O que dizer sobre altas habilidades e superdotação? Parafraseando Caetano Veloso e Gilberto Gil em Dom de Iludir, “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”. Uma frase do dito cancioneiro popular que diz muito sobre a complexidade e a não dicotomia maniqueísta da maioria das coisas (e pessoas). 

Quando se trata de crianças, por exemplo, a palavra “especial” abraça amplíssimos espectros: das necessidades educacionais diferenciadas, que são direcionadas tanto àquelas com alguma deficiência de aprendizagem quanto às dotadas de altas habilidades/superdotação (AH/SD). 

Os que sempre vislumbram um tom mais esverdeado na gramínea alheia podem questionar: qual a dor do segundo caso? É irrefutável o fato de que há mais delícias na dita situação, mas não é possível ignorar sua complexidade, características próprias e necessidade de adequação.  

Como pais e mestres devem agir ao perceber características de superdotação e altas habilidades nas crianças? São fatores que costumam trazer, correlatamente, comportamentos diferenciados?

O início: como perceber

Os desafios de pais começam ao se depararem com o desconhecido/inexplicável. Sim, uma surpresa agradável, mas completamente inesperada. No blend de sentimentos, a alegria vem acompanhada da curiosidade e de alguns receios. O que isso significa? Quem é e como lidar com esta criança? 

Antes de buscar as respostas a estas questões, é importante observar algumas características para se estar mais certo do que ela pode ser, realmente, dotada de altas habilidades. Afinal, existem outras possibilidades, como a chamada Síndrome de Savant. 

De acordo com Thiane Araújo, psicóloga e especialista em Educação Especial, algo que consiste em uma capacidade acima da média em uma área específica para pessoas que têm quociente de inteligência entre 40 e 70. “Apesar de estar muito relacionada ao transtorno do espectro do autismo (TEA), sua manifestação não se restringe a ele. É considerada rara. Apesar do desempenho acima da média em uma área específica, o conhecimento e a compreensão sobre o tema são deficitários.  A habilidade é acentuada na capacidade de memorização, assim, a pessoa tem o mesmo destaque para fazer inferências e resolver problemas.  O conteúdo é mecanizado. Por isso não faz parte do fenômeno das AH/SD”, afirma.

É importante, também, entender que que indivíduos com AH/SD não formam um grupo homogêneo, como mostram os mais recentes estudos a respeito da temática. São pessoas que podem ter diferentes habilidades cognitivas, bem como níveis diversos de desempenho: alta competência em várias áreas ou em única, por exemplo. 

Características de crianças com altas habilidades ou superdotação

As informações abaixo não são um manual, um guia. São apenas indícios a serem observados na busca pela identificação de possíveis características de AH/SD.

Comportamentos:

  • interesse por coisas ditas incomuns, muitos questionamentos e tentativa de entendimento sobre o objeto de interesse; 
  • muita energia, o que pode, às vezes, gerar o equivocado diagnóstico de hiperatividade;
  • necessidade de respostas mais elaboradas e não aceitação de “explicações prontas”;
  • necessidade de aprender coisas novas e costume de fazer algo de outras formas.

Durante a aprendizagem:

  • não necessariamente apenas interesse em atividades intelectuais. Há crianças com habilidades específicas que não se envolvem em atividades intelectuais acadêmicas, pois seu foco de interesse é atividade esportiva, desenho ou dança por exemplo;
  • apresentação de alto grau de abstração e síntese;
  • criticidade e ceticismo;
  • capacidade de grande armazenamento de informações relacionadas a muitos assuntos.

Criatividade:

  • grande capacidade de dedução;
  • capacidade de adoção de várias alternativas para a solução de um problema;
  • percepção de ricas relações entre situações, fatos ou objetos.

Dificuldades quanto ao diagnóstico

Apesar de todos os indicativos citados acima, muitas vezes o fenômeno das altas habilidade/superdotação (AH/SD) pode, mesmo, demorar a ser identificado. Segundo Thiane, porque, infelizmente, o pensamento vigente é de que ele se manifesta apenas no perfil acadêmico, que envolve habilidades gerais. 

“Sabemos hoje, contudo, que o fenômeno também ocorre em pessoas que têm as específicas, ou seja, refere-se também à capacidade para adquirir conhecimento ou habilidade para realizar uma ou mais atividades de um tipo especializado e dentro de uma gama restrita. As habilidades específicas relacionam-se às mais variadas formas de expressão humana, como por exemplo: balé, matemática, composição musical, fotografia, química etc.”, ressalta.

