Diferentes concepções de aprendizagem e de linguagem e sua relação com a prática docente nos anos iniciais do ensino fundamental

A complexidade da prática docente nos anos iniciais
O exercício da docência é, muitas vezes, desafiador. O(a) professor(a) em sala de aula precisa planejar o que fará, seguir o planejamento com flexibilidade para eventuais mudanças, atender necessidades diversas dos estudantes, tomar decisões de improviso e, depois, refletir sobre tudo o que fez e as aprendizagens que conseguiu ou não promover.
Esse conjunto de ações não é aleatório. Como afirma Weisz (2001), por trás de toda ação pedagógica, há sempre muitas concepções teóricas entrelaçadas, ainda que o(a) professor(a) não se dê conta delas. Neste artigo, falaremos sobre as principais concepções que podem influenciar o ensino da leitura e da escrita nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, confira a seguir.
Concepções de aprendizagem: inatismo, empirismo e interacionismo
Você certamente já deve ter ouvido, em sua prática docente, frases como: “Os alunos já trazem o conhecimento dentro de si; a nós, professores, cabe a tarefa de fazê-los desabrochar”, ou então: “Este aluno tem um dom especial para a escrita, aquele outro já nasceu para a matemática”. Em outras situações, você pode ter ouvido afirmações do tipo: “Os alunos não têm conhecimento, somos nós, professores, quem o transmitimos a eles” ou “O ser humano aprende por meio dos cinco sentidos”. É possível também que você tenha ouvido frases semelhantes a “O aluno não aprende sozinho nem pelos outros, mas na interação com os outros”, ou “O aluno precisa construir seu conhecimento”. Essas frases refletem concepções de aprendizagem com que a Humanidade vem se debatendo há séculos. As duas primeiras frases estão baseadas em uma concepção inatista de aprendizagem, ou seja, aquela que acredita que o conhecimento se dá de dentro para fora.
A concepção inatista de aprendizagem
Matuí (1996) aponta Platão e os racionalistas modernos como grandes representantes dessa concepção. Ela se faz presente, inclusive, em algumas nomenclaturas usadas até hoje em alguns contextos educativos: quando uma escola de Educação Infantil é chamada de “jardim da infância”, por exemplo, é a concepção inatista que sustenta a ideia de que a escola seria um grande jardim, cujas sementes (as crianças) já conteriam todos os gérmens das flores dentro de si, precisando apenas de espaço e tempo para desabrochar.
A concepção empirista de aprendizagem e as escolas tradicionais
A terceira e a quarta frases citadas partem de uma concepção empirista de aprendizagem. Segundo essa concepção, o ser humano nasce como uma tabula rasa, sem conhecimento algum e, por meio dos cinco sentidos, vai acumulando o conhecimento que geraria sua aprendizagem. Vidal (2014) aponta Aristóteles como um grande representante dessa concepção, que embasa todas as chamadas “escolas tradicionais”. A ideia de uma aula como transmissão de saberes, onde o(a) professor(a) fala e os estudantes ouvem, com uma prova ao final, promovendo reforços positivos para os acertos e negativos para os erros, é a essência da concepção empirista de aprendizagem.
A concepção interacionista (construtivismo e vygotsky)
Finalmente, as duas últimas frases mencionadas referem-se à concepção interacionista de aprendizagem. Essa concepção, que acredita que o conhecimento se dá por meio da interação do sujeito com outros sujeitos e/ou com o objeto de conhecimento, originou, por um lado, o construtivismo piagetiano (Macedo, 2002) e, por outro, a teoria histórico-cultural de Vygotsky (Oliveira, 1993).
Concepções de linguagem e o ensino da leitura e escrita
Ao pensarmos sobre o ensino da leitura e da escrita, não são apenas as concepções de aprendizagem que impactam a prática pedagógica. As concepções de linguagem assumidas pelos docentes também são determinantes para sua atuação em sala de aula. Autores como Geraldi (1985), Bräkling (2002) e Colello (2013) apontam três concepções diferentes de linguagem que circulam nas escolas.
Linguagem como expressão do pensamento
A primeira concepção é a de linguagem como expressão do pensamento. Segundo essa concepção, a linguagem seria uma forma de o ser humano expressar aquilo que pensa. Uma consequência perversa dessa ideia é: aquele que tem dificuldades com a linguagem (oral ou escrita), por qualquer motivo, teria também dificuldades para pensar.
Linguagem como ferramenta de comunicação
A segunda concepção é a da linguagem como ferramenta de comunicação. Segundo essa ideia, a linguagem seria um código que serve à transmissão direta de mensagens. Nessa concepção, o papel de um leitor ou ouvinte, por exemplo, seria o de mero receptor, a quem caberia a tarefa de desvendar as ideias codificadas pelo escritor ou falante.
Linguagem como interação (perspectiva discursiva)
Finalmente, a terceira concepção, defendida por Bakhtin (2002), é a da linguagem como interação. Em uma perspectiva discursiva e dialógica, essa ideia parte da premissa de que a linguagem é uma forma de interação entre sujeitos. Assim, um leitor ou ouvinte deixa de ser mero receptor, por exemplo, para se configurar como um interlocutor ativo, a quem cabe a tarefa de atribuição de sentidos próprios aos textos que lê ou ouve.
