A escola que (se) transforma: como e quando começar?

Nas últimas décadas, a Educação Básica tem sido palco de debates intensos acerca de sua missão, relevância e efetividade frente às profundas mudanças da sociedade global. A escola, frequentemente retratada como um espaço estático, vem sendo provocada a (re)pensar seus modos de existir e de ensinar. O verbo transformar deixa de ser apenas um desejo e passa a figurar como urgência, convocando gestores, docentes, alunos e famílias a revisitarem o papel da escola na formação humana.
A transformação, contudo, não se limita a mudanças estruturais ou à mera adoção de tecnologias. Ela implica um novo olhar para as práticas pedagógicas, para a gestão participativa e, sobretudo, para a escuta ativa das necessidades e singularidades de cada comunidade escolar. Surge, então, uma pergunta fundamental: a escola deve (se) transformar para quê? A resposta, longe de ser única, está diretamente relacionada à construção de um projeto de sociedade mais justo, sustentável e plural.
A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) (2021) defende que a educação deve preparar indivíduos para lidar com a complexidade, a incerteza e a diversidade, destacando a importância do pensamento crítico, da empatia e da colaboração como eixos do século XXI. A escola, portanto, não pode prescindir da autocrítica e da abertura para o novo, assumindo a transformação como um processo contínuo e dialógico.
Exemplos internacionais de transformação escolar
Diversos países têm trilhado caminhos disruptivos para reconfigurar suas escolas. A Finlândia, por exemplo, aboliu disciplinas estanques em prol de projetos interdisciplinares, privilegiando a aprendizagem baseada em fenômenos e em problemas do mundo real (Sahlberg, 2021).
Singapura investiu fortemente na formação de professores inovadores, com ênfase em metodologias ativas e no desenvolvimento de competências socioemocionais.
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A Nova Zelândia, por sua vez, flexibilizou o currículo para contemplar a diversidade cultural dos estudantes, especialmente das comunidades Māori, promovendo uma escola mais inclusiva e contextualizada. Tais experiências mostram que a transformação escolar não é utopia, mas resultado de políticas públicas integradas, formação continuada de professores e escuta ativa da comunidade.
Caminhos para a transformação escolar
Importante ressaltar que inovação não se resume a laboratórios digitais ou à inserção de dispositivos eletrônicos em sala de aula. Muitas vezes, as mudanças mais impactantes começam pela revisão de práticas cotidianas, pelo fortalecimento do trabalho coletivo entre professores e pelo protagonismo dos estudantes em seu processo de aprendizagem. A escola inovadora é aquela que constrói junto, aberta ao diálogo e à experimentação.
Uma escola que decide se transformar precisa, antes de tudo, criar espaços de escuta e de diagnóstico participativo. Isso significa mapear desejos, necessidades e potenciais, ouvindo professores, alunos, famílias e funcionários. O diagnóstico não pode ser um mero formulário, mas um processo vivo de partilha de experiências e expectativas. O engajamento genuíno se dá quando todos se sentem parte do processo.
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A liderança escolar é fundamental para mediar conflitos, valorizar diferentes vozes e manter o foco no objetivo comum: oferecer uma educação significativa e transformadora. Experiências de escolas brasileiras que adotaram a gestão democrática, com conselhos participativos e assembleias escolares, têm mostrado resultados promissores em clima escolar, aprendizagem e autoestima dos estudantes (Apple; Beane, 2007).
Outro passo importante é identificar as forças e fraquezas do contexto local. Cada comunidade escolar é única e, portanto, o caminho da transformação nunca será igual em todos os lugares. É preciso começar com pequenas mudanças, testando novas práticas, avaliando resultados e, gradualmente, ampliando o escopo das inovações. O caminho, mais do que o destino, importa para consolidar uma cultura de transformação.
Ressignificação do trabalho docente e inclusão
Transformar-se enquanto escola implica, acima de tudo, ressignificar o trabalho docente. O professor deixa de ser mero transmissor de conteúdos e assume o papel de mediador, pesquisador e inspirador de trajetórias singulares.
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Nas salas de aula inovadoras, o erro é visto como parte do processo, e a aprendizagem acontece de forma colaborativa, por meio de projetos, debates, experimentos e produções autorais. Práticas de inclusão são essenciais nesse novo cenário. A escola transformadora é aquela que se compromete com o sucesso de todos, garantindo acessibilidade, respeito às diferenças e valorização das múltiplas inteligências.
Iniciativas como rodas de conversa, clubes de leitura e projetos de intervenção comunitária têm potencializado o protagonismo de alunos historicamente invisibilizados. A literatura de Edgar Morin (2000, 2015) reforça a importância do pensamento complexo para a formação de sujeitos capazes de atuar no mundo globalizado. Ao considerar o aluno em sua totalidade – corpo, mente, emoção, contexto social e cultural –, a escola amplia suas possibilidades de inclusão e de formação integral.
Avaliação e sustentabilidade das mudanças
A transformação da escola não é evento pontual, mas caminho contínuo. Para garantir a sustentabilidade das mudanças, é fundamental criar mecanismos de avaliação que envolvam todos os atores escolares. Avaliações formativas, autoavaliação docente, portfólios de aprendizagem e espaços de feedback são algumas das ferramentas utilizadas em sistemas de ensino inovadores (Fullan, 2020).
A escola que se transforma precisa também estar aberta à autoavaliação institucional, revisitando periodicamente seu projeto pedagógico e ajustando rumos sempre que necessário. A formação continuada dos professores, o diálogo com pesquisas recentes e a colaboração em redes de aprendizagem são estratégias centrais para manter viva a chama da inovação.
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O futuro da escola depende de sua capacidade de se (re)inventar continuamente, conectando saberes locais e globais, tecnologia e humanização, tradição e reinvenção. O ponto de partida para essa transformação é sempre o mesmo: a coragem de fazer diferente.
