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Autoidentificação racial. O texto do escritor Pedro Martins foi usado, recentemente, por um xará seu. O jornalista Pedro Lins, apresentador da TV Globo Nordeste, em Pernambuco, rebateu com esta poesia o comentário racista de alguém que questionou, ao próprio, com quem poderia falar para retirar “os pretos” da TV. 

“Preconceito é uma ação
Onde a falta de virtude
Prevalece na atitude
De um ser sem coração

Ele pensa que é melhor
Que tem mais capacidade
Mas na verdade é maior
A sua imbecilidade

Se o sangue é da mesma cor
E a pele é só uma carcaça
Por que tanto desamor?
Tanta arrogância de graça?
Somos todos diferentes
Porque assim fomos feitos
Criaturas inteligentes,
Apesar dos nossos defeitos..”

Não foi apenas mais um caso do gênero. Pelo motivo de que uma afirmação como esta nunca é “apenas”, embora signifique, sim, acréscimo ao já vasto manancial de ofensas recebidas constantemente pela população de pele mais escura. 

Injúrias deste tipo nunca são incólumes. Por mais que engrossam uma lista já tão extensa, não calcificam ou fortalecem as feridas.

Pelo contrário: deixam sua marca e colaboram para que ela nunca cicatrize.  Ferimentos expostos, sim, mas cada vez mais combatidos, ainda que de formas menos beligerantes, como fez o jornalista. Combate que, para existir, precisa ser precedido por uma questão que vem ganhando proporção em todo o país, embora ainda longe do ideal: a autoaceitação racial. 

Qual a população negra no Brasil? Qual o motivo das modificações nestas autodeclarações?

Desde 2007, os negros tornaram-se maioria na população brasileira quando atingiram o patamar de 54%, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Para além do fator demográfico, algo que se relaciona bastante ao processo de mudança na identificação racial dos indivíduos (sendo de autoatribuição, esta sistemática do censo propicia mudanças quanto a este aspecto ao longo do tempo).

Recentemente, um estudo publicado pela Revista Brasileira de Estudos de População investigou os motivos por trás das modificações nestas autodeclarações. O resultado demonstra variação em todas as regiões brasileiras, sendo mais proeminente no Sul e no Sudeste do Brasil.

Locais onde, curiosamente, a porcentagem de pessoas que sempre se identificaram como brancas é historicamente maior. As análises utilizaram dados da PNAD (Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios), divulgadas pelo IBGE, referentes ao período de 1995 a 2015. 

Qual a contribuição do movimento negro nessa mudança?

Se este aumento observado na porcentagem de negros no Brasil está majoritariamente relacionado à mudança ocorrida no modo como as próprias pessoas se veem – deixando os elementos de cunho demográficos em segundo plano – o que proporcionou esta mudança de observação?

De acordo com Ciani Sueli das Neves, doutoranda em Direito, Mestre em Ciências Jurídicas e especialista em Direitos Humanos, o avanço, real, em relação a este aspecto, está relacionado a duas questões.

A primeira é o trabalho histórico e de importância relevante do Movimento Negro. “É um processo educativo realizado desde as campanhas dos censos, na década de 80, como a ‘não deixe sua cor passar em branco’, até os dias atuais”, afirma Ciani. 

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A importância de reconhecer-se para ser reconhecido

O outro elemento identificado pela especialista como agente do aumento da autoidentificação racial é a possibilidade de as pessoas poderem acessar determinadas políticas públicas e direitos em função desta autodeclaração. “A instituição da política de cotas raciais em que as pessoas precisam se declarar negras para acessá-la tem sido um dos elementos bastante positivos”, afirma.

Além disso, ela destaca a maior divulgação de imagens positivas de pessoas negras, seja como intelectuais artistas, ialorixás ou produtoras de conhecimento.

“Do ponto de vista individual, há a influência de pessoas que conseguiram, de alguma forma, enfrentar o racismo e vencer as imposições de desigualdade que estão colocadas. Algo que reverbera em uma conquista maior dentro de uma perspectiva de luta coletiva”, explica.

Vale lembrar que essa autoaceitação passa por algo que vai além da cor da pele. Claro que ela ainda é a maior determinante quando se pensa em racismo, visto que pessoas com pigmentação mais escura, retintas, são as que sofrem maior grau de preconceito.

Existem, entretanto, outros traços que também viabilizam este pertencimento, os chamados traços fenotípicos, que compreendem características faciais, cabelo, formato do corpo. “É dentro desta perspectiva que identificamos pessoas negras portadoras de pele clara e que também estão neste lugar. Por isso, trabalhamos com a soma de pretos e pardos”, detalha Ciani.

