Como preparar para receber crianças com tdah

Fabrício é um nome fictício, que vai servir aqui para lembrar de várias crianças com TDAH que estão nas nossas salas de aula em contextos reais. Vamos dialogar sobre ele, lembrando de tantos outros estudantes.

Um dos tantos Fabrícios por aí…

Sua mãe já relatou para a equipe escolar que o menino acorda por volta de 6h da manhã. Ele vai pra escola no turno da tarde… Ele, a mãe e a irmã, de 6 anos, moram “de favor” na casa uma tia, “até as coisas melhorarem”.

Acorda e já vai para o pequeno quintal a correr atrás dos cachorros da tia, que se escondem com receio do menino, que não se intimida, puxa o rabo, as orelhas, agita os animais.

Sua irmã não aceita brincar com Fabrício, ele quebra as coisas, quer correr e pular o tempo todo, não leva uma brincadeira até o final, muda de ideia, e por vezes brigam. A mãe quer ajuda.

A escola já havia chamado várias vezes, por causa da agitação e falta de concentração, apontando primeiramente o comportamento como um prejuízo para sua rotina escolar; não apresenta dificuldade para aprender, apesar de cometer erros e esquecimentos frequentes que deixam o seu desempenho abaixo do esperado.

Aprendeu a ler no 1° ano, se interessa por matemática, tem curiosidade por ciências da natureza. Gosta de ouvir histórias e que leiam textos informativos para ele, mas requer uma interação direta e constante para que não disperse e desista.

Frequentemente esquece o material, não sabe onde colocou as folhas de atividades, os objetos caem da mesa, se perde e se desorganiza muitas vezes. Se for deixado sem intervenção, desiste, perde o interesse, não conclui as propostas.

Sempre propõe uma brincadeira para os colegas, começa a participar, de repente muda de atividade, sai correndo, vai olhar outra coisa.

“Age por impulso”, “não tem paciência para escutar”, “vai fazendo as coisas sem pensar”, situações essas que ocasionam desentendimentos, frustração, afastamento dos pares. Ele diz: “os colegas não querem que eu participe da brincadeira”, “eles não deixam eu jogar”.

Tem dificuldade em ouvir o que os outros falam, parece, às vezes, que nem está entendendo, “a cabeça está em outro lugar”, responde alguma coisa por inferência, pois nem ouviu a pergunta até o final, parece que sabe menos do que realmente sabe, demonstra muitos conhecimentos e interesses se houver um maior tempo de escuta, de interação e de individualização no ensino.

Essas são algumas características apresentadas por Fabrício, que levaram a mãe, por solicitação da escola e por suas próprias observações, a buscar uma avaliação multidisciplinar. Depois de um bom tempo, a indicação diagnóstica foi de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH).

Fabrício: “aquele estudante, com TDAH”

Há dados de que a prevalência mundial, independentemente da cultura, dos costumes ou de condições socioeconômicas, é de 5% na população infantil, a cartilha “Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) – uma conversa com educadores”, da Associação Brasileira do Déficit de Atenção – ABDA [1], indica essa prevalência:

Em 2007, foi publicado um dos estudos considerados como mais importantes sobre a prevalência de TDAH. Esse estudo avaliou os resultados de mais de 8 mil estudos em todo o mundo e conseguiu demonstrar que a estimativa mais correta para a prevalência de TDAH seria de 5% da população infantil mundial (p. 10). [2]

[2] Cartilha da ABDA “TDAH – Uma conversa com educadores” disponível em: https://tdah.org.br/cartilhas-da-abda/

Há, pelo menos, um estudante com características de desatenção, impulsividade e hiperatividade em cada sala de aula deste país, numa proporção aproximada de um para cada 20 crianças. Se a turma tiver 40, será mais de um, certamente.

A ABDA apresenta um conceito de TDAH que pode nos ajudar a entender melhor essa condição:

O TDAH é um transtorno neurobiológico, com grande participação genética (isto é, existem chances maiores de ele ser herdado), que tem início na infância e que pode persistir na vida adulta, comprometendo o funcionamento da pessoa em vários setores de sua vida, e se caracteriza por três grupos de alterações: hiperatividade, impulsividade e desatenção.

