discussão sobre os direitos humanos passa necessariamente pela construção de condições materiais necessárias à dignidade humana.

Neste sentido, as práticas emancipatórias é que seriam responsáveis por efetivar os direitos para além do que está no papel, que não deixa de ser importante, mas só é “encarnado” a partir das lutas sociais.

O direito deixa de ser o “direito a ter direitos” (HERRERA FLORES, 2009, p. 27) para ser processo para o alcance de bens materiais e imateriais através de dinâmicas sociais. Diante disso, os direitos serão consequência das mobilizações pelo acesso aos bens.

A partir deste momento, gostaríamos de ressaltar que a experiência concreta dos direitos humanos passa pela mobilização em torno deles, que será possível através da educação em direitos humanos.

Educação em direitos humanos

De acordo com Candau e Sacavino (2008), a definição de educação em direitos humanos não é uma tarefa muito simples, pois há várias visões sobre o assunto.

Segundo as autoras, a transmissão dos direitos humanos não basta para uma educação em direitos humanos, mas é possível considerar alguns caminhos na busca de uma educação nesse sentido.

Para Candau e Sacavino (2008), a educação em direitos humanos deve priorizar a formação dos sujeitos de direitos, os processos de empoderamento e de transformação, para a construção de sociedades mais humanas e democráticas.

A formação de sujeitos de direitos volta-se para a cidadania, para que os indivíduos se percebam como parte de uma rede que tem direitos e deve buscar experienciá-los.

O empoderamento se dirige principalmente aos grupos mais vulnerabilizados na sociedade, aqueles para os quais os direitos humanos, que são para todos, devem ter prioridade, justamente porque têm seus direitos violados.

O empoderamento facilita que o indivíduo se torne sujeito de sua vida e de sua história, e muitas vezes isso se concretiza a partir de organizações coletivas.

Além disso, a busca pelo estabelecimento de sociedades mais humanas e democráticas passa pelo resgate da memória e pela luta contra o apagamento dos conhecimentos e saberes dos grupos subalternizados.

Novas tecnologias em xeque

É importante notar que o discurso tecnológico moderno exclui mulheres, negros e indígenas, que não são vistos normalmente como produtores de ciências, tecnologias e culturas (CARREIRA, 2014). Tal discurso favorece o epistemicídio, ou seja, o apagamento e silenciamento das culturas, principalmente dos países abaixo da linha do Equador (CARNEIRO, 2005 apud CARREIRA, 2014).

Direitos humanos são para todos

A igualdade entre os indivíduos diz respeito aos direitos básicos de todos, mas é necessário proteger aqueles que estão ameaçados. Por isso, a busca pela igualdade passa pela luta contra todas as formas de preconceito e discriminação, que impedem o acesso de negros, indígenas, mulheres, pessoas com deficiência e pessoas LGBTQIA+ aos direitos humanos (CANDAU; SACAVINO, 2008).

Então, perguntamos: todos somos afetados?

Não. Isto porque os grupos mais vulneráveis na sociedade estão em risco com relação ao direitos humanos, e por isso devem ter a prioridade na perspectiva de uma educação em direitos humanos.

De acordo com o Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 maiores empresas do Brasil e suas ações afirmativas, do Instituto Ethos (2016), profissionais negros ocupam somente 6,3% dos cargos de gerência.

Os negros são a maioria dos aprendizes (57,5%) e trainees (58,2%), mas a partir do quadro funcional (35,7%) começa uma queda drástica no percentual, que se afunila até chegar ao topo da cadeia hierárquica das empresas, no conselho administrativo, que é composto por apenas 4,9% desse grupo social.

Segundo a mesma pesquisa, das 500 maiores empresas do Brasil, apenas 11% tem o comando por mulheres. O afunilamento hierárquico é um ponto em comum entre a posição de negros e mulheres nas empresas, ou seja, quanto mais perto do topo da cadeia hierárquica, há menos negros e mulheres.

O Mapeamento de Pessoas Trans da Cidade de São Paulo (CEDEC, 2021) mostra que a maioria da população transsexual compõe-se por mulheres trans e travestis, jovens, pretas e pardas.

E que 59% têm uma função remunerada, mas a maior parte está na informalidade, e a renda se concentra em até 2 salários mínimos, sendo que as pessoas trans e travestis pretas têm renda basicamente de até 1 salário mínimo.