Qual a importância de as crianças se reconhecerem negras?

“O fato de se compreenderem como portadores de direitos, com percepção do seu lugar no mundo enquanto sujeitos”, responde Ciani. Essa identificação, segundo ela, fortalece a autoestima de forma que o indivíduo possa se organizar politicamente para exigir a garantia desses direitos dos quais é portador. 

“Se isso começa a partir da infância, ganhamos muito enquanto sociedade porque a grande probabilidade é de que esse processo educativo de crianças negras reconhecendo sua própria história. (não de escravidão mas de povos que eram constituídos a partir de territórios, experiências, saberes e relação de ancestralidade). O que configure pessoas fortalecidas que saberão seguir o seu próprio caminho.

Uma criança educada sob a perspectiva racial na escola é uma criança fortalecida que não tolerará a violação de direitos humanos como temos visto cotidianamente. Implica na efetivação da democracia de uma forma mais ampla, na promoção da justiça e, consequentemente, em sociedades mais equilibradas e justas”, analisa.

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Qual o papel da escola no estímulo à autoidentificação racial?

Existem alguns elementos primordiais na definição do papel da escola nesse processo de garantia dos direitos das crianças negras e que podem fortalecer o processo educativo e o papel da escola em si. A Lei 10.639, de 2003, institui a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira nos estabelecimentos educacionais. Já a Lei 11.645, de 2008, a inclusão de disciplinas sobre culturas africanas e indígenas.

Nos dois casos, observa-se a necessidade de difundir a contribuição que estes povos trouxeram para a formação da nossa sociedade.

“Desta forma, o grande pulo é que a partir do ensino destas disciplinas a gente passe a contar com uma escola que se organiza dentro de uma perspectiva não pautada na história única, no reconhecimento de que existem várias histórias para formar uma sociedade, várias culturas. Isto é imprescindível para que possamos viver em uma sociedade em que todos as pessoas sejam respeitadas a partir do seu lugar no mundo”, ressalta Ciani. 

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Para isso, é fundamental investir na formação do quadro que compõe a rede educacional, tanto de professores quanto de técnicos da educação.

“Isto para que eles saibam como lidar e enfrentar o racismo que existe no ambiente escolar. Não apenas institucional, mas o dos profissionais e do público-alvo que acessa esses espaços”, afirma a especialista que destaca, ainda, a necessidade da real implementação da Lei 10.6639 que, até então, com 18 anos da promulgação, não está presente na grande maioria dos municípios brasileiros. “Boa parte deles não tem empreendido nenhum tipo de esforço para que ela seja implementada.

Em muitos casos, são iniciativas isoladas, pontuais, de professores que têm trabalhado com a perspectiva de implementá-la por um compromisso político que assumem no enfrentamento do racismo.

Precisamos entender que, para que esse papel da escola seja significativo e efetivamente gere mudanças na vida das pessoas, é preciso que o poder público encare a Lei com a responsabilidade que ela precisa, sem que isto seja iniciativa dos(as) professores(as) porque o papel do estado é cumpri-la”, salienta.

Iniciativa pública ou privada: Onde as práticas estão sendo melhor implementadas na escola?

Dentre as instituições de ensino que implementaram as leis, os maiores exemplos são os das escolas privadas. “Não, entretanto, porque haja maior compromisso, mas porque há um interesse de se transformar em mercado tudo aquilo que se trata dentro da perspectiva de garantias de direitos de grupos minoritários, vulnerabilizados”, assinala Ciani.

Segundo ela, o que falta é que a grande maioria das prefeituras e estados reconheçam a importância destas Leis e que viabilizem políticas públicas efetivamente sérias. “É necessário, neste processo, que também entendam que este cumprimento não está relacionado a nenhum favor ou mérito de gestão.

É tão somente o cumprimento da Lei de Diretrizes e Bases da Educação do país e do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Precisa promover um ensino que permita às crianças e aos adolescentes compreenderem que eles também são herdeiros de uma história que construiu esse país e não está reconhecida.

O fato de termos, na grande maioria dos casos, a imposição de uma história única já se constitui como um dos elementos primordiais do racismo”, ressalta, enfatizando que não há mais tempo de utilizar o argumento de que estamos em um momento de aprendizagem. “Já temos 18 anos de Lei e isso precisa ser colocado em prática. Não há mais tempo para protelar. É hora de executar”, finaliza.

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Patrícia Monteiro de Santana

Jornalista formada pela Universidade Federal de Pernambuco em 2000. Com atuações em veículos como TV Globo, Revista Veja e Diario de Pernambuco, além de atuante em assessoria de comunicação empresarial, cultural e política.