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Iniciamos este texto com Paulo Freire para demarcar território, pois preciso dizer que a ciência é importantíssima para todos nós, seres humanos. Sabemos que as universidades vem sofrendo constantes ataques de diversos grupos em nossa sociedade, por isso quero deixar clara a minha defesa da ciência e de todos que a praticam de maneira séria. 

“A teoria sem a prática vira ‘verbalismo’, assim como a prática sem teoria, vira ativismo. No entanto, quando se une a prática com a teoria tem-se a práxis, a ação criadora e modificadora da realidade” 

Paulo Freire

Também é importante ressaltar que nem todas as áreas de estudo pressupõem uma prática. Há, claro, diversas áreas que são essenciais para a vivência do ser humano, (ainda mais em tempos de pandemia), que não necessariamente precisam ser transpostas à prática em nosso dia a dia.

Aqui, temos outro ponto que vem sendo muito atacado por negacionistas e opositores da ciência, que questionam a importância desses estudos, principalmente na área de Humanas, dando a entender que apenas devem ser valorizadas áreas de estudo que remetem à prática, priorizando a escola técnica em detrimento da universidade, como se houvesse necessidade de uma escolha entre uma e outra. Não, não faço parte desse grupo. 

A engenharia das pontes: expectativa e realidade

Como nosso foco aqui será a área da educação, defendo, assim como Freire, que sejam construídas pontes entre os saberes construídos na universidade e aqueles que surgem na prática das escolas, destacando todas as “potências” de nossa sociedade, tão rica e multicultural. É aqui que iniciamos nossa discussão. 

Como é de praxe em meus textos, gostaria de trazer algumas perguntas que nos levem à reflexão: você, assim que saiu da universidade, encontrou na escola exatamente aquilo que foi estudado nos livros e ao longo de toda a licenciatura?

Os estágios realizados foram suficientes ou só mostraram uma realidade específica? Ou se assustou com uma realidade totalmente diferente e teve de “improvisar” em quase todas as situações de aula? 

É, meu/minha leitor(a), em minha atuação ao longo de 16 anos de magistério até aqui, vejo muitos professores(as) recém-formados (isso também aconteceu comigo), se espantarem ao perceberem tantas peculiaridades de sala de aula que nem sequer foram citadas na universidade.

Parece haver um distanciamento, meio que intransponível, já que a academia, algumas vezes, parte de uma arrogância típica de alguns professores(as) que acreditam compor a “casa do saber”, que deve irradiar todas as suas descobertas aos mortais que estão abaixo dela.

Como professor universitário, sei que artigos como este que escrevo agora podem trazer mal estar entre a comunidade acadêmica. Talvez essa busca de acadêmicos pela autoproteção seja um dos motivos de ainda vermos tão poucos artigos científicos (feitos entre membros da academia e das escolas) com estratégias para uma aproximação entre universidade e escola. 

Quem são estes profissionais

A academia como um todo é composta por diversos tipos de profissionais, como em todo o ambiente de trabalho.

Há inclusive muitos que seguiram a carreira acadêmica e nunca conheceram a realidade das escolas de ensino básico, por exemplo; também há os que conheceram tal realidade, mas, após um tempo lidando apenas no ambiente universitário, acabaram ficando desatualizados quanto à realidade, “o chão das escolas”. Tais características acabam gerando pesquisas que atendem a realidades muito específicas, ignorando culturas e gerando ainda mais distanciamentos sociais. 

Por outro lado, vemos diversos profissionais que trabalham dia a dia no ensino básico nas escolas e que não conseguem acessar às mais importantes descobertas científicas realizadas nas universidades, além de não terem tempo para uma formação continuada, um aprimoramento de suas práticas por meio da academia, cursando especializações, mestrados, doutorados, mesmo com atuações exemplares e desenvolvimento de práticas inovadoras no seu dia a dia.

Isso acontece principalmente pela falta de políticas públicas voltadas à formação contínua de profissionais dentro de sua carga horária de trabalho, o que acaba gerando apenas iniciativas individuais de profissionais que buscam se aperfeiçoar.

Se só há vantagens na troca, o que estamos esperando?

