Aulas de música na Educação Infantil: especificidades e possibilidades de ação pedagógica

Música, educação musical e a pluralidade das infâncias 🎶
Para aprofundar o debate sobre as práticas pedagógico-musicais na Educação Infantil, é fundamental examinar três conceitos-chave: a música, a educação musical e a(s) infância(s).
A música pode ser compreendida como uma linguagem artística, socio-culturalmente construída, que tem o som como material básico, o que justifica o reconhecimento de suas múltiplas manifestações sem hierarquização (Penna, 2015).
Swanwick (1994) identifica três conceitos estruturantes que definem a natureza simbólica da música e seu modo de operar na prática: os materiais sonoros, vinculados aos parâmetros do som; o caráter expressivo, relacionado aos efeitos expressivos das obras musicais oriundos das combinações sonoras utilizadas (França, 2013, p. 8); e a forma, que diz respeito à organização temporal dos gestos sonoros, ressaltando ainda três modos de interação musical: criação, apreciação e performance.
A educação musical diz respeito ao conjunto de processos e práticas de ensinar-aprender músicas nos mais diferentes contextos (Souza, 2021), compreendendo as relações entre pessoas e músicas enquanto construções culturais (Kraemer, 2000).
Nesse sentido, ensinar música implica mediar tais relações para facilitar e promover aprendizagens (Del-Ben, 2011), incluindo o desenvolvimento da musicalidade, concebida não apenas como habilidade técnica, mas como capacidade de ouvir, criar, improvisar e interagir musicalmente com e sem notação (Conway, 2015; Elliot, 2005).
O conceito de infância: perspectivas de desenvolvimento e sociais
Por sua vez, o conceito de infância pode ser abordado sob três perspectivas:
- A primeira refere-se aos estudos do desenvolvimento humano, que a definem como o período de 0 a 11 anos, subdividido em três fases (0-3; 3-6; 6-11), marcadas por transformações físicas, cognitivas e psicossociais (Papalia; Feldman, 2013).
- A segunda considera a infância como construção histórico-social, destacando sua pluralidade (infâncias) e a transição da visão medieval, que a via como mera condição biológica, para a concepção contemporânea da criança como sujeito de direitos e agente de participação social (Bona, 2010, 2021; Sarmento, 2004, 2013; Madalozzo, 2019).
- A terceira perspectiva vincula-se aos marcos legais que consolidaram esse entendimento: a Declaração dos Direitos da Criança (ONU, 1959), a Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989), o princípio da prioridade absoluta previsto no artigo 227 da Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990), que regulamenta tal princípio e reconhece como criança a pessoa até 12 anos incompletos.
A Educação Infantil: estrutura curricular e direitos de aprendizagem 📚
A educação infantil e suas peculiaridades
A articulação entre as concepções de música, educação musical e infância(s) orienta diretamente a compreensão das singularidades da Educação Infantil: as escolhas curriculares, metodológicas e avaliativas precisam dialogar com os direitos de aprendizagem, a organização por faixas etárias e os ciclos formativos previstos para essa etapa.
A educação infantil, primeira etapa da Educação Básica, tem por finalidade educar e cuidar de crianças de 0 a 5 anos e 11 meses (LDB, 1996, art. 29). Divide-se em três grupos etários: bebês (0 a 1 ano e 6 meses); crianças bem pequenas (1 ano e 7 meses a 3 anos e 11 meses); e crianças pequenas (4 a 5 anos e 11 meses).
Nessa etapa, as práticas pedagógico-musicais devem ter como eixos estruturantes as interações e as brincadeiras (DCNEI, 2010, art. 9).
Direitos de aprendizagem e campos de experiências na bncc
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC, 2017), documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais na educação brasileira, estabelece os chamados direitos de aprendizagem e desenvolvimento da educação infantil.
Leia mais: BNCC na Educação Infantil: O que muda na prática pedagógica?
Entre eles, destacam-se: conviver com crianças e adultos, ampliando o respeito à cultura e à diversidade; brincar de múltiplas formas e em diferentes contextos; participar ativamente da vida cotidiana e da gestão escolar; explorar movimentos, sons, formas, cores, palavras e elementos da natureza; expressar emoções, descobertas e opiniões por variadas linguagens; e conhecer-se, construindo uma identidade pessoal, social e cultural positiva.
Ao considerar os direitos de aprendizagem e desenvolvimento, a BNCC (2017) estabelece cinco campos de experiências nos quais as crianças se desenvolvem. Cada campo contempla objetivos de aprendizagem específicos, de acordo com a faixa etária, assegurando experiências significativas no processo educativo.