As novas tecnologias podem movimentar a educação em direitos humanos

Para Carreira (2014), a relação entre tecnologias e direitos humanos por outro lado pode favorecer o acesso à educação e a construção de conhecimentos com:

[…] o direito à experimentação para todas e todos e não somente para alguns; o direito à apropriação do conhecimento; o direito à interação e à construção colaborativa; o direito de ser autor e autora de conhecimentos; o direito ao ritmo de aprendizagem e de construir percursos formativos individuais e coletivos; o direito de valorização dos conhecimentos e dos contextos locais e o direito de ser ouvido, de se organizar coletivamente e de participar de processos de interesse público de diferentes formas: do cotidiano da vida à luta por políticas públicas (CARREIRA, 2014, n. p.).

Como vemos, a relação entre as novas tecnologias e a educação em direitos humanos pode ampliar a apropriação destes e contribuir para a luta e a mobilização em torno até de novos direitos, que surgem com as transformações das tecnologias.

É possível que as novas tecnologias caminhem na direção da educação em direitos humanos, ao favorecer práticas voltadas para o multiculturalismo e para a redução das desigualdades, em favor da inclusão social.

Candau (2008) propõe uma agenda voltada para a interculturalidade que pode auxiliar a educação em direitos humanos. Neste momento, vamos propor também o uso dessa agenda por meio das novas tecnologias.

Além disso, as novas tecnologias podem divulgar o acesso a oportunidades e ao poder, para que os indivíduos historicamente excluídos experienciem a cidadania. Temos:

  • a plataforma Transempregos, que promove a empregabilidade para pessoas trans;
  • podem denunciar a subordinação, a discriminação e a violência dirigidas a negros, mulheres e pessoas com deficiência e LGBTQIA+, como os portais Geledés – Instituto da Mulher Negra;
  • e do Grupo Gay da Bahia (GGB), este último voltado para a defesa dos direitos dos homessexuais no Brasil;
  • podem tratar da igualdade a partir das práticas de inclusão dos diferentes, na educação e nos meios de comunicação, como os perfis de pessoas com deficiência que compartilham suas lutas e processos de empoderamento, como é o caso da blogueirapcd.

Conclusão (ou para onde vamos?)

Em suma, a relação entre novas tecnologias e direitos humanos pode contribuir para a conscientização e desnaturalização das desigualdades e para o empoderamento de grupos inferiorizados, para que todos tenham acesso e permanência em outros espaços e possam viver os direitos aos quais são destinados.

O uso das novas tecnologias pode abrir novos campos para o enfrentamento de questões relacionadas aos direitos humanos e à cidadania, como a inclusão social e o respeito ao multiculturalismo.

Referências

CEDEC – CENTRO DE ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA. Mapeamento das Pessoas Trans na Cidade de São Paulo: relatório de pesquisa. São Paulo: CEDEC, 2021.

CANDAU, V. M. Direitos humanos, educação e interculturalidade: as tensões entre igualdade e diferença. Revista Brasileira de Educação, v. 13, n. 37, jan./abr. 2008.

CANDAU, V. M.; SACAVINO, S. (org.). Educação em direitos humanos: temas, questões e propostas. Rio de Janeiro: DP & ALLI, 2008.

CARREIRA, D. Educação, direitos humanos e tecnologia: questão em jogo. Portal Geledés – Instituto da Mulher Negra, 22 ago. 2014. Disponível em: https://www.geledes.org.br/educacao-direitos-humanos-e-tecnologia-questoes-em-jogo/. Acesso em: 02 out. 2023.

ENCICLOPÉDIA DO HOLOCAUSTO. Introdução ao Holocausto. 2020. Disponível em: https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/introduction-to-the-holocaust. Acesso em: 09 abr. 2023.

HERRERA FLORES, J. A reinvenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.

INSTITUTO ETHOS. Perfil social, racial e de gênero das 500 maiores empresas do Brasil e suas ações afirmativas. São Paulo: Instituto Ethos, 2016.

ITSRIO – Instituto de Tecnologia e Sociedade. Direitos Humanos e Tecnologia: desafios e perspectivas para a cidadania, 2020. Disponível em: https://itsrio.org/pt/cursos/direitos-humanos-e-tecnologia-desafios-e-perspectivas-para-a-cidadania/. Acesso em: 02 out. 2023.

SANTOS, L. G. Politizar as novas tecnologias: o impacto sociotécnico da informação digital e genética. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2011.