A luta e a persistência: a desvalorização do professor na sociedade brasileira

Introdução: o discurso recorrente sobre a importância do professor
É recorrente, na sociedade, a disseminação do discurso sobre a importância dos professores para a formação dos indivíduos e, em consequência, para a construção de uma sociedade e de um mundo melhores. É comum ouvirmos que “o professor tem a mais importante das profissões, pois dela derivam todas as outras” e que “no Japão, o único profissional que não precisa se curvar diante do imperador é o professor” (apesar de inspiradora, a informação não procede. O protocolo recomenda que todos, inclusive os professores, se curvem diante do imperador.)
Tal discurso se amplia e ganha maior destaque no mês de outubro, quando as homenagens pelo Dia dos Professores se propagam em forma de posts em redes sociais, anúncios publicitários (sim, por incrível que pareça, nós também geramos lucro) e reportagens especiais em diversas mídias. As matérias, em geral, costumam sensibilizar os espectadores, pois, via de regra, o(a) professor(a) que protagoniza as narrativas é sempre um profissional que se sacrifica de alguma forma para garantir que os estudantes tenham suas vidas transformadas pelo poder da educação.
Diante das telas, vemos o professor que percorreu quilômetros, a pé, durante a pandemia, para levar material de estudos às casas dos estudantes e, assim, garantir que nenhum deles ficasse sem assistência; a professora que leciona, em um barracão improvisado na zona rural, para uma turma multisseriada e ainda acumula as funções de faxineira e merendeira para que os estudantes tenham, além de acesso às aulas, a garantia de estudar em um ambiente asseado e de fazer, pelo menos, duas refeições diárias. Sabemos que a exibição dessas histórias tem como objetivo homenagear esses profissionais que, mesmo diante de inúmeras dificuldades, seguem atuando de forma digna e comprometida. Eles merecem, de fato, todo o reconhecimento, mas, mais do que isso, merecem dignidade. Trata-se, portanto, de uma faca de dois gumes.
A docência como “sacerdócio”: o mito da caridade e a necessidade de valorização profissional
Ao enfatizar o altruísmo, o comprometimento, a seriedade e a dedicação com que os professores brasileiros exercem sua profissão em condições precárias, com pouca ou nenhuma assistência do poder público, sendo mal remunerados e sofrendo toda sorte de privações, a mídia reforça a ideia – equivocada – de que a docência é um sacerdócio.
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De que nós, professores, persistimos na profissão porque a educação é uma missão e porque trabalhamos por amor à causa. Apesar de bem-intencionadas, tais matérias reforçam a impressão, já cristalizada no senso comum, de que somos mártires. De que nós, docentes, não almejamos bons salários, um bom plano de carreira e boas condições de trabalho; de que não desejamos ter acesso a uma vida tranquila e confortável. Estão enganados! Trabalhamos, sim, com amor, mas não por amor. Desejamos ser respeitados, reconhecidos, valorizados e bem remunerados, como qualquer profissional. Como diriam os Titãs, “a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”.
Homenagens clichês vs. ações de valorização do professor

A mensagem que compõe o meme é atribuída ao cantor e compositor Adoniran Barbosa. Ele a teria proferido já no final da vida, quando se encontrava em uma situação de pobreza e pouco prestígio, embora sua obra fosse tão significativa para a cultura popular brasileira. Este ano, por ocasião do Dia dos Professores, o meme foi publicado em diversos perfis nas redes sociais e compartilhado, por professores, em diversos grupos no WhatsApp, em uma atitude que alguns colegas consideraram derrotista, mas que revela, na verdade, um forte traço cultural do povo brasileiro: a capacidade de rir de si mesmo diante da dificuldade.
