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Sem dúvida, uma das etapas da educação básica que mais passa por problematizações e críticas, década após década, é a etapa de alfabetizar as crianças. 

Muitas vezes, de modo irresponsável, se atribui a culpa para os problemas de alfabetização exclusivamente aos métodos utilizados, aos alunos, aos familiares dos alunos, e, como não poderia deixar de ser, às professoras dos anos iniciais.

Ao lado dessas críticas, também não é incomum ouvirmos que, em algum momento da história educacional brasileira, a alfabetização já foi um processo mais tranquilo, sem grandes sobressaltos, através do qual boa parte das crianças conseguia dominar a leitura e escrita logo nos primeiros anos de estudo. 

Deixando de lado a culpabilização superficial e a percepção idealizada do passado, cabe pensarmos de modo mais crítico e propositivo sobre essa etapa e questionar: afinal, alfabetizar já foi mesmo mais fácil?

ALFABETIZAÇÃO NO BRASIL: O INÍCIO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA OBRIGATÓRIA

Em primeiro lugar, na desconstrução de um certo saudosismo pedagógico, cabe lembrar que durante muito tempo a educação pública brasileira não era ofertada para todos de modo democrático. 

Mais precisamente, foi somente a partir da Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971, que passamos a ter reconhecida a garantia do acesso obrigatório dos alunos ao então chamado 1º grau, conforme podemos ler no artigo 20 desta lei: “o ensino de 1º grau será obrigatório dos 7 aos 14 anos, cabendo aos Municípios promover, anualmente, o levantamento da população que alcance a idade escolar e proceder à sua chamada para matrícula.”. 

Em síntese, teríamos agora a camada popular entrando na escola pública, que, por sua vez, não parecia estar preparada para essa mudança de paradigma.

Se em 1970, tínhamos, entre jovens de 7 a 14 anos, uma taxa de escolarização de 67% (fonte: Estatísticas da Educação Básica no Brasil); em 2019, na faixa dos 6 aos 14 anos, chegamos a uma taxa de 99,7% (fonte: PNAD Contínua).

Ou seja, se antigamente uma parte considerável da população jovem estava fora da escola, hoje podemos dizer que esse acesso já está universalizado.

Os conflitos sociais, até então escamoteados ou distanciados das discussões educacionais, agora ocupavam as salas de aula. Voltamos, então, ao principal tema desse texto, o processo de alfabetização. 

Nessa etapa, notamos que, cada vez mais, se faz necessário desenvolver um olhar atento para a multiplicidade de identidades que ocupam as salas de aula, afastando de vez o apego a uma prática pedagógica pautada por um alunado idealizado e, por isso mesmo, irreal. Para nos ajudar nessa reflexão, Bortoni Ricardo é assertiva em dizer que:

Diferentemente dos alunos oriundos das classes mais abastadas, cuja variedade de língua é também a variante de prestígio, e também a que é ensinada na escola, a maioria dos alunos das classes menos favorecidas além de ter que, praticamente, aprender uma nova língua, não têm sua variedade de língua valorizada e muito menos colocada como objeto de estudo na sala de aula (BORTONI-RICARDO, [s.d.]).

ALFABETIZAR É COMPLEXO: TRÊS PONTOS PARA REFLEXÃO

Como vimos brevemente na última seção, um primeiro ponto que precisa ser levado em conta na tradicional afirmativa que busca comparar as práticas e os resultados do passado com nossa realidade atual é entender que estamos tratando de escolas e públicos bem diferentes. 

Uma primeira escola, bem mais excludente, composta por alunos que, muitas vezes, tinham facilidade de acesso a um ambiente alfabetizador em casa, livros disponíveis e incentivo ao estudo de maneira mais sistematizada. 

Uma outra, mais plural e complexa, com alunos de diversos estratos da sociedade ocupando o mesmo ambiente formativo, muitos com carências e demandas sociais que nem sempre possibilitam que sua atenção esteja plenamente voltada para seu processo de escolarização. 

Ainda pensando sobre esse choque de perspectivas, cabe pensarmos também em três pontos que são trazidos nessa improdutiva busca pelo passado:

1) A culpabilização do aluno:

Ao invés de repensar estratégias pedagógicas, questionar a pertinência de práticas antiquadas ou mesmo reavaliar a pertinência de certo saberes curriculares, há quem acredite que o problema resida quase que exclusivamente no aluno, ou seja, se o aluno fosse outro, tudo daria certo. 