Apesar de algumas universidades possuírem colégios de aplicação, em que diversos profissionais atuam tanto na pesquisa quanto nas aulas práticas de ensino básico, vemos, cada vez mais, esse abismo que separa as universidades das escolas.

Veja: se há vantagens para os dois lados e os resultados dessa união entre universidades e escolas tendem a ser benéficos para toda a sociedade, por que as pontes não são construídas?

Tenho algumas hipóteses, mas a principal delas é a dificuldade de as “elites intelectuais” (se é que podemos dizer que isso existe) aceitarem a ascensão de classes menos abastadas e que trazem imensa riqueza cultural em suas raízes, como indígenas, negros, quilombolas etc.

Talvez por isso se mantenha essa ideia de “elite” entre aqueles que, em vez de socializar o conhecimento, desejam mantê-lo preso em gaiolas que somente os “escolhidos” podem apreciar.

É comum vermos diversos “intelectuais” rejeitarem mais do que a prática realizada nas escolas por professores(as) de fora da academia, mas também o conhecimento de vida do povo; os gêneros musicais que dele surgem; a maneira de se expressarem; enfim, a cultura popular em geral, que, para muitos, nem cultura é. Mas isso é papo para um outro texto.

Ressalto, mais uma vez, que há diversos trabalhos acadêmicos essenciais à sociedade e a universidade é um espaço sem o qual um país não encontra qualquer progresso. Apenas destaco alguns pontos que, a meu ver, podem e devem ser aprimorados e, em alguns momentos, combatidos.  

Como temos um curto espaço aqui, não pretendo trazer soluções e todas as respostas para um problema tão antigo e complexo, que demandaria muito mais esforço; apenas algumas ideias que podem minimizar tais dificuldades.

A falta da ponte causa sérias consequências

Porém, antes de trazer tais sugestões, gostaria de fazer mais uma reflexão com você, meu/minha leitor(a). Temos também de falar das consequências da falta de pontes entre a universidade e a escola na vida dos(as) nossos(as) estudantes. Para isso, reflita comigo:

  • Quando foi que você conheceu as universidades? 
  • Na época em que estudava no ensino básico, você sabia para que servia a universidade? 
  • Alguém explicou para você o que poderia ser feito após o término do ensino médio?
  • Você, como professor(a) no ensino básico, já conversou com os seus estudantes sobre o papel da universidade? 

Faço essas perguntas porque, mesmo na época em que cursava o fim do terceiro ano do Ensino Médio, eu não sabia ao certo o que fazer na faculdade, já que nunca haviam conversado comigo a fundo sobre isso. E não se trata apenas da necessidade de um teste vocacional, mas de um esclarecimento sobre o papel da universidade na nossa vida, mesmo.

Então, o que fazer?

Bom, como tento sempre ser coerente e seguir, na prática, o que defendo na teoria, trago aqui algumas sugestões que podem servir como as tais pontes entre as teorias pedagógicas das universidades e a prática das escolas:

Maior utilização das novas tecnologias

Por meio de teleconferências, que tal organizar encontros entre diferentes comunidades, no sentido amplo da palavra, buscando conversas que conscientizem escolas e universidades das reais necessidades das pessoas de nosso país.

Quem já leu outros artigos meus sabe como defendo a tecnologia como meio de aproximação de pessoas, trocando experiências e sempre valorizando o que o ser humano tem de melhor, por isso acredito que, em vez de buscarmos apenas conceitos abstratos em textos muitas vezes já desatualizados, nada melhor que, em tempo real, conversar com as pessoas e descobrir o que elas buscam e do que precisam, reunindo dados mais precisos e aprimorando as pesquisas acadêmicas. 

O papel da universidade aqui se mostra essencial, já que pode, com toda sua excelência em pesquisas e domínio de diversas teorias pedagógicas, trazer contribuições ímpares para a sociedade, aprendendo e ensinando não apenas ao lado dos(as) professores(as) que atuam nas escolas, mas com representantes de pessoas com deficiência, líderes de centros comunitários, de povos indígenas, de comunidades ribeirinhas, quilombolas etc. 

Tais encontros podem iniciar com um caráter mais informal, com intuito de conhecimento por todos os envolvidos, e evoluir para outros mais formais, em que seriam ofertados cursos chancelados pelas universidades, mas que poderiam ser oferecidos também pelos membros de fora dela, como convidados.

