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Educando o olhar: a importância da linguagem audiovisual na escola

Linguagem audiovisual na escola

O cinema pode ser apreendido […] como experiência de vida. O que significa que ele pode ser outra coisa ou mais do que um objeto estético suscetível de ser julgado belo ou agradável. Ele pode marcar profundamente nossa existência da mesma forma que a literatura ou a música. Uma experiência de vida põe em jogo muito mais do que nosso simples gosto, ela põe em jogo nossa própria existência e aquilo que somos. (Guigue, 2004, p. 324)

Na infância e na adolescência, quando estamos na Educação Básica, assistir a filmes, séries, desenhos e novelas é, em geral, um momento de lazer. Por isso, a atividade raramente é associada ao ambiente escolar. Embora o audiovisual esteja presente nas salas de aula, a experiência é frequentemente vista como uma tarefa, e não como uma escolha dos alunos. A linguagem audiovisual na escola acaba sendo desassociada da fruição pessoal, tornando-se apenas mais uma atividade pedagógica.

Minhas próprias lembranças sobre o audiovisual na escola são distintas, variando com a identidade que eu assumia. Como estudante, eu assistia a filmes tanto na culminância de projetos quanto em momentos de lazer, uma espécie de “premiação” em datas comemorativas, como o Dia das Crianças ou do Estudante. Havia, no entanto, momentos em que os filmes tinham uma função utilitária: preencher o tempo de aula quando um professor faltava. Isso criava uma relação dúbia: por um lado, o filme era valorizado e esperado como um presente; por outro, era banalizado. Lembro-me, especialmente no fim do ano, de pedirmos: “Professor(a), não dê aula hoje, vamos ver um filme!”.

Como professora da Educação Básica, eu selecionava os filmes com cuidado. Eles serviam como recursos didáticos para aprofundar conteúdos (especialmente de Literatura), fomentar debates e dar base para a argumentação. Era uma forma de garantir que meus alunos, através do contato com a linguagem audiovisual, desenvolvessem não apenas senso crítico e autonomia, mas também sensibilidade e senso estético. Acredito, caro(a) colega, que você tenha preocupações semelhantes.

A Linguagem Audiovisual na Escola: de lazer a objeto de estudo

A forma como a linguagem audiovisual na escola é conduzida pode tornar a experiência banal e até chata. Quando o professor se limita a exibir um filme e, em seguida, pergunta se os alunos gostaram ou pede um resumo do enredo, sem mediação, a experiência não se torna significativa. O problema se agrava quando o filme escolhido não corresponde às expectativas dos estudantes, que preferem blockbusters, enquanto os professores insistem em obras mais complexas e fora do circuito comercial. Isso não é, contudo, um erro.

Lembro-me de um professor de Filosofia na graduação que disse: “Qualquer lugar pode ser espaço para a mediocridade. Menos a escola”. Não estou com isso dizendo que blockbusters não têm qualidade. Pelo contrário, afirmo, por experiência própria, que a curadoria criteriosa e bem-intencionada dos meus professores foi fundamental. Sem o entusiasmo deles ao apresentar filmes, músicas e textos, eu teria deixado de conhecer obras essenciais para a minha formação humana e profissional. Eu, certamente, não seria quem sou.

As professoras Grace e Janice Thiel, em sua obra Movie takes: a magia do cinema na sala de aula — que indico a leitura — defendem que “Ensinar a olhar, ver, contemplar e perscrutar o mundo à nossa volta faz parte da tarefa do educador. Assim, cabe questionarmos como vemos e lemos o mundo e suas representações e como podemos compreender os inúmeros textos que circulam socialmente, sejam com palavras, movimentos, gestos, sons, imagens ou todos esses movimentos articulados” (Thiel; Thiel, 2009, p.12). É, portanto, nossa tarefa educar o olhar dos alunos para a linguagem audiovisual na escola.

Mesmo que os filmes estejam presentes em quase todos os componentes curriculares, a linguagem audiovisual em si é pouco conhecida. Na maioria das vezes, lidamos com os filmes apenas como espectadores ou, no máximo, como mediadores de leitura dos seus temas. Acreditamos que o domínio da linguagem cinematográfica é responsabilidade de profissionais do cinema e da televisão. Mas nós, professores, podemos e devemos aprender.

Leia mais: “Luz, câmera, ação”: o que os trailers cinematográficos podem nos ensinar sobre argumentação? 

