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Pelos olhos de uma criança, o mundo inteiro pode ser algo muito além dele mesmo. Por meio da sua ótica, o trivial vira encantamento, poesia ou diversão. Uma casca de ovo transforma-se em uma casinha; uma caixa de sapato, em um carrinho; uma panela; em instrumento musical. Tudo vira brinquedos.

 E, assim, enquanto tudo o que se enxerga pode ter um significado muito além do usual, a vida ganha sentido.

Esse processo especial e tipicamente infantil de apreender o mundo e seus significados permite que conceitos e percepções se instalem e solidifiquem-se com mais embasamento, quando apreendidos desde cedo. 

Por meio da utilização de brinquedos feitos a partir de sucata, portanto, é possível que a criança entenda, desde os primeiros anos, o planeta como seu lar sem “lado de fora” e que, portanto, toda ação de descarte precisa ser planejada.

Lições que ainda podem vir acopladas ao desenvolvimento da criatividade e de noções de empreendedorismo, por exemplo.

Sucata: o que é e por que é diferente de reciclagem?

Sucata é a denominação de qualquer material, fruto de descarte ou resíduo que não possa mais atender à finalidade original. Exemplo: peças de computador desativado, garrafas plásticas utilizadas, resíduos de produtos eletrônicos quebrados, peças de PVC ou alumínio, dentre tantos outros.

É importante deixar claro para os pequenos que a reutilização de materiais de sucata é diferente de reciclagem. Nesta, os materiais (vidro, plástico, metal, papel) voltam ao seu estado original, podendo transformar-se no mesmo produto ou em outro. Na reutilização, por sua vez, o produto não será modificado, apenas utilizado novamente após um processo de higienização e/ou reforma. 

Para a elaboração destes objetos, pais e professores podem se utilizar tanto dos resíduos domésticos quanto de material obtido (com máximo grau de cuidado) em ferros velhos.

O despertar da criatividade e da consciência ecológica

Trabalhar com brinquedos confeccionados a partir de sucata pode contribuir de forma efetiva para uma miríade de aprendizados. Além do incentivo à criatividade e à utilização prática do processo criativo, também desperta as crianças para a consciência ambiental/ecológica.

Fazer com que elas se utilizem de materiais que iriam para descarte para confecção de objetos de decoração (vasos, enfeites diversos) ou utilitários (bijuterias, caixinhas de presentes, brinquedos, entre outros) incute a “semente” da consciência ecológica e, consequentemente, a formação de uma geração mais sensível a esta temática.

A professora Luzenira Maria Ferreira da Silva, licenciada em Desenho e Plástica, Arquiteta, Urbanista e mestra em Educação, salienta que desde a “Carta da Terra”, documento assumido pela UNESCO em 2000 que representou um novo código de ética planetário, fala-se em uma aliança global para cuidar do planeta, evitar a nossa destruição e a da diversidade da vida.

“Hoje, em pleno século XXI, após 22 anos da publicação desta Carta, nos deparamos com o relatório alarmante do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) da ONU publicado em abril de 2022. Esse relatório nos dá um ultimato: ou mudamos o nosso sistema de desenvolvimento – o que implica mudar a nossa consciência e padrões de consumo – ou não poderemos reverter os custos humanos e ambientais advindos desse sistema predatório. E o relatório traz ainda um prazo assustador para evitar uma catástrofe maior, até 2025”, ressalta.

Ela acredita que, diante desta situação, o trabalho com sucata pode ser um convite para refletirmos, de forma lúdica, sobre temas tão necessários e urgentes como o nosso modelo civilizatório predador e consumista, que vem abreviando a existência humana e a do planeta. 

“Saber a história das coisas, como propõe a ambientalista Annie Leonard, é imprescindível para criarmos essa nova ética planetária. Além de compreender que o ser humano é natureza e não apenas parte dela, e que o seu desenvolvimento deve se dar de maneira equilibrada para não comprometer o todo. O trabalho com a sucata ainda permite a experimentação e a descoberta, estimula a criatividade. Esse estímulo se dá desde o recolhimento da sucata até a ressignificação desses objetos descartados a partir da dimensão pessoal e individual do aluno”, analisa.

O artista e educador de circo social, Cleiton Orman, também costuma trabalhar com esta temática e tipo de material com seus educandos. Ele enumera impactos diversos, principalmente quando o facilitador se planeja para isso. 

“É nítido que quando a proposta de utilizar materiais e objetos que virariam lixo é trabalhada na perspectiva educativa de explorar a criatividade de uma criança é, por si só, um impacto de conscientização sobre o meio ambiente. A consciência de que nada se descarta, tudo se reutiliza, se reaproveita, se recicla. E que todo e qualquer artigo de sucata ou lixo pode ganhar um novo significado. Além disso, o educador ainda pode aplicar seu conhecimento sobre o tema, agregando ludicidade e motricidade técnica dos jogos e brincadeiras malabarísticas. E o mais bacana: não é preciso ter dinheiro para criar um jogo ou brinquedo. Quando existe criatividade, a imaginação é o limite”, acredita.

Desenvolvimento cognitivo

A utilização desta ferramenta de aprendizagem pode trazer outros resultados além dos mais óbvios e já mencionados acima, conforme ressalta Luzenira.

 “A educação ambiental acontece do individual para o coletivo. Nos faz perceber que como parte de um sistema, também podemos ajudar a transformar o todo, com ações criativas que ajudam a melhorar a qualidade do ambiente. Além dessa consciência ambiental, o trabalho com a sucata permite ainda o desenvolvimento cognitivo por meio do raciocínio lógico, o afetivo. Isto porque a criança cria um elo com o que foi produzido e a coordenação motora fina, trabalhada no manuseio para a confecção do objeto proposto. O trabalho com sucata permite também a cooperação e a socialização, fortalecendo a ideia de coletividade”, afirma.