O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – 5ª Edição (DSM-5, 2014) [3] é uma referência para o diagnóstico de crianças com TDAH, que o classifica como um transtorno do neurodesenvolvimento.

O DSM-5 indica que, para estabelecer um diagnóstico, pelo menos, cinco sintomas (alguns serão elencados a seguir) devem estar presentes antes dos 12 anos de idade e os sintomas precisam de modo efetivo interferir ou reduzir o nível de funcionamento social, acadêmico e ocupacional da pessoa.

Paulo Mattos, um especialista em TDAH, aponta que:

O TDAH é caracterizado por níveis de desatenção, hiperatividade e impulsividade mais elevados do que aqueles encontrados na população geral. O diagnóstico de TDAH, portanto, depende do número de sintomas; não se trata de “ter” ou “não ter”. O mesmo acontece com o diabete e a hipertensão arterial: todo mundo tem açúcar no sangue e pressão arterial, mas algumas pessoas tem um “excesso” e por conta disso recebem aqueles diagnósticos. [4]

[4] Disponível em: https://www.paulomattosmd.com/tdah

Mas o que a escola faz com esse diagnóstico em crianças com TDAH?

Vamos pensar em alguns aspectos do TDAH para vislumbrar melhor essa realidade que está presente no cotidiano escolar e que precisamos ter conhecimentos para melhor responder aos desafios da prática docente.

Crianças e adolescentes com TDAH frequentemente têm o seu comportamento como destaque em sala de aula, por conta da desatenção e agitação, mas há prejuízo também na aprendizagem, principalmente nas funções executivas[5] do cérebro; é necessário, assim, uma intervenção pedagógica adequada para promoção do desenvolvimento.

Vejamos alguns pontos para compreender o TDAH, pois a identificação de sintomas e características ajuda para o estabelecimento de estratégias de ensino mais favoráveis e para lidar com o comportamento dos estudantes.

desmistificar questões de crianças com tdah

A escola é um espaço-tempo em que as características das crianças com TDAH são marcantes e comprometem suas relações e sua aprendizagem; é o lugar em que geralmente as queixas sobre a criança se acentuam.

Considerando as características de desatenção, impulsividade e hiperatividade, vejamos alguns sintomas que podem e precisam ser observados em sala de aula e na dinâmica escolar para ajudar no diagnóstico, assim como para promover melhores estratégias de ensino.

Vamos lembrar do nosso Fabrício…

Desatenção pode se manifestar, por exemplo, quando a criança inicia a leitura de um texto, se distrai por influência de elementos externos, ao tentar retomar a leitura não se acha mais, fica perdida, desiste de ler, começa a desenhar… fica alheia ao que está acontecendo, isso pode dar a entender que não está interessada, que não se esforça, que é desobediente, mas não é exatamente isso, a desatenção fez ela não saber retomar a tarefa.

Essas são indicações de algumas características que podem ser observadas, com verificação sobre a frequência e sobre os comportamentos acontecerem em vários ambientes diferentes.

Existe na legislação brasileira uma previsão específica de apoio aos estudantes com TDAH e outras condições de desenvolvimento que precisam de acompanhamento pedagógico.

A Lei nº 14.254, de 30 de novembro de 2021[6], dispõe sobre o acompanhamento integral para estudantes com dislexia ou Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) ou outro transtorno de aprendizagem.

A lei indica o direito de participar da vida escolar com garantia de aprendizagem, aponta para a necessidade de formação docente e elaboração de estratégias específicas para suas necessidades.

O que fazer em sala de aula, então, para apoiar as crianças com TDAH?

Como profissionais da educação, precisamos buscar formação continuada, ler materiais atualizados, participar de grupos de estudos, ouvir especialistas; solicitar que as escolas promovam formação com a aquisição de materiais para estudo, subsídios para cursos. Formação é fundamental.

É um compromisso docente conhecer bem o estudante e saber do que ele gosta, seus interesses e conhecimentos, coisas que ele sabe fazer bem. Isso é possível por meio de maior interação e diálogo constante, é preciso observação e promoção de atividades variadas para que ele possa se expressar. Destacar suas habilidades e talentos incentiva e encoraja seu envolvimento e promove desenvolvimento.