Já o perfil acadêmico, que consiste em habilidades gerais, envolve funções cognitivas que são medidas facilmente por testes de aptidão geral ou inteligência, os tão falados testes psicométricos ou, melhor, instrumentos psicológicos. 

“Diferentemente da habilidade geral, entretanto, a específica não é facilmente reconhecida no ambiente escolar. E, até o momento, não possui todas as suas formas de expressão contempladas nos testes padronizados de inteligência. Assim, para sua identificação, é necessária uma observação por um período mais longo, incluindo opiniões de diferentes profissionais relacionados à área em questão”, assinala. 

As gradações das AH/SD

Ela informa, ainda, que o fenômeno de comportamento das AH/SD apresenta gradações, dentre as quais a precocidade e o prodígio. “A precocidade é uma habilidade adquirida antes do esperado, considerando os marcos de desenvolvimento.  O prodígio é um talento extraordinário que uma criança apresenta desde a primeira infância, como se fosse um adulto.  Mozart, por exemplo, foi prodígio”, exemplifica.  

Apesar de a precocidade ser uma das gradações das AH/SD, isto não significa que a criança precoce está determinada a desenvolver este fenômeno de comportamento. Isso se deve porque a AH/SD, atualmente, não é concebida apenas a partir de uma habilidade acima da média, mas por mais dois indicadores; a saber: a criatividade e o envolvimento com a tarefa. 

“Consideramos, também, que essa criança se encontra em desenvolvimento, podendo acontecer de não manifestar todos os indicadores do fenômeno de comportamento de AH/SD no decorrer dos anos.  Por conta disso, a identificação da AH/SD, de forma consistente, se dá a partir dos 7 anos de idade. O que significa que não seja importante a identificação de crianças com habilidade precoce. Pelo contrário, é extremamente necessária com o objetivo de darmos suporte ao desenvolvimento e a expressão dos seus potenciais”, alerta.

O que pais e professores podem e devem fazer? 

Como agir quando casos de precocidade ou prodígio forem identificados? É preciso, primeiramente, que responsáveis e mestres estejam sempre atentos à expressão dos potenciais das crianças, quer para habilidades gerais ou específicas, associadas a uma busca constante para criação, aperfeiçoamento e dedicação a uma ou mais áreas do seu interesse.  Um movimento que deve ser espontâneo, partindo da criança.  

“Criança com AH/SD tem iniciativa, autonomia.  Por isso, muitas vezes, são questionadoras e não gostam de rotina. Verificando-se esse conjunto de aspectos, os pais devem conversar com a escola. Esta, por sua vez, deve ter preparo. Caso não tenha, a orientação é que o busque, com o objetivo de ofertar no contraturno da sala regular o Atendimento Educacional Especializado (AEE) suplementar, a fim de subsidiar atividades de enriquecimento”, orienta.

Diagnóstico por especialistas

Mesmo que os pais ou professores verifiquem o alinhamento da sua criança à maioria das características apresentadas, eles não são os mais aptos a fazerem o diagnóstico definitivo. Esta conclusão fica a cargo de especialistas em saúde e educação — educadores, psicólogos, pedagogos, psicopedagogos, dentre outros. Por isso, é importante sempre lembrar que escalas e testes funcionam apenas como ferramentas, embora importantes, na identificação destas características. 

Thiane explica que pelo fato de, na atualidade, a AH/SD ser vista como um fenômeno de comportamento, sua identificação de fato é complexa. 

“Primeiro porque não pode se basear apenas em um referencial quantitativo, seja pedagógico ou psicológico (por meio do QI). Segundo, porque os indicadores de criatividade e envolvimento com a tarefa são muito dinâmicos, já que se relacionam com fatores emocionais e sociais. Terceiro, porque os indicadores não precisam se manifestar na mesma intensidade, mas também não pode haver uma discrepância significativa entre eles. Quarto, porque o sujeito não está fadado a sempre estar manifestando o comportamento de AH/SD. Assim, indica-se que psicólogos e pedagogos, especializados em AH/SD, possam dar suporte ao processo de identificação.  Digo isso porque o professor da sala regular é fundamental nesse processo, contudo ainda carece de conhecimento sobre a área.  É importante que os professores entendam que a AH/SD não está restrita à área acadêmica”, informa.