Mesmo sendo fácil demonstrar porque essa visão é equivocada, é sempre bom lembrar que a escola se constitui como um espaço dinâmico, que deve se preocupar constantemente na reavaliação de seus processos. Se um dos principais objetivos da escola é mediar saberes com seu público-alvo, não faz muito sentido desconsiderar justamente o aluno nessa equação, como se ele fosse um item secundário.

2) As práticas não repensadas

O tópico anterior dialoga bastante com este na medida em que não é possível acreditar que as mesmas atividades, os mesmos exercícios e os mesmo encaminhamentos pedagógicos irão surtir efeito idêntico ano após ano nas turmas.

Se, às vezes, as propostas precisam ser adaptadas quando vamos, na mesma escola, de uma turma para outra, o que dirá quando anos passam e ainda estamos presos às mesmas atividades?

Um exemplo clássico é o uso de folhinhas de atividades, muito comuns em sites de materiais alfabetizadores e onipresentes em turmas dos anos iniciais. Não há nenhum problema em recorrer a folhinhas com exercícios para reforçar, de modo lúdico, algum conteúdo com os alunos, praticar a escrita das letras ou enfatizar os fonemas trabalhados. 

O problema é quando esse uso se dá de modo pouco criterioso, sem pensar se aquela proposta realmente dialoga com o aluno atual ou se, de fato, está contribuindo para sua alfabetização.

Em uma cartilha dos anos 1970, encontramos, na página destinada ao GE, o seguinte “texto”: “A gema é de ôvo. / Gegê toma gemada de ôvo. / Toma gêma e leite gelado. / A gilete é do pai do Gegê.”, conforme podemos ler na imagem acima.

Não é difícil, ainda hoje, encontrarmos nas mais diversas fontes, atividades de alfabetização muito semelhantes a essa do exemplo. 

Então, cabe novamente o questionamento: será que trabalhar fonemas de modo descontextualizado, apresentando pseudotextos formados por orações sem nenhuma ou com pouquíssima coesão entre as partes – a gilete é do pai do Gegê (?) – e ainda com informações redundantes – a gema é de ovo (!) –, é o melhor caminho?

Há quem diga que muitas gerações de alunos foram alfabetizadas através dessas práticas, mas e quantas gerações não se alfabetizaram? Será que existe mesmo algum material ou método infalível e isento de críticas ou atualizações?

3) O esvaziamento do caráter intelectual do professor

O último tópico desta seção envolvendo o problema de se afirmar que antigamente alfabetizar era mais fácil está na desconsideração do professor e da professora como profissionais da educação reflexivos, ou seja, ao dizer que antigamente era melhor, está se menosprezando todo o intenso trabalho que muitos docentes realizam em condições cada vez mais adversas.

Há muito planejamento, muita busca por especialização, muita determinação e muito esforço envolvido nas práticas pedagógicas atuais. Dialogando com docentes de diversas partes do país, é possível reconhecer um trabalho de grande qualidade que muitos buscam desempenhar, mesmo quando toda uma conjuntura coloca tal determinação à prova.

ATIVIDADES DE ALFABETIZAÇÃO: UMA PROPOSTA, MUITOS DESDOBRAMENTOS

Repensar os encaminhamentos envolvendo práticas alfabetizadoras não passa por desconsiderar todos os saberes desenvolvidos pelos docentes durante todo seu percurso formativo, também não passa por abandonar atividades mais tradicionais na crença de que apenas novas propostas devem ser valorizadas na escola. O saudosismo é tão improdutivo quanto a exagerada neofilia.

Pensando, então, em possíveis caminhos, há uma grande variedade de atividades que podem ser desempenhadas no processo de alfabetização e podem complementar as atividades mais corriqueiras envolvendo leitura e escrita.

Como exemplo, indicarei como o simples planejamento de um lanche especial para uma turma dos anos iniciais pode se converter em uma atividade alfabetizadora com diversos níveis de complexidade, abarcando desde o ensino de língua portuguesa até mesmo o ensino de matemática.

Nessa atividade, a proposta será organizar a produção de uma sala de frutas. É uma atividade que não demanda datashow, cartolina, tinta, isopor nem nenhum outro recurso além dos costumeiros quadro e caderno.

O segredo está em perceber as possibilidades de desdobramento que uma atividade cotidiana pode ter como oportunidade de alfabetização.

Incentivo à oralidade

Primeiramente, pode-se incentivar a oralidade, através de uma exposição sobre quais frutas seriam as ideais para compor a salada. Nesse ponto, já estaríamos estimulando o repertório individual dos alunos iniciando até mesmo um trabalho envolvendo futuras pesquisas: quais frutas são as melhores? Quem quiser incluir uma mais diferente tem que dizer por que, se posicionar.