Há necessidade de um trabalho integrado de toda equipe escolar, junto com a família e com outros profissionais que acompanham o estudante – essa rede de apoio, entre todos que se envolvem com ele, precisa atuar colaborativamente.

No que diz respeito à sala de aula, mais especificamente, podemos levar em conta o seguinte:

recomendações para crianças com tdah

As atividades planejadas devem prever variação de linguagem para o ensino e para a expressão do estudante, ele precisa ter oportunidade de:

  • ler,
  • escrever,
  • desenhar,
  • assistir a vídeos,
  • ouvir música,
  • cantar,
  • trabalhar com rimas,
  • ter imagens de apoio,
  • usar esquemas visuais,
  • mapas de ideias,
  • materiais manipuláveis,
  • realizar experimentos.

O protagonismo dos estudantes nos processos de ensino promove aprendizagens significativas. E isso serve para todos os estudantes, independentemente de suas características e condição de desenvolvimento.

Já nos que tange a relação direta com o estudante com diagnóstico de TDAH, é possível atentar para estas sugestões:

Nas atividades propostas, nos materiais e nos instrumentos de avaliação:

indicações para crianças com tdah

No contato com a família:

  1. priorizar encontros para indicar os ganhos e progressos e não apenas para apontar as dificuldades;
  2. mostrar que o trabalho é de parceria, de colaboração;
  3. todos se ajudam em favor do desenvolvimento da criança;
  4. usar recursos da sala de aula em casa como cronogramas de tarefas, listas de compromissos, recados sobre materiais e objetos que não pode esquecer.

A criança precisa de apoio para desenvolver a autonomia; ela é criança, está em desenvolvimento.

Para concluir: como os Fabrícios também nos ensinam

Uma cena com o Fabrício me comoveu – comover é uma necessidade da ação docente, de mover-se com o outro. Ele se deitou no chão do corredor, próximo à sua sala de aula. Eu o interpelei:

Vamos? Quer ajuda?

E ele, parecendo cansado depois de correr, pular e se agitar bastante, pede, tão consciente de suas necessidades:

Espera só um pouquinho, preciso me acalmar…

Ficou parado, com seu corpinho de 8 anos, ofegante, sentindo o contato do chão como um alívio.

Aquela cena parecia um pedido de ajuda… Então, reagi:

Posso te ajudar?

– Espera um pouquinho…

Por vezes, a ajuda é “esperar um pouquinho”. Essa espera é uma pausa também para que cada docente possa refletir e agir no devido tempo, sem precipitação ou demora.

A crianças com TDAH sempre tem algo a nos dizer, e precisamos ouvir, observar, estar com ele, movermo-nos juntos, comovermo-nos. No contexto escolar, as pessoas com as quais lidamos nos dão informação por palavras, por expressões faciais e corporais, por meio do seu comportamento.

Sempre temos o que aprender com aqueles a quem nos propomos a ensinar.

Sugestão de leitura:

https://periodicos.ufsm.br/educacaoespecial/article/view/28255

Referências

[1] Associação Brasileira do Déficit de Atenção – ABDA, acesso disponível em: https://tdah.org.br/.

[3] MANUAL DIAGNÓSTICO E ESTATÍSTICO DE TRANSTORNOS MENTAIS, DSM-5. Associação Americana de Psiquiatria. Porto Alegre: Artmed, 2014.

[5] Elaboração do raciocínio abstrato; alternância de tarefas; planejamento e organização das atividades; elaboração de objetivos; geração de hipóteses; fluência e memória operacional; resolução de problemas; formação de conceitos; inibição de comportamentos; auto monitoramento; iniciativa; autocontrole; flexibilidade mental; controle da atenção; manutenção de esforço sustentado; antecipação; regulação de comportamentos; e criatividade. Ver melhor em: Cartilha da ABDA “TDAH – Uma conversa com educadores” disponível em: https://tdah.org.br/cartilhas-da-abda/

[6] Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14254.htm