Impacto das concepções na prática docente e alfabetização
Essas concepções de aprendizagem e de linguagem sustentam a prática do(a) professor(a), mas isso raramente ocorre de forma consciente. Na maior parte das vezes, a ação pedagógica apoia-se em concepções diversas, sem que o(a) professor(a) se dê conta. Nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, essas concepções têm impacto sobre o ensino da leitura e da escrita, tanto na fase da alfabetização inicial quanto no desenvolvimento das proficiências leitora e escritora.
Inatismo de aprendizagem e linguagem como expressão
Concepção inatista de aprendizagem: quando um professor parte dessa concepção, por exemplo, ele pode adotar uma postura espontaneísta, achando que basta colocar seus estudantes em contato com textos diversos que eles aprenderão a ler e escrever. Ou então, pode acreditar que alguns estudantes são mais capazes de desenvolver uma boa proficiência leitora e/ou escritora que outros, por terem esse “dom” ou habilidade.
Posturas semelhantes são adotadas por professores que têm uma concepção de linguagem como expressão do pensamento: se os alunos são capazes de pensar sozinhos, seriam capazes de desenvolver a linguagem de forma totalmente autônoma também, não sendo necessárias as intervenções docentes.
Empirismo e o ensino como transmissão vertical
Concepção empirista de aprendizagem: o(a) professor(a) conduzirá o ensino da leitura e da escrita oferecendo o mínimo de autonomia possível aos estudantes, já que partirá da ideia de ensino como transmissão vertical de conhecimentos.
Na alfabetização, fará uso de cartilhas ou de metodologias que apresentem a relação som-letra por etapas, para só depois chegar aos textos. Se tiver, também, uma concepção de linguagem como ferramenta de comunicação, proporá atividades de “interpretação de texto” baseadas em localização de informação, já que partirá da ideia de que, ao leitor, cabe apenas a decifração das ideias ali embutidas.
Interacionismo: o professor como mediador e a criança como protagonista
Concepção interacionista da aprendizagem: ao partir desta concepção aliada a uma concepção discursiva da linguagem, o(a) professor(a) tornará seus estudantes protagonistas de seu próprio processo de aprendizagem.
Na alfabetização, criará situações didáticas que convidem a criança a atuar como leitora e/ou escritora, mesmo antes de saber ler ou escrever convencionalmente. Nas atividades de leitura e interpretação textual, convidará os estudantes a trocarem ideias, de modo que as diferentes atribuições de sentido aprofundem o entendimento coletivo. Nas atividades de escrita, incentivará o estudante a ser autor(a), valorizando a coesão e coerência textuais, ainda que haja questões ortográficas ou gramaticais a serem aprimoradas.
E você, já pensou sobre isso? De que modo suas concepções interferem em sua prática?
Sobre a autora
Elaine Cristina R. G. Vidal é professora na graduação e pós-graduação da Faculdade de Educação da USP. Ela é formada em Letras pela USP e em Pedagogia pela Universidade Metodista/SP. Possui especializações em Alfabetização: relações entre o ensino e a aprendizagem (ISE Vera Cruz) e Ética, valores e cidadania na escola (Univesp), além de mestrado e doutorado em Psicologia, Linguagem e Educação, também pela FEUSP. É autora dos livros Projetos didáticos em salas de alfabetização (2014), Literatura e crianças: um encontro necessário (2019) e A infância na escola: reflexões sobre Educação Infantil (2023). Sua vasta experiência inclui atuação como professora e gestora em todos os níveis da Educação Básica, no Ensino Superior e como editora no Núcleo de Produção de Conteúdo e Formação da Saber Educação.
Referências bibliográficas
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2002.
BRÄKLING, K. LÍNGUA PORTUGUESA. MÓDULO 1: O Ensino da Língua Portuguesa: linguagem, interação e participação social. UNIDADE 5: Diferentes
maneiras de se compreender a linguagem e as implicações para a prática pedagógica. Rede Ensinar/Uniararas, 2002.
COLELLO, S. Sentidos da alfabetização nas práticas educativas. In: MORTATTI, M. do R. L.; FRADE, I. C. A. da S. (orgs.) Alfabetização e seus sentidos – O que sabemos, fazemos e queremos? Marília: Oficina Universitária, São Paulo: Editora Unesp, 2013.
GERALDI, W. O texto na sala de aula. São Paulo: Assoeste, 1985.
MACEDO, L. A questão da inteligência: todos podem aprender? In: OLIVEIRA, M. K.; REGO, T. C.; SOUZA, D.T. (orgs.). Psicologia, educação e as temáticas da vida contemporânea. São Paulo: Moderna, 2002, p. 117-134.
MATUÍ, J. Construtivismo: teoria sócio-histórica aplicada à educação. São Paulo: Moderna, 1996.
OLIVEIRA, M. K. de. Vygotsky – Aprendizado e desenvolvimento: um processo sócio-histórico. São Paulo: Scipione,1993.
VIDAL, E. Projetos didáticos em salas de alfabetização. Curitiba: Appris, 2014.
WEISZ, T. O diálogo entre o ensino e a aprendizagem. São Paulo: Ática, 2001.
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