Assim como os textos verbais têm uma estrutura morfológica, sintática e semântica, a linguagem audiovisual também possui sua sintaxe própria. Desconhecer essa sintaxe significa ignorar as estratégias para a sua compreensão. Por isso, é fundamental que a linguagem audiovisual na escola seja ensinada de forma sistematizada, tornando os filmes um objeto de leitura tão formal quanto outros gêneros textuais.

Linguagem Audiovisual na Escola: A sintaxe em ação

A Rede Globo exibiu o remake da novela Renascer, cujo texto original, de Benedito Ruy Barbosa (1993), foi revisto e adaptado por seu neto, Bruno Luperi. A narrativa conta a saga do coronel José Inocêncio e de sua relação com a família e com os demais coronéis produtores de cacau no sul da Bahia. A trama é dividida em duas fases. A primeira conta a chegada de José Inocêncio à zona cacaueira e as dificuldades para obter um pedaço de terra e tornar-se produtor em uma região já dominada por coronéis. Mostra também o seu romance com Maria Santa e a família que constituíram, com a qual viviam felizes até a morte da personagem, após o parto do filho caçula. Depois desses eventos, a novela inicia uma transição para a 2ª fase, que se passa muitos anos depois. A sequência de transição da novela foi bastante comentada e emocionou diversos espectadores, inclusive o cantor Milton Nascimento, cuja música Clube da Esquina Nº2 foi escolhida como trilha sonora. Vejamos a sequência:

Fonte: https://gshow.globo.com/novelas/renascer/video/passagem-de-tempo-de-renascer-foi-reformulada-para-o-remake-compare-com-a-versao-original-12332161.ghtml

Neste vídeo, a emissora apresenta as sequências de passagem do tempo nas duas versões da novela, a original, de 1993, e o remake, em 2024. Em ambas, o personagem que conduz o espectador, inicialmente, é João Pedro, filho caçula de José Inocêncio, com quem o pai tem uma relação conturbada, pois atribui a ele a responsabilidade da morte de Maria Santa. Nesse espaço de texto, minha análise se deterá à sequência do remake, a qual pode ser vista a partir do instante 1:17 no vídeo.

O personagem João Pedro nos conduz em um plano sequência pela fazenda, principal cenário da trama. Ainda criança, ele se junta a Jupará e Diocleciano, amigos de seu pai, para pisar o cacau. O ponto de vista do espectador segue a câmera, que, em um plano aberto, mostra João Pedro correndo e subindo as escadas até o terraço. Ali, a dança começa:

Os personagens se movem em círculo, pisando o cacau e cantando, como em uma ciranda. A captação das imagens alterna entre planos abertos, que acompanham o movimento, e planos fechados, que nos permitem reconhecer os rostos e suas expressões de satisfação. Há cenas também em que a perspectiva do espectador é aérea, provavelmente captada por um drone. Nelas, evidencia-se um símbolo importante para o sentido da trama: o círculo em movimento, evidenciando que a vida não é feita de permanência, e sim de mudança. O círculo também diz respeito à relação entre pai e filho, que será retomada em algum momento na trama. No fim da sequência, em que são evidenciados o envelhecimento e a mudança dos atores, é percebida também a ausência do personagem Jupará, cuja morte é explicada somente depois, no decorrer da trama.

Paralelamente, é mostrada outra sequência, em que o personagem José Inocêncio, vestido com um cobertor que pertenceu à Maria Santa, sai do interior da casa e se encaminha ao alpendre, de onde observa a vida acontecendo na fazenda.

A câmera, no caso dessa sequência, também acompanha o personagem, primeiro de dentro da casa, depois acompanhando seu caminhar, dando a volta no alpendre. Há um enfoque, através do plano fechado, do close, em dois artefatos importantes para o sentido da sequência: o cobertor de Maria Santa, a quem José Inocêncio dedica amor e devoção. Assim, o cobertor o protege, como um manto, e marca sua conexão com a esposa, sua recusa em sair do luto e retomar a vida.

O outro artefato é a aliança, mostrada em detalhe, que representa não apenas o matrimônio e o vínculo do personagem com a esposa falecida, mas retoma a forma circular, que é evidenciada pelo envelhecimento do personagem, vivido inicialmente pelo ator Humberto Carrão, e depois por Marcos Palmeira. O close no rosto dos atores evidencia a passagem e a emoção de ambos. É o fim de um ciclo, de luto, recolhimento, e a transição para que o personagem possa, enfim, renascer.