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A mensagem ácida, talvez até um pouco cínica, pode representar uma resposta incomodada ao esvaziamento de sentido das homenagens diante do cenário educacional brasileiro. Ano passado, a revista Isto É publicou um artigo intitulado Como os professores se sentem no dia em sua homenagem, a qual retratou os sentimentos de vários docentes, os quais podem ser resumidos pelo depoimento de um professor de História da rede pública paulista: “Muito mais do que escutar frases clichês, queremos o reconhecimento através de ações que moralizem e fortaleçam nossa classe, como por exemplo, concurso público (estabilidade e plano de carreira), melhores condições de trabalho (salas menos lotadas e climatizadas, computadores adequados, bom acesso à internet etc.)”. O artigo traz, ainda, um dado importante: para 66% dos professores entrevistados, a desvalorização social é ainda pior do que a salarial.
O cenário de desvalorização do professor: abandono de cursos e o “apagão” docente
Em relação ao exercício da docência no Brasil, um dos temas que têm causado maior discussão e preocupação é a possibilidade de, daqui a alguns anos, sofrermos um “apagão” de professores, especialmente da Educação Básica. De acordo com o Censo de Educação Superior de 2022, 58% dos estudantes dos cursos de licenciatura abandonaram a universidade antes de concluírem a graduação. Pesquisas apontam, também, que é cada vez menor o número de estudantes do Ensino Médio que optam pela docência como escolha de profissão.
Em artigo publicado em 2015, no qual discute os tipos de desvalorização relacionados à docência e as consequências desse movimento social para o futuro da profissão e para o cenário educacional do país, o professor e pesquisador Westerly Santos argumenta que é urgente a criação de políticas governamentais de valorização da docência e do professor se quisermos construir um país minimamente decente.
O autor defende, ainda, que é necessário também que a sociedade como um todo faça uma reflexão sobre a atuação dos professores, não no sentido de vitimá-los, mas de entender as causas que contribuíram para a desvalorização desses profissionais e as consequências desastrosas desse processo para a nação. Dez anos depois, a situação descrita e discutida no texto permanece semelhante.
Os cinco tipos de desvalorização do professor e o impacto na carreira
Segundo Santos (2015), há cinco tipos de desvalorização da profissão de professor, os quais estão interligados e precisam ser amplamente discutidos e combatidos, a fim de que possamos, enquanto categoria e como sociedade, reverter esse quadro. São eles:
- Desvalorização econômica ou salarial: é o mais comum. Atinge o profissional e seus dependentes, pois os coloca em risco de subsistência. Os baixos salários não apenas inviabilizam a ascensão social dos professores, mas também restringem o acesso aos bens culturais, ao lazer, aos bens de necessidade imediata e material de consumo. Trata-se de uma condição perversa, pois tira do professor o direito à construção de um repertório sociocultural importante não apenas para o exercício de sua profissão, pois, sem referências artísticas, literárias, científicas, o seu trabalho tende a se tornar mecânico, tecnicista, mas também o torna um ser humano esvaziado, sem direito à arte, à beleza, ao sonho. Obriga o(a) professor(a) a assumir duplas ou triplas jornadas, dificultando o acesso à pesquisa, ao estudo e às novas tecnologias. Ao impedir o professor de obter novos conhecimentos, a precariedade salarial mina também a autoestima desse profissional, o que reflete em sua atuação, na qualidade de seu trabalho e de suas relações interpessoais.
- Desvalorização social: pode ser traduzida como prestígio social. Seria o apreço, a admiração, o respeito e a consideração que uma sociedade tem pelos profissionais de determinada área de atuação. De acordo com Santos (2015), o prestígio social está ligado à estima, que é um valor. Muitos estudantes, apesar de reconhecerem o valor de seus professores e de desenvolverem uma relação afetiva com seus mestres, ao constatarem as dificuldades por eles enfrentadas, rejeitam a ideia de se dedicarem à carreira docente. A curva do prestígio, decrescente, pode conduzir à depreciação – fenômeno já verificado na sociedade – e, por fim, ao colapso da docência.
- Desvalorização psicológica ou autodesvalorização: esse tipo de desvalorização pode ser refletido em um certo desânimo ou pessimismo diante da profissão e evoluir, até mesmo, para a perda do sentido e do significado da função profissional. Em muitos casos, leva ao adoecimento dos professores, que os afasta, temporária ou definitivamente, do exercício da profissão.