Trabalhando com sucata em sala de aula e em casa

Como professores e corpo docente, de maneira geral, podem trabalhar a utilização da sucata, por meio dos materiais reciclados, na sala de aula? Dentre outras possibilidades, por meio de projetos pedagógicos que podem envolver desde uma turma até a escola inteira, como gincanas, exposições, feiras etc.

Lembrando que esse aprendizado de lidar com brinquedos reciclados ou reutilizados no universo lúdico pode acontecer, sim, desde os primeiros anos. “Desde a educação infantil, é possível trabalhar com a sucata, sabendo que nessa fase a exploração dos materiais tem uma importância maior do que criar objetos que atendem as expectativas de adultos e não ao espírito curioso da criança. Já no ensino fundamental, podemos trabalhar mais com a subjetividade dos alunos, criando objetos diversos”, explica Luzenira.

Em casa, pais ou responsáveis também podem incentivar este hábito participando das brincadeiras de seus filhos e, a partir delas, mostrando a importância da reciclagem e reutilização. “As crianças sempre vão procurar objetos descartados para explorar: examinar sua textura, bater para ver se sai algum som ou até mesmo criar histórias a partir de determinada coisa. Então, acredito que seja importante aproveitar esses momentos”, afirma Luzenira.

Empreendedorismo e disseminação de conhecimento

Com o estímulo e orientação dos professores, os estudantes podem fazer exposições de suas criações e descobertas e até planejar uma feirinha dos objetos construídos. Essa troca de conhecimentos com outros estudantes, além de convidados externos como funcionários, familiares e responsáveis, possibilita que estes aprendizes possam disseminar o conhecimento adquirido.

Mencionando o consumo, essa pauta também rende um interessante tópico a ser abordado na discussão sobre empreendedorismo infantil. Confeccionar seu próprio produto ensina a não desperdiçar. Comercializá-lo traz, já para este universo dos anos iniciais, a noção do valor do dinheiro e dos modelos econômicos vigentes. 

“É possível, a partir do estímulo para a participação em uma ética mundial, por exemplo, mostrar como o modelo produtivo baseado no lucro incessante das megacorporações representam a condenação da vida na Terra. Devemos estimular ações coletivas que reúnam grupos de estudantes em trabalhos significativos, para mostrar como cidadania demanda organização e empenho coletivo. Lembrar a frase do líder pacifista indiano, Ghandi: “Se deseja mudar o mundo, comece por sua aldeia”, aponta Luzenira.

Alguns cuidados antes de confeccionar os brinquedos com sucata

O artista circense e educador Cleiton Orman destaca alguns cuidados quanto à segurança no manuseio de sucatas. “A depender da faixa etária, é importante observar se o artigo é produzido com pequenos materiais que a criança possa ingerir e sofrer um possível engasgo, se todo objeto está bem fixado nas emendas ou conexões e se as extremidades do brinquedo estão com bom acabamento, evitando que artigo vire um objeto perfuro/cortante”, informa.

Cleiton destaca, ainda, a importância dos cuidados com a higiene. “É importante observar se o material a ser manuseado está devidamente limpo e higienizado e se a criança tem algum tipo de alergia ao que será manipulado. A depender do material que for confeccionado o brinquedo, manter em local seco e arejado, fazer a lavagem e/ou a higienização periodicamente”, orienta.

Como utilizar sucatas ou recicláveis para fabricar brinquedos

Cleiton Orman oferece algumas dicas de como criar diversos jogos e brinquedos com sucatas ou materiais recicláveis, sempre com a supervisão de um adulto:

  • Sacolas plásticas: mesmo princípio dos malabares com lenço. Com a sacola inflada, amassada ou até mesmo esticada, é possível propor vários desafios individuais ou coletivos, utilizando partes do corpo como pés, mãos, nariz e cabeça.
  • Mangueiras: com pequenos pedaços, é possível confeccionar as argolas/aros, para a realização de malabares ou, até mesmo, praticar jogos de lançamentos em objetos.
  • Cabos de vassoura: serve para realizar jogos e brincadeiras de manipulação e equilíbrio.
  • Cano de PVC e madeira de paletes: confecção do rola-rola, aparelho de circo da modalidade de equilíbrio.
  • Par de meias e tecido: é possível construir um equipamento de malabares conhecido como swing poi (instrumento de malabarismo, muito utilizados por artistas de circo. Consta de uma corda, com uma bola no fim, terminado em fitas coloridas. Foi criado pelo povo Māori da Nova Zelândia. Homens e mulheres o utilizam para aumentar a flexibilidade, força e coordenação).

Confeccionando seus próprios brinquedos

De acordo com Cleiton, nos malabares, o brinquedo mais comum e mais prático para se confeccionar com material reciclável é a famosa bolinha de papel:

  1. Passo 1: separar qualquer tipo de papel (caderno, revista, rascunho, jornal) e fita adesiva.
  2. Passo 2: unir duas ou três folhas.
  3. Passo 3: amassá-las de modo que fiquem em formato de uma bolinha, que caiba na palma da mão.
  4. Passo 4: passar a fita adesiva em volta de toda a bolinha de papel, de modo que não desfaça o seu formato.  Observação: se a fita adesiva for colorida, o brinquedo fica mais atrativo, visualmente.

Patrícia Monteiro de Santana

Jornalista formada pela Universidade Federal de Pernambuco em 2000. Com atuações em veículos como TV Globo, Revista Veja e Diario de Pernambu