formação docente na pandemia

Sabemos que as nossas relações sociais, o nosso estar no mundo, de maneira geral, modificou-se em função da emergência do coronavírus e da consequente pandemia ocasionada pelo COVID 2019, exigindo, de acordo com as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), o isolamento social neste período de tantas perdas. 

O escândalo das mortes em massa de pessoas, registradas e veiculadas diariamente nas mídias digitais e televisivas, os danos afetivos relacionados à saúde emocional dos indivíduos, seja pela perda de um ente querido – ou medo de que algo assim aconteça -, pelas mudanças bruscas de rotina, nos novos protocolos de biossegurança ou pela perda de emprego e os novos modos de trabalho remoto, transformaram-se em uma realidade difícil de ser vivenciada nesse processo de quarentena.

Para muitas pessoas, isso resultou em impactos de natureza psicológica, tais como, por exemplo, ansiedade e depressão.                                   

No campo da educação não foi diferente. A educação parou na perspectiva de repensar concepções mais amplas do ponto de vista da prática pedagógica tecida aqui como práxis, como um instrumento de mudança da prática docente, ou seja, como uma ação consciente e participativa, que surge “da multidimensionalidade que cerca o ato educativo” (FRANCO, 2016, p.536), organizada em meio a intencionalidades, cujas práticas (re)construídas dão sentido a tais intencionalidades. 

Nesse sentido, os sistemas de ensino, ao repensar a educação nesse cenário, e considerando as singularidades e a pluralidade dos sujeitos implicados no processo educativo e o próprio processo educativo em si, compreenderam que a prática docente reclama novos processos de aprendizagem, novos métodos de ensino, novos modos de pensar os componentes curriculares em razão de suas especificidades, novas práticas avaliativas, novas linguagens e novos saberes na ação de ensinar no contexto de pandemia.

Nessa direção, por exemplo, novas práticas de letramento digital são exigidas, em função das práticas realizadas agora no ambiente virtual, aspecto que requer do professor não apenas um aparato tecnológico para sua efetivação, mas também e, sobretudo, uma formação continuada para se relacionar teórico-metodologicamente com esse universo tecnológico e suas (im)possibilidades.

Vale ressaltar, por sua vez, que tais demandas não devem estar a cargo, exclusivamente, do professor, mas pensadas, estrategicamente, do ponto de vista das políticas públicas educacionais em nível nacional e regional nos sistemas de ensino público e privado.

“Todo dia ela faz tudo sempre igual”: a fabricação do cotidiano das práticas docentes em tempos de pandemia

O intertexto que fazemos no título deste tópico, com o trecho da música “Cotidiano”, de Chico Buarque, no contexto das práticas docentes, é acionado no sentido de complexificar os fazeres da prática como ações diárias que não são estanques, mecanizadas, tecnicistas, como historicamente convencionou-se pensar o trabalho do professor. 

Nesse contexto, podemos questionar: “todo dia ela faz tudo sempre igual”? Em outras palavras: o que acontece no cotidiano escolar se dá exatamente do mesmo jeito? As atividades diárias são sempre realizadas sob uma lógica reprodutivista? Possuem sempre os mesmos objetivos, as mesmas intenções? É provável que não.                  

Para Certeau (1998), a (re)invenção do cotidiano é marcada tanto pelas estratégias expressas, nesse caso, no discurso oficial prescrito pelos órgãos governamentais para efetivarem o ensino mediado pela tecnologia, quanto pelas táticas consideradas, por exemplo, como as maneiras encontradas pelos professores para operacionalizar suas práticas no ensino remoto nesse contexto de mudança, em que outros aspectos são, inevitavelmente, escancarados, tais como: a infraestrutura da casa desse profissional, a sua dinâmica familiar, a ausência de aparato tecnológico, a familiaridade com as tecnologias, o acesso à internet e a falta de suporte das instituições de ensino para execução do ensino remoto.                       

O cotidiano escolar, dessa forma, precisou ser pensado em suas reinvenções e deslocamentos (CERTEAU, 1998), assim como outros setores da sociedade, em função dos imperativos trazidos pela quarentena, os quais acionaram uma reorganização do espaço educativo, já que foram suspensas as atividades presenciais em creches, pré-escolas, escolas e universidades, emergindo o ensino remoto e educação a distância, sob a máxima de que “a educação não pode parar”, a partir da persistência de um modelo de normalidade diante de um quadro de excepcionalidade (GUIZZO, MARCELLO E MÜLLER, 2020).                                            

O ensino remoto e o ensino a distância, portanto, aparecem como alternativas para lidar com os impactos da pandemia no contexto educativo, substituindo temporariamente o ensino presencial. Esses métodos de ensino e de aprendizagem, apesar de se efetivarem no ambiente virtual, possuem suas características próprias. 

Os métodos de ensino a distância e seus impactos no professor

O ensino a distância configura-se como uma modalidade de ensino, a qual possui regulamentação específica, podendo ser introduzida na educação básica e na educação superior.

Nessa modalidade, professores e alunos estão separados físico, temporal e espacialmente, portanto, o ensino exige a utilização de tecnologias de informação e de comunicação que possibilitem o acesso do aluno ao conteúdo das disciplinas no tempo próprio de suas possibilidades, caracterizando-se, assim, por sua flexibilidade, pela presença de tutores para acompanhamento pedagógico dos discentes e por estratégias metodológicas próprias. 