- Obsolescência: ocorre quando a profissão perde sua relevância devido à própria evolução histórica, científica e tecnológica. Verificamos, na contemporaneidade, uma tendência de obsolescência quanto aos métodos, aos modos e às práticas da profissão, especialmente em função das mudanças promovidas pelos usos sociais das novas tecnologias de informação e de comunicação.
- Desqualificação ou degenerescência: seria, junto à desvalorização econômica/salarial, o tipo mais preocupante, pois atinge a profissão em sua essência. Desqualificar uma profissão é tirar dela sua qualidade, rebaixá-la à “coisificação”, ou seja, no caso da docência, é fazer com que o professor deixe de acreditar na sua importância para o desenvolvimento pessoal dos seus alunos e da sociedade como um todo.
Conclusão: a indignação como motor para a luta e a valorização do professor
Acredito, caro(a) colega, que a leitura desse texto tenha provocado em você sentimentos como identificação, preocupação, desânimo, até mesmo uma certa tristeza. Também eu os experimentei escrevendo. Mas eu espero que você tenha chegado ao final desta leitura com raiva. Explico: a indignação é o que nos move. Não falo de raiva no sentido da agressividade, mas da raiva como o sentimento capaz de nos tirar da inércia, de nos fazer refletir sobre que atitudes podemos tomar para que a nossa profissão seja digna de respeito e valorização e assumi-las como compromisso conosco, com nossos estudantes e com a sociedade.
Não podemos negar que a docência exige de nós uma certa dose de utopia. Diante de tantas profissões, muitas delas mais rentáveis, você, como eu, deve ter escolhido ser professor(a) por reconhecer, na nossa profissão, sua importância política, social. Nós somos, sim – sem romantização nem falsa modéstia – responsáveis por humanizar pessoas, por fazê-las acreditar em si mesmas e, consequentemente, em um mundo melhor, mais justo, mais igualitário. A mesma parcela da sociedade que mina nossa profissão também tem consciência da importância do nosso papel e, por isso, nos apequena, nos desvaloriza. Como diria o grande Darcy Ribeiro, “o desmonte da educação é um projeto”.
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Eu espero, de verdade, que possamos nos unir e fortalecer enquanto categoria; que os ataques que temos sofrido não façam com que esmoreçamos, e sim que nos mobilizem para a luta; que não nos esqueçamos da nossa grandeza e, mais ainda, que há muitas crianças e jovens que dependem da nossa atuação para terem oportunidade e romperem a lógica perversa segundo a qual um grupo reduzido de pessoas se mantém no poder. Desejo, para nós, a coragem e a altivez da professora Lenita Oliveira, que enfrentou o Batalhão de Choque durante um protesto de professores por melhores condições de trabalho, em 2013, no Rio de Janeiro:

Referências
ANDRADE, Vinícius. Como professores se sentem no dia em sua homenagem. IstoÉ Dinheiro, 17/10/2024. Disponível em: https://istoedinheiro.com.br/como-professores-se-sentem-no-dia-em-sua-homenagem
SANTOS, Westerley Antonio. Uma reflexão necessária sobre a profissão docente no Brasil, a partir dos cinco tipos de desvalorização do professor. Sapere Aude, Belo Horizonte, v. 6, n. 11, p. 349–358, 2015. Disponível em: https://periodicos.pucminas.br/SapereAude/article/view/9764. Acesso em: 12 nov. 2025.
Minibio da autora
Paloma Borba é doutora em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). É professora adjunta do curso de Letras / Português da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e coordenadora do curso de Especialização em Estudos da Linguagem e Formação Docente (LINFOR/UFRPE). Atua na área de Linguística, com ênfase nos estudos sobre Gêneros Textuais, Multimodalidade, Letramentos e na Linguística Aplicada ao Ensino de Língua Portuguesa.
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