A importância da inclusão escolar

Uma das perguntas que os pais mais se fazem, mesmo antes de terem o diagnóstico efetivo do fenômeno em seus filhos, é “Como será na escola?”.  Por este motivo, falar em educação inclusiva significa prever o atendimento irrestrito, com apoio às necessidades educacionais e tudo mais relacionado à individualidade de cada criança.

Um desafio que passa, algumas vezes, pela falta de qualificação adequada do corpo docente. Muitas vezes, é necessário até procurar instituições de ensino com expertise neste tipo de atendimento. A legislação, entretanto, os ampara para que tenham o professor de apoio na escola regular. 

Caso bem preparados, o fato é que os educadores são importantes para facilitar o crescimento e o desenvolvimento de talentos e habilidades. Sempre lembrando que o currículo precisa ser diferenciado, adaptado às suas necessidades, o que demanda profissionais capacitados.

Necessidades pedagógicas, emocionais e sociais

Uma criança com AH/SD é, de fato, alguém muito focado em sua área de interesse. Gosta de aprofundar seus conhecimentos e aprimorar suas habilidades, por meio do treino. Por conta disso, há uma tendência a se isolar.

“Esse isolamento também pode ocorrer por falta de identificação com seus pares o que, muitas vezes, leva-as a buscar contato com crianças mais velhas ou adultos. Todavia, ocorre que os interesses e conhecimentos nem sempre estão alinhados à sua maturidade emocional e isso acaba expondo-a a conflitos psíquicos”, informa.

A psicóloga relata, ainda, que geralmente associa-se crianças com AH/SD a comportamento opositor e indisciplinado. Pesquisas indicam, contudo, que o fenômeno se manifesta mais satisfatoriamente naquelas com dinâmica emocional mais “organizada “. 

“Como essas crianças têm um grande interesse em se ocupar das áreas relacionadas aos seus potenciais, necessitam de um olhar diferenciado por parte dos professores para respaldar o trabalho pedagógico como um todo, pois não é determinante, inclusive para os que possuem habilidade gerais, que seu desempenho pedagógico seja superior em todas as disciplinas. Como também possuem muita vontade de saber, de ampliar seus conhecimentos, acabam não se aprofundando adequadamente em certos temas ou habilidades e passam para outro assunto ou atividade sem concluir a anterior.  Nesse sentido, precisam ser trabalhados para aprofundar seus interesses de forma criativa, mas, também, sistematizada”, orienta. 

NAAH/S Recife 

Além de psicóloga e especializada em educação especial, Thiane Araújo é coordenadora do Núcleo de Altas Habilidades e Superdotação (NAAH/S Recife), serviço de Atendimento Educacional Especializado (AEE), que tem como objetivo dar apoio pedagógico suplementar por meio de atividades de enriquecimento. 

O serviço foi implantado em 2006 pela Secretaria de Educação da Prefeitura do Recife em parceria com o Ministério da Educação (MEC) e oferece a Unidade de Atendimento ao Aluno, realizando avaliação para identificação do fenômeno de comportamento de AH/SD e acompanhamento para desenvolver os potenciais desses estudantes.

O Núcleo recebe estudantes da rede de ensino da Prefeitura do Recife, mas também da rede estadual, privada, federal e de outras instituições privadas ou públicas, de outros municípios do estado de Pernambuco. Possui o serviço de Unidade de Atendimento ao Professor, que atende profissionais que acompanham estudantes matriculados ou não no NAAH/S Recife.  

Este serviço consiste na promoção de orientações pedagógicas e formações sobre o tema AH/SD para profissionais de educação, de saúde e instituições educacionais. Para solicitar solicitá-los, o profissional deve enviar um e-mail para naahs.recife@educ.rec.br.

Por último, para os pais de estudantes matriculados no NAAH/S Recife, são oferecidas orientações psicológicas, por meio da Unidade de Atendimento à Família, ofertadas seguindo o documento orientador para implantação dos NAAH/S, publicado pelo MEC em 2005.

Aos pais ou responsáveis interessados, enviar e-mail para naahs.recife@educ.rec.br . É necessário anexar relatório da professora explicando quais as habilidades do estudante além de ofício de encaminhamento elaborado pela escola da criança. Para obter este documento, a família deve apresentar a prescrição do médico ou terapeuta à escola.

Patrícia Monteiro de Santana é Jornalista formada pela Universidade Federal de Pernambuco em 2000. Com atuações em veículos como TV Globo, Revista Veja e Diário de Pernambuco, além de atuante em assessoria de comunicação empresarial, cultural e política.