A escola que se transforma é aquela que, em vez de esperar condições ideais, se lança ao desafio de criar o novo a partir do que tem, com quem tem e onde está. Não há receita pronta, mas há caminhos possíveis – e eles começam agora, com pequenos gestos, escuta atenta e compromisso coletivo.
Experiências nessa temática
Box 1 – Experiência internacional: o currículo por projetos na Finlândia
Na Finlândia, desde 2016, as escolas da Educação Básica podem propor semanas inteiras sem aulas tradicionais, substituindo-as por projetos interdisciplinares chamados de phenomenon-based learning. Os alunos escolhem temas reais do seu interesse (como sustentabilidade ou cidades inteligentes) e, em equipes, investigam, discutem e apresentam soluções, desenvolvendo competências de colaboração, pesquisa e criatividade. Fonte: Sahlberg, 2021.
Box 2 – Prática inclusiva: roda de conversa sobre diferenças
Em uma escola pública do Recife, toda sexta-feira, o início do dia é dedicado a uma “roda de conversa sobre diferenças”. O tema pode ser deficiência, religião, famílias diversas, etnias ou estilos de aprender. Cada aluno tem espaço para falar, ouvir e propor ideias sobre como tornar a escola mais inclusiva. O resultado? Menos conflitos, mais empatia e engajamento de todos nas atividades.
Exemplo prático – Pequenas mudanças que transformam
No lugar da prova tradicional, a professora Cláudia propôs um portfólio digital: cada estudante do 6º ano deveria documentar, ao longo do bimestre, suas dúvidas, descobertas e soluções para desafios de Matemática no cotidiano (divisão de despesas em casa, orçamentos para um passeio etc.). Ao final, além de notas, os alunos receberam feedback individual sobre raciocínio, autonomia e trabalho em grupo.
Sugestões de atividades para professores
- Autoavaliação docente reflexiva: proponha, ao final de cada unidade, uma autoavaliação escrita: “O que aprendi com meus alunos neste período?” e “Que pequena mudança posso testar na próxima semana?”.
- Mapa de expectativas com alunos: organize um mural, físico ou virtual, para que os estudantes escrevam (de forma anônima ou não) o que esperam da escola, das aulas e o que gostariam de mudar. Analise coletivamente com a turma.
- Projeto “A escola do futuro em 5 anos”: divida a turma em pequenos grupos. Cada grupo deve imaginar e desenhar, em cartaz, como gostaria que fosse sua escola daqui a 5 anos, justificando as escolhas. Depois, façam uma exposição e debate.
- Debate docente: o que é inovar na nossa escola? realize encontros formativos (presenciais ou on-line) onde professores compartilhem pequenas experiências inovadoras, dificuldades, e tracem juntos objetivos práticos para o próximo semestre.
Considerações finais
A transformação da escola é um processo contínuo e essencial para responder às demandas de uma sociedade em constante mudança. Não se trata apenas de incorporar novas tecnologias, mas de ressignificar práticas pedagógicas, promover a gestão participativa e valorizar a escuta ativa das necessidades da comunidade escolar.
Exemplos internacionais, como os da Finlândia, Singapura e Nova Zelândia, demonstram que a transformação é possível e eficaz quando há políticas públicas integradas e formação continuada de professores.
No contexto brasileiro, a gestão democrática e a inclusão são caminhos promissores para uma educação mais significativa e transformadora. A escola que se transforma é aquela que se lança ao desafio de criar o novo a partir do que tem, com quem tem e onde está, sempre com coragem e compromisso coletivo. A sustentabilidade das mudanças depende de avaliações contínuas e da capacidade de se (re)inventar, conectando saberes locais e globais. O futuro da escola começa agora, com pequenos gestos, escuta atenta e a coragem de fazer diferente.
Minibio da autora
Renata Jatobá fez Pós-doutoramento em Bolonha pela Universidade de Lisboa-Portugal. É Doutora em Ciências da Educação pela Université Lumière Lyon 2 na França e Doutora e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco – Brasil. É Especialista em Éducation Pédagogique et Culture(s) de l`Altérité pela Université Claude Bernard Lyon 1 – França. É Coordenadora Científica da Especialização Avançada em Educação e Inovação Aplicadas à Educação Cooperativa, no Instituto CRIAP Psicologia e Formação Avançada Porto/Portugal. Realiza consultoria educacional, é autora de materiais didáticos e pedagógicos.
Referências
APPLE, Michael W.; BEANE, James A. Democratic Schools: Lessons in Powerful Education. Portsmouth: Heinemann, 2007.
BARBER, Michael; DONNELLY, Katelyn; RIZVI, Saad. O futuro da educação: reinventando escolas para todos. Fundação Santillana, 2013.
FULLAN, Michael. The New Meaning of Educational Change. 5. ed. New York: Teachers College Press, 2020.
HARGREAVES, Andy; FULLAN, Michael. Professional Capital: Transforming Teaching in Every School. New York: Teachers College Press, 2012.
MITRA, Sugata. The Hole in the Wall: Self-Organising Systems in Education. TED Books, 2012.
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 18. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 16. ed. São Paulo: Cortez, 2015.
OECD. Innovative Learning Environments. Paris: OECD Publishing, 2013. Disponível em: https://www.oecd.org/education/ceri/innovativelearningenvironments.htm. Acesso em: 30 jul. 2025.
SAHLBERG, Pasi. Finnish Lessons 3.0: What Can the World Learn from Educational Change in Finland? New York: Teachers College Press, 2021.
UNESCO. Reimagining our futures together: a new social contract for education. Paris: UNESCO, 2021. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000379707. Acesso em: 30 jul. 2025.
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