Os cinco campos de experiências da BNCC
- O eu, o outro e o nós: valoriza a construção da identidade e o respeito à diversidade cultural;
- Corpo, gestos e movimentos: enfatiza a exploração do mundo por meio da corporeidade, das linguagens artísticas e das brincadeiras;
- Traços, sons, cores e formas: possibilita a vivência de diferentes manifestações artísticas e culturais, estimulando a autoria e o desenvolvimento estético;
- Escuta, fala, pensamento e imaginação: favorece o contato com a cultura escrita e a literatura, ampliando a imaginação e o conhecimento de mundo.
- Espaços, tempos, quantidades, relações e transformações: promove experiências de observação, investigação e exploração do entorno, estimulando a curiosidade e a construção do conhecimento científico.
Avaliação formativa e contínua na Educação Infantil
Outro aspecto bem peculiar na Educação Infantil diz respeito aos processos avaliativos, que assumem caráter contínuo e formativo.
A avaliação na Educação Infantil é baseada na observação e no registro sistemático do/a docente a respeito de cada criança sob sua responsabilidade pedagógica.
Ação pedagógico-musical: orientações e dimensões do rcnei 💡
Possibilidades de ação pedagógico-musical na educação infantil
Com base nos conceitos de música, educação musical, infância(s) e no funcionamento da própria Educação Infantil, torna-se possível delinear um conjunto de ações pedagógicas voltadas a essa etapa. Para orientar a reflexão sobre tais possibilidades, recorro a um documento de grande relevância publicado em 1998: o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI).
Elaborado na esteira da promulgação da LDB (1996), esse material foi disponibilizado pelo Ministério da Educação como referência não obrigatória, oferecendo orientações pedagógicas em diversas áreas do conhecimento e funcionando como guia para práticas educativas de qualidade voltadas à Educação Infantil (Ciríaco; Silva; Santos, 2025).
O terceiro volume do RCNEI abrange diferentes áreas do conhecimento e traz orientações específicas para o trabalho com Música na Educação Infantil. Entre seus principais colaboradores, destaca-se a Profa. Dra. Teca Alencar de Brito, amplamente reconhecida pelas contribuições à educação musical e às práticas de aprendizagem musical com crianças.
Apesar de ter sido elaborado há quase três décadas, o documento permanece atual, oferecendo uma fundamentação sólida e propostas metodológicas que continuam a dialogar de maneira significativa com as necessidades contemporâneas da Educação Infantil.
Objetivos do rcnei por faixa etária (0 a 6 anos)
O RCNEI (Brasil, 1998, p. 55-57) organiza-se em objetivos que variam de acordo com a faixa etária das crianças.
- Para aquelas de 0 a 3 anos: o foco está na percepção e discriminação de eventos sonoros, no brincar musical, na imitação e nas manifestações espontâneas de criação.
- Para crianças de 4 a 6 anos: busca-se ampliar o repertório de experiências musicais por meio da exploração dos elementos constitutivos da música, da expressão de sentimentos e sensações e do desenvolvimento da criatividade, privilegiando a improvisação, a composição e a interpretação.
Os conteúdos e metodologias devem considerar tanto o nível de percepção e desenvolvimento infantil quanto as diferenças socioculturais dos grupos atendidos.
Dimensões centrais da educação musical: fazer, apreciação e reflexão
Nesse contexto, destacam-se três dimensões centrais: o fazer musical, a apreciação musical e a reflexão sobre a música como forma de representação cultural.
Cada uma dessas dimensões deve ser explorada a partir de práticas educativo-musicais que articulem som e silêncio, corpo e movimento, linguagem e expressão, permitindo às crianças experiências significativas de musicalização.
O fazer musical: improvisação, composição e interpretação
No fazer musical, três eixos se sobressaem: improvisação, composição e interpretação.
Eixos do fazer musical
- A improvisação: fortemente presente na primeira infância, possibilita a expressão criativa e a comunicação, sendo realizada por meio de jogos e situações de imitação vocal, corporal ou instrumental (Gordon, 2015a; 2015b).
- A composição: tende a ganhar maior espaço entre 4 e 6 anos, momento em que as crianças podem criar pequenas canções, transitando entre improvisação e estruturação.
- A interpretação: envolve a execução de canções e peças musicais, valoriza a expressividade e a intencionalidade, reforçando o papel da criança como sujeito ativo no processo musical.
As orientações didáticas (Brasil, 1998, p. 67-77) para o trabalho com música incluem propostas que envolvem exploração vocal e corporal, jogos cantados, danças, brincadeiras musicais, improvisações a partir de roteiros extramusicais, além de histórias sonorizadas. Tais atividades contribuem para o desenvolvimento de habilidades musicais e criativas, ao mesmo tempo em que favorecem a interação social e a construção de vínculos afetivos no espaço escolar.