O uso das novas tecnologias, aqui, teria a grande vantagem de derrubar barreiras físicas e temporais, inclusive oferecendo maior acessibilidade para surdos, por meio de interpretação em Libras, e cegos e pessoas com baixa visão, com recursos como a audiodescrição. 

Ampliação da atuação de grupos de pesquisa

Sim, sabemos que há vários trâmites necessários para que grupos de pesquisa sejam criados e ampliados, mas há meios para que membros de fora da universidade estejam mais presentes nesses estudos.

As novas tecnologias podem também aqui facilitar essa inclusão, permitindo, por exemplo, a ligação com centros de estudos que periodicamente ocorrem nas escolas, dentro da carga horária dos docentes. Dessa forma, haveria mais facilidade para o desenvolvimento de projetos acadêmicos dentro das escolas, como pré-vestibulares e tantos outros, numa parceria verdadeira e permanente. 

Abertura das universidades às escolas

A partir do passo descrito no item anterior, da mesma forma que as escolas poderiam abrir suas portas para a comunidade acadêmica, estudantes do ensino básico poderiam ser convidados a conhecer toda a estrutura acadêmica, podendo, assim, entender melhor o papel da universidade na sociedade.

Apresentações culturais de jovens, tanto da escola na universidade como vice-versa, também trariam uma rica troca cultural para todos.

Visitas guiadas coletivas a museus e centros culturais

A combinação entre escola e universidade também traria aqui interessantes trocas, com construção de projetos para além desses ambientes, mais uma vez unindo experiências e o que cada ambiente, universidade e escola, tem de melhor.

Quebra de barreiras linguísticas

Para que essa troca pedagógica seja verdadeiramente rica e proveitosa, é necessário um acordo para que a linguagem utilizada nesse processo seja clara, didática e direta.

Digo isso porque, como destaquei no artigo “Vamos tornar os textos acadêmicos mais interativos e acessíveis”, a linguagem de textos acadêmicos, tanto oral como (principalmente) escrita, na maioria das vezes, em vez de promover maior inserção de diversas camadas de nossa sociedade em diversos debates, acaba por enclausurá-los dentro da própria universidade.

É preciso, ainda, derrubar preconceitos e valorizar todo o tipo de expressão, todo o tipo de saber, desde o mais popular ao mais erudito (até porque o mais popular pode ser o mais erudito). 

Como disse anteriormente, por conta do pequeno espaço que temos aqui, a intenção é de acender a centelha, de trazer algumas ideias iniciais nessa construção, que dependerá de diversos outros trabalhadores, nas escolas, nas universidades, nas ruas das comunidades, nas praças, nos museus, em toda a sociedade.

Vamos trocar ideias nos comentários deste texto ou, até mesmo, por e-mail (tiagopuc@gmail.com). 

Entre universidade e escola, não há embates por protagonismo, dicotomias. São faces de uma mesma moeda, que não deve ser jogada ao alto à espera de um golpe da sorte para que uma ou outra seja a vencedora, mas unida a várias outras moedas, juntando uma fortuna capaz de proporcionar liberdade e ascensão para todos os setores da sociedade até que não sejam mais necessárias pontes, pois estaremos todos num só continente, em constante práxis freireana. 

Tiago da Silva Ribeiro

Professor do Magistério Superior no Instituto Nacional de Educação de Surdos nas disciplinas de Língua Portuguesa e Tecnologias da Informação e Comunicação. Tem experiência em turmas dos Ensinos Fundamental e Médio, além de já ter atuado na modalidade on-line como mediador, orientador de trabalhos finais de curso, desenhista educacional, professor-autor e coordenador de curso. Seu Doutorado em Letras é pela PUC-Rio e teve como tema de trabalho o Internetês. 

Recentemente, organizou, junto à professora Tania Chalhub, o livro “Reflexões de um mundo em pandemia: educação, comunicação e acessibilidade”, disponível gratuitamente no site da Editora Ayvu, no link https://4c940ada-a8f2-4241-ab73-4171a11a5dc8.usrfiles.com/ugd/4c940a_7dd2bd65b600437aa48cd765d9bec7b4.pdf