Que fruta vocês conhecem e quais não conhecem? Propor pesquisa de frutas regionais e indagar sobre os nomes diferentes que existem para a mesma fruta (tangerina, mexerica, bergamota…) também podem ser caminhos para aguçar a curiosidade discente.

Após esse trabalho envolvendo a exposição oral, cabe sistematizar no quadro as escolhas da turma através da produção coletiva de uma lista.

Entendendo essa atividade como uma prática de reforço dos conceitos ortográficos, pode-se partir dessa ação para trabalhar hipóteses de escrita e também a complexidade de diferentes famílias silábicas, como: sílabas formadas por consoante e vogal, como em banana, ou o caso de sílaba formada só por vogal, como em uva

Além disso, dá para trabalhar a nasalidade e a presença de dígrafos, como em maçã ou manga. Note que é possível variar a complexidade de acordo com as palavras em uso, ao abordar uma grande variedade de estruturas silábicas e não recorrer ao folclórico “vovó viu a uva”.

A aquisição da língua escrita inclui a aprendizagem do código, porém não se reduz a ele. A aquisição da língua escrita inclui a leitura, mas não a coloca adiante da escrita. (FERRERO, 2011, p. 76)

Após a produção coletiva e a definição de qual seria a lista de frutas, solicite que os alunos copiem no caderno as combinações e sistematizem a primeira parte do trabalho de escrita. Em seguida, poderia ser proposta a produção de uma receita: como se faz a salada?

É só cortar tudo e jogar num pote? Desse modo, se avança na complexidade, partindo do trabalho com palavras isoladas para uma produção textual coletiva.

Sugestões de trabalho

Até mesmo o trabalho que envolve matemática pode se desenvolver, através de discussões sobre proporção, quantidades e medidas: para essa salada, quanto de cada fruta será necessário? Morango é menor, então tem que ter mais, abacaxi é fruta grande, então menos. Calculamos a quantidade? Quanto custaria essa salada?

Pode-se trabalhar com encartes de supermercado ou escrever no quadro possíveis valores para cada frutas para que, em grupo, calcule o valor total da salada.

Ao final do percurso dessa atividade, a salada de frutas poderia se tornar real, ou não, tudo a depender dos recursos da escola e dos familiares dos alunos. Independente da materialização da salada, é importante lembrar que todo esse processo já está repleto de palavras contextualizadas, de atividades com intencionalidades alfabetizadoras claras, de matemática em situações cotidianas, de produção de textos reais…

Ensinar bem é ensinar para o bem. Ensinar para o bem significa respeitar o conhecimento intuitivo do aluno, valorizar o que ele já sabe do mundo, da vida, reconhecer na língua que ele fala a sua própria identidade como ser humano. (BAGNO, 2015, p. 202)

Conclusão

O que se buscou foi evidenciar como o trabalho alfabetizador contextualizado, reflexivo, pode se dar partindo de uma atividade bem simples que, a depender do ritmo e das demandas da turma, pode se desdobrar em muitas oportunidades consistentes de alfabetização, não desmerecendo o trabalho regular da rotina escolar, mas complementando com outras possibilidades de ensino.

Portanto, é importante reconhecer que vale muito mais a pena repensar os objetivos da escola atual, valorizar o trabalho sério e comprometido das professoras e professores e garantir aos alunos o direito à educação de qualidade, do que caminhar numa improdutiva busca por um passado romantizado. 

Como nos lembra Belchior, “no presente, a mente, o corpo é diferente / E o passado é uma roupa que não nos serve mais.”. Se é que alguma vez nos serviu.

Referências

BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico. 56ª ed. São Paulo. Parábola Editorial, 2015.

BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Nós cheguemu na escola, e agora?: sociolinguística & educação. São Paulo: Parábola Editorial, 2005.

______. Contribuições da sociolinguística educacional para o processo ensino e aprendizagem da linguagem. Disponível em: https://www.stellabortoni.com.br/index.php/artigos/707-iootaibuicois-ia-soiiolioguistiia-iiuiaiiooal-paaa-o-paoiisso-iosioo-i-apaioiizagim-ia-lioguagim. Acesso em 28 mai. 2022.

FERREIRO, Emilia. Com todas as letras. 17ª ed. São Paulo: Cortez Editora, 2011.

Diego Domingues – graduado em Letras (UFRJ), mestre em Educação (UERJ) e doutor em Linguística Aplicada (UFRJ). Atualmente é professor de língua portuguesa no Colégio Ped