Nesse sentido, a música é compreendida como prática coletiva e cultural, capaz de estimular o diálogo entre diferentes linguagens artísticas e enriquecer o processo de aprendizagem.
Apreciação musical e aspectos metodológicos (tempo, espaço e materiais)
A apreciação musical, por sua vez, constitui dimensão fundamental da Educação Infantil e deve ser inserida intencionalmente no cotidiano pedagógico.
Para crianças de 0 a 3 anos, recomenda-se a escuta de obras variadas, associadas a movimentos corporais e brincadeiras. Já entre 4 e 6 anos, amplia-se o repertório de escuta, contemplando diferentes gêneros, estilos, épocas e culturas, com destaque para a diversidade da música brasileira e internacional (Campbell, 2016).
A apreciação, nesse estágio, deve estimular o reconhecimento de frases e estruturas musicais, a identificação de instrumentos e a valorização da diversidade cultural, contribuindo para a formação estética e crítica das crianças.
Aspectos metodológicos relacionados ao tempo, ao espaço e aos materiais também merecem atenção. O documento indica que as atividades musicais podem ter duração aproximada de 20 a 30 minutos, realizadas três vezes por semana, em ambientes organizados de forma flexível e estimulante.
O RCNEI destaca como fundamental a presença de recursos variados, como instrumentos musicais, brinquedos sonoros e objetos do cotidiano que permitam diferentes explorações. Essa organização do espaço e do tempo pedagógico amplia as possibilidades de aprendizagem e garante que a música seja vivenciada de modo lúdico, criativo e significativo.
Avaliação em música: registro, observação e autoavaliação
Por fim, a avaliação em música na Educação Infantil pode basear-se no registro e observação do desenvolvimento vocal, rítmico, motor, criativo e de memória musical das crianças.
A autoavaliação pode ser incentivada, por exemplo, por meio de gravações das produções musicais, permitindo que as próprias crianças reflitam sobre aspectos como qualidade sonora, expressividade e pertinência dos sons utilizados (RCNEI, 1998, p. 75-77).
Dessa forma, a música na Educação Infantil não apenas promove aprendizagens musicais, mas também contribui para a construção da identidade, da autonomia e da sensibilidade estética das crianças.
Considerações finais sobre a ação pedagógica na educação infantil ✨
Gostaria de enfatizar que as aulas de música na Educação Infantil só alcançam pertinência quando fundamentadas em uma concepção ampla e plural de música, que reconhece a criança como protagonista do processo educativo (Penna, 2019, p. 151).
Nessa perspectiva, os processos educativo-musicais devem assumir a diversidade, a equidade e a inclusão como princípios estruturantes, assegurando experiências que respeitem diferentes contextos culturais e formas de expressão.
Ao mesmo tempo, é fundamental promover o envolvimento e a autonomia musicais das crianças (Madalozzo, 2019, 2021), de modo que a prática musical contribua não apenas para o desenvolvimento estético e comunicacional, mas também para a construção de identidades, vínculos sociais e direitos de aprendizagem significativos na primeira infância.
Minibio do autor
Matheus Henrique da Fonsêca Barros é professor do Departamento de Música da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), atuando no curso de Licenciatura em Música e como Coordenador do Programa de Pós-graduação em Música (PPGMúsica/UFPE). É Doutor em Música (Educação Musical) pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Mestre em Educação e Licenciado em Música pela UFPE. Foi pesquisador visitante na University of Delaware (UD). Atua na área de Música, com ênfase em Educação Musical, nos seguintes temas: formação e atuação de professores de música; aprendizagem baseada em problemas; metodologias ativas; educação musical, tecnologias e cultura participativa digital.
Referências 📖
BRASIL, Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil: Conhecimento de Mundo. Brasília, 1998. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/volume3.pdf. Acesso em: 13, dez. 2023.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei no 8.069/90, de 13 de julho de 1990. São Paulo: CBIA-SP, 1991.
BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 23 dez. 1996.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC/SEB, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf. Acesso em: 23 set. 2025.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil/ Secretaria de Educação Básica. –Brasília: MEC, SEB, 2010. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/diretrizescurriculares_2012.pdf. Acesso em: 23 set. 2025
CAMPBELL, Patricia Shehan. World music pedagogy: where music meets culture in classroom practice. In: ABRIL, Carlos R.; GAULT, Brent M. (Org.). Teaching general music: approaches, issues and viewpoints. New York: Oxford University Press, 2016, p. 89-111
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