armadilha na discussão entre raça e classe

Em uma fala emblemática, a filósofa Sueli Carneiro declarou que “Eu, entre esquerda e direita, continuo sendo preta”. O enunciado deixa explícito como para a estudiosa o racismo não é uma pauta identitária. Ou seja, reduzir as discussões de raça e classe à pauta identitária pode se constituir em uma verdadeira armadilha, sobretudo em contextos políticos tão polarizados, como o nacional.

A filósofa mostra o quanto o debate fica fragilizado ao ser utilizado estrategicamente, bem como corrompido para/como identitarismo, a serviço de interesses opostos até ao que ela mesma defende e no que se insere.

Não fugindo da racialização imposta a si, Carneiro enfrenta o que a questão da identidade racial lhe impõe, enquanto determinação material, independentemente da força política que esteja no poder.

Os lugares sociais impostos ao povo preto seguem os que resultam em desumanização e/ou em encarceramento. Na discussão sobre identidade, o problema recai sobre essencializar a compreensão do fenômeno, o que leva não apenas ao esvaziamento do conceito, mas sobretudo a sua deturpação.

Logo, a identidade precisa ser analisada no interior das determinações materiais da vida em sociedade.

Discursos de identidade, outra vez?

Ser uma mulher negra no Brasil está longe de uma abstração. Enquanto pensada na realidade concreta, a mulher negra, sequestrada de sua terra natal, teve desde a escravização uma existência localizada na base de uma sociedade desigual e injusta.

Submetida ao trabalho árduo, seja quando tomada para os afazeres domésticos, seja quando posta como amante ideal, hiperssexualizada, foi sempre objetificada.

Ao se identificar como mulher negra, Carneiro ainda denuncia como está exposta ao que chama de dupla asfixia, a de gênero e a da raça.   

Ao homem negro também restou uma objetificação, bem como uma marginalização histórica que resultou em condições de vida erguidas na falta, na precariedade.

Refletir sobre raça, no contexto nacional e não somente neste, é refletir sobre as condições materiais da vida, as condições de moradia, de emprego, de lazer, de trabalho, de educação e de saúde que se estabelecem à margem do bem-estar mínimo para a cidadania.

Para ilustrarmos essa produção histórica, política e ideológica do lugar do negro, recorremos à letra do samba “Identidade” de Jorge Aragão:

Nessa letra, temos uma retomada do processo histórico no tratamento dispensado ao negro durante a escravização.

Temos também como essa subjugação da pessoa preta foi transplantada para o período pós-libertação, apresentando o elevador enquanto símbolo de marca de classe e raça, consequentemente de poder social.

O sambista reclama para o negro outro lugar, construído na não aceitação do preestabelecido. Não é na valorização do branco que se constitui a identidade, a dignidade negra “Se preto de alma branca pra você / É o exemplo da dignidade / Não nos ajuda, só nos faz sofrer / Nem resgata nossa identidade”.

Como no capitalismo nem o ser humano nem a natureza têm vez, o sujeito vale o que tem e não o que essencialmente é, a pessoa negra então estaria totalmente desprovida de valor. Porém, o sistema se refaz no tempo e no espaço.

Desse modo, a identidade, reduzida à representação, é convertida em identitarismo. Se é a presença de uma pessoa negra no governo que importa, o governo de extrema direita não tem nenhum problema em satisfazer essa pauta colocando, por exemplo, um Sérgio Camargo na presidência da Fundação Palmares. Mas quais são os interesses, as ideologias que esse sujeito representava?

A armadilha da política identitária no debate entre raça e classe

Não estamos com isso desprezando a importância de pessoas negras ocupando cargos e funções de destaque, mas isso não pode ser colocado como uma necessidade abstrata. Se procedermos assim, seremos presas fáceis na armadilha da política identitária.

A representação precisa ser problematizada na complexidade que essas relações sociais implicam. Identidade é construída historicamente. Trata-se de uma ideologia que se constitui no interior de relações concretas que estruturam a sociedade do capital, fundamentando instituições políticas e econômicas.