No ensino remoto, por sua vez, as aulas são transmitidas em tempo real, de modo que professor e alunos de uma determinada turma estabeleçam interação nos mesmos dias e horários previstos no modelo presencial de ensino.

Configurar-se-ia, desse modo, num esforço para que se mantivesse a rotina de sala presencial transmutada para um ambiente virtual, no qual os discentes podem acessar de diferentes espaços. 

Para tanto, as instituições de ensino realocaram as disciplinas, a carga horária e o conteúdo programático para serem realizadas no ensino remoto, fazendo uma adaptação, do ponto de vista metodológico, para seguirem o que foi concebido para o ensino presencial.

Embora não seja uma novidade esses modos de conceber e praticar o ensino e a aprendizagem no contexto educativo, o processo de transição do ensino presencial para o ensino em EAD e para o ensino remoto revelou, no cenário da pandemia, desafios significativos para a formação do professor, o que parece apontar para uma evidente mudança paradigmática, para a qual ainda, certamente, não temos dados suficientes para avaliar seus impactos. 

Todavia, nesse cenário, percebemos que esses novos dispositivos pedagógicos refletem, diretamente, não apenas em novas formas de se pensar o currículo das instituições de ensino, em todos os níveis e modalidades, mas também na formação do professor, seja ela inicial e/ou continuada.

Nesse sentido, acreditamos ser relevante, sobretudo nesse momento, pensar os fazeres da prática docente na perspectiva das reinvenções dos professores quanto às suas ações profissionais, espaço extremamente fértil para teorização dos saberes produzidos nesta nova sala de aula virtual, cujas especificidades devem ser objeto de reflexão na construção dos currículos de formação de professores, os quais, indiscutivelmente, foram impactados pelas dinâmicas sociais atuais já sinalizadas. 

Ademais, fugimos a uma tendência ainda bastante recorrente, infelizmente, de rotulação das práticas docentes em tradicionais, no sentido de anacrônicas, ultrapassadas, em que o professor é visto como apático e resistente aos processos de mudança, enquanto os discursos acadêmicos vigentes e as imposições curriculares advindas dos que fazem as políticas educacionais aparecem como a “pedagogia da novidade”.

Complementamos ainda que nem sempre há uma consciência por parte do professor, sobre qual(is) pressuposto(s) teórico(s) estão respaldadas suas práticas.

Tal fenômeno pode ser compreendido em função da ausência (ou da presença de um modelo) de formação continuada, a qual impossibilita uma teorização sobre o fazer docente e descredibiliza o professor enquanto um intelectual, um produtor de saber. 

Pode também ser compreendido pela ausência de uma apropriação das discussões teórico-­metodológicas emergentes, articuladas às novas demandas sociais, como nesse momento pandêmico, em que sequer houve tempo para apropriação, planejamento e execução desses modelos de ensino mediatizados pelas tecnologias, por meio dos quais são deslocados não apenas os espaços de aprendizagem, mas também o tipo de interação estabelecida entre professor, aluno e a construção do conhecimento.

Conclusão

Por fim, em quaisquer que sejam os contextos histórico-sociais, por meio dos quais se imponham novos modos de conceber e realizar a prática pedagógica, é preciso considerar tais mudanças a partir da perspectiva da formação continuada docente como um direito do professor em sua profissionalização, sobretudo, em tempos de modelo de ensino remoto e de ensino em EAD e as competências requeridas para usar as tecnologias de comunicação nesses processos de ensino e de aprendizagem. 

Assim, os desafios presentes na didatização do fazer docente, nesse momento, devem complexificar aspectos de natureza pedagógica implicados na prática, tais como dinâmica familiar do professor, o ambiente domiciliar, os recursos tecnológicos e o acesso à internet, condicionantes para que esses modelos de ensino aconteçam em condições infraestruturais mínimas. 

Por sua vez, essa infraestrutura sozinha não garantirá que o esse ensino seja efetivado se o professor não tiver adquirido o letramento digital necessário para realizar teórico-metodologicamente seu trabalho, o que aponta para a necessidade de conceber esse profissional como intelectual, como um produtor de saber das/nas suas práticas, capaz de reinventar-se do ponto de vista de sua práxis, articulada à políticas de formação continuada em serviço.

Leia também: O desafio do desenvolvimento das competências e habilidades propostas pela bncc, em tempos de educação remota.

Referências:

CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. Petropólis: Vozes, 2008.

FRANCO, Maria Amélia do Rosário Santoro. Prática pedagógica e docência: um olhar a partir da epistemologia do conceito. Rev. Bras. Estud. Pedagog., Brasília, v. 97, n. 247, p. 534-551, dez.  2016. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2176-66812016000300534&lng=pt&nrm=iso>. acessos em  30  ago.  2020.  https://doi.org/10.1590/s2176-6681/288236353.

GUIZZO, Bianca Salazar; MARCELLO, Fabiana de Amorim; MULLER, Fernanda. A reinvenção do cotidiano em tempos de pandemia. Educ. Pesqui. , São Paulo, v. 46, e238077, 2020. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022020000100402&lng=en&nrm=iso>. acesso em 30 de agosto de 2020. Epub 10 de agosto de 2020.  https://doi.org/10.1590/s1678-4634202046238077  

Jorge Lira

Doutor em Educação, pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), na linha de pesquisa “Educação e Linguagem, Técnico em Assuntos Educacionais, do Setor de Estudos e Assessoria Pedagógica (SEAP), do Centro de Artes e Comunicação (CAC), da UFPE.