Essa breve análise demonstra como a construção das cenas, que emocionam o espectador, se dá pela convergência de diversas semioses e recursos da linguagem audiovisual. Não há diálogos, apenas a sugestão de que os personagens cantam, o que torna o som não diegético, ou seja, inserido na edição. Há o uso da luz, solar, vibrante, nas cenas externas, e amena, controlada, mais sombria no ambiente interno da casa, cujo interior acolheu o personagem durante seu período de luto. As sequências, planos e enquadramentos mencionados não são recursos meramente técnicos. São eles que conduzem o olhar, o ponto de vista do espectador, fazendo-o crer naquela verdade que está sendo construída pelo diretor, pelos atores e pela equipe técnica da novela a partir das orientações do texto do autor.

Linguagem Audiovisual na Escola: da análise semiótica à prática

A revolução tecnológica que temos vivenciado tem modificado a forma como nos relacionamos e interagimos socialmente. No âmbito da educação, tais mudanças reverberam principalmente na maneira como lidamos com os textos, seja como leitores/ouvintes/espectadores ou como curadores/produtores. Em texto anterior, publicado neste portal, discuti o conceito de análise semiótica e dei algumas orientações sobre como realizar/mediar análises a partir dos pressupostos da gramática do design visual.

É primordial inserir nossos estudantes em um processo de multiletramentos, pois eles já estão imersos na cultura digital. O acesso à linguagem audiovisual, seja como espectadores ou produtores, já é uma realidade, graças à popularização de smartphones e programas de edição de som e imagem.

Em relação à análise fílmica, já promovida nas escolas, é essencial que ampliemos nosso olhar e nos apropriemos da linguagem audiovisual e seus elementos. Essa apropriação nos capacita a conduzir os estudantes nesse processo de letramento, uma necessidade preconizada na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), em que destaco a Competência 1 e uma das habilidades voltadas para a área de Linguagens e suas Tecnologias, no Ensino Médio:

A relação entre a competência e a habilidade em destaque nos mostra que a compreensão de um filme depende da forma como percebemos a maneira como os sentidos são construídos nesse gênero. Sendo assim, conhecer melhor os recursos que convergem para a sua composição não torna o nosso olhar meramente técnico; pelo contrário, amplia a nossa percepção, contribui para que vivenciemos a experiência estética, artística, social, política, de forma muito mais consciente, ampliando, inclusive, a reação emocional que temos em relação à obra.

Conclusão

A linguagem audiovisual na escola deve ser construída para formar espectadores conscientes e ativos. Esse aprendizado permite que os alunos deixem de ser apenas espectadores passivos e se tornem analistas, capazes de examinar, de forma consciente, os recursos usados na construção de cenas e sequências.

Esse repertório lhes dá autonomia para criar suas próprias produções, tornando-se protagonistas e produtores de arte, cultura e entretenimento. Eles podem atuar de forma participativa e significativa, pois a linguagem audiovisual tem um papel social e político importante, capaz de dar voz a discursos que geram mudanças significativas na sociedade. E isso, caro leitor, é transformador:

GLOSSÁRIO:

  • Cena: é a ação que ocorre num mesmo espaço e recorte temporal, podendo ser composta por um ou mais planos.
  • Sequência: é uma unidade dramática composta por uma ou mais cenas. É percebida pela continuidade da ação e não pela uniformidade de tempo e espaço.
  • Plano sequência: é um plano que registra a ação de uma sequência, sem cortes. A câmera segue os personagens em percurso, com alterações de espaço.
  • Som diegético: faz parte da cena, como um diálogo, o ruído de uma porta se abrindo, o estilhaçar de um copo.
  • Som não diegético: não faz parte, originalmente, da cena. É acrescentado posteriormente, no momento de edição.

Referências

  • AUMONT, J.; MARIE, M. Dicionário teórico e crítico de cinema. Campinas: Papirus, 2003.
  • BRASIL, SEB/MEC. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC/SEB, 2018. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/. Acesso em: 16 abr. 2024.
  • THIEL, G.C; THIEL, J.C. Movie takes: a magia do cinema na sala de aula. Curitiba: Aymará, 2009.

Minibio do autor

Paloma Borba é doutora em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). É professora adjunta do curso de Letras / Português da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e coordenadora do curso de Especialização em Estudos da Linguagem e Formação Docente (LINFOR/UFRPE). Atua na área de Linguística, com ênfase nos estudos sobre Gêneros Textuais, Multimodalidade, Letramentos e na Linguística Aplicada ao Ensino de Língua Portuguesa.

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