Almeida (2019, p. 10), no prefácio da edição brasileira de “Armadilha da identidade” de Haider, nos alerta para os limites e sobretudo para o perigo do identitarismo, vejamos:

(…) as narrativas e relatos subjetivos não nos oferecem mais do que um caleidoscópio sociológico. O identitarismo, como forma de pensar a realidade, tem o seu limite máximo nas manifestações da ideologia identitária.

Assim, recortando o universo dos quadrinhos para ilustrar a discussão, é importante na luta antirracista ter um Superman negro?

Nos limites da representação, pode ser. Entretanto, o objetivo da Warner/DC seria aumentar a popularidade do personagem, o que, segundo o poeta Anderson Shon, com quem estamos de acordo, é contraproducente e ofensivo à luta de tantos negros por lugar de valorização, reconhecimento nas diferentes linguagens artísticas, no cinema.

Pior de tudo, o herói traz na vestimenta as cores dos Estados Unidos. Que ideologias serão mantidas? Shon argumenta que pintar o herói de preto não resgata as histórias do povo negro.

Como na letra Jorge Aragão, entendemos que vitória mesmo seria ceder a vez, já que além de sermos antirracistas é indispensável sermos anticapitalistas.

Desse modo, organizações políticas monotemáticas são armadilhas, por serem potenciais reprodutoras de subordinação e marginalização em seu interior.

A escritora Audre Lorde também foi cirúrgica ao denunciar as múltiplas subordinações a que estava sujeita como feminista negra e lésbica. Norte-americana de origem caribenha, a ativista dos direitos civis e homossexuais se destacou na militância mulheres afro-alemãs. 

Esse debate nos conduz, numa postura coerente com o materialismo histórico e convidados por Asad Haider (2019, p. 148), a pensar a identidade nas contradições que nos constituem.

O estudioso retoma a discussão de Paul Gilroy sobre um “universalismo estratégico”, insurgente, que seja para além da Europa e reivindicada para todos, isto porque “emancipação é autoemancipação”.

Ademais, Haider explica (p. 65) que “a ideologia separatista impede a construção da unidade entre os marginalizados, o tipo de unidade que poderia realmente superar a marginalização”.

Desse modo, independentemente do que prometam os políticos que fizerem parte do governo, no modo de produção capitalista, estão comprometidos a manter e assegurar condições para seu crescimento.

Não surpreende que nos treze anos de governo progressista no Brasil a população carcerária negra tenha aumentado. Não espanta também que a violência policial contra as pessoas negras tenha crescido. Este é o debate que Sueli Carneiro levantou com sua contundente declaração. 

Para concluir a discussão sobre raça e classe

Identidade é resultado de uma construção, não apenas histórica, mas principalmente ideológica. A identidade é fruto das relações sociais que estabelecemos no interior de práticas discursivas e sociais.

Fora desse contexto a identidade se constitui como uma real armadilha, podendo ser facilmente cobrada por qualquer um, independentemente de orientação política e econômica, e sobretudo utilizada como instrumento para separar a classe trabalhadora e desarticular qualquer movimento de insurreição organizada contra o sistema.

Para que possamos colocar em curso pelo menos o debate sobre outro marco civilizatório, precisamos nos insurgir contra a ideologia separatista. A luta por uma sociedade mais justa e igualitária é uma luta anticapitalista.

Como os sistemas de opressão estão interligados, faz-se necessário um programa também estratégico e taticamente estruturado para se pensar uma universalidade insurgente. Assim, é fundamental não cair no jogo do sistema capitalista.

Para saber mais

ALMEIDA, Silvio Luiz de. Prefácio da edição brasileira. Haider, Asad Armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje / Asad Haider. Tradução de Leo Vinícius Liberato. – São Paulo: Veneta, 2019. (Coleção Baderna)

HAIDER, Asad. Armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje / Asad Haider. Tradução de Leo Vinícius Liberato. – São Paulo: Veneta, 2019. (Coleção Baderna)

SHON, Anderson. Superman não pode ser negro. Disponível em https://correionago.com.br/o-superman-nao-pode-ser-negro/