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Vamos terminar, inventando uma nova canção: alguns passos em direção à saúde mental do professor em tempos de fechamento de ciclo e início de outro

10 de dezembro de 2025,
Rafael Palasio
Saúde mental do professor

A música como grito de resiliência e recomeços

Eu adoro a música Tudo novo de novo de Paulinho Moska. Um de seus versos, em itálico acima, intitula este texto. Não a escolhi à toa. Todas as vezes que eu a escuto, sinto-a como um grito de resiliência, de esperança, de recomeços, de novas possibilidades, de modos mais sensíveis de lidar com as adversidades, com as dores, com os sofrimentos.

É também um jeito de dizer que inventar uma nova canção é como se eu tirasse, lá do fundo do fim, um poema quentinho, cheio de ternura, que me ajudasse a transmutar a dureza do real com as cores vibrantes de uma outra aquarela.

Também digo de antemão que nem sempre é fácil olhar sob essa perspectiva. Nem sempre vai ser possível, porque somos atravessados por nossas subjetividades e experiências singulares. E está tudo bem. Não dá para fazer generalizações sobre quase nada, e, quando estamos lidando com questões de saúde mental no contexto da profissionalidade docente, menos ainda.

O adoecimento docente: uma realidade escancarada

Assistimos, durante todo esse ano, em função das lentes superpotentes das redes sociais, ao quanto nós, enquanto professores, estamos suscetíveis aos sofrimentos socioemocionais advindos das condições de trabalho.

Leia mais: Políticas públicas de saúde mental nas escolas

Foi o caso trágico do professor Kadu, do Tocantins, vítima de assédio e hostilidade vividos no ambiente escolar; do professor Vinicius, do Paraná, afastado da sala de por conta de crises de ansiedade e pânico; das professoras Silvaneide e Rosane, ambas também do Paraná, vítimas fatais de um sistema educacional adoecido e adoecedor que tem se tornado, como bem disse o título da reportagem de Ana Luiza Basilio, de junho de 2025, da Revista Carta Capital: uma máquina de moer professores.

Infelizmente, estes exemplos acima escancaram uma realidade já evidenciada não apenas empiricamente, mas também nas pesquisas, como visto no levantamento feito, em 2022 e 2023, pelo IInstituto Nacional Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (Inep) , por meio do qual se constatou que 62% dos professores da Educação Básica afirmaram ter frequentemente sintomas de estresse, ansiedade e depressão.

O Instituto Península, em 2022, realizou uma pesquisa, por meio da qual se identificou, dentre outros sintomas, a exaustão como principal condição emocional do professor, com um percentual de 84%, seguido de estresse e sobrecarga de trabalho, além da necessidade de apoio psicológico e da preocupação com a saúde mental, aspectos que se potencializaram principalmente por conta da pandemia do novo coronavírus. Em 2023, um estudo da Fiocruz apontou que em cada dez professores sete apresentaram sintomas de depressão ou ansiedade.

Fatores psicossociais e a patologização do sofrimento

Dentro desse cenário, em que diversas pesquisas têm apontado a condição crítica da saúde mental dos profissionais da docência, as Normas Regulamentadoras (NRs), conjunto de regras e procedimentos criados no Brasil para garantir a saúde e a segurança dos trabalhadores e regulamentar a legislação trabalhista, mais precisamente a NR -1, em sua versão atualizada, vai considerar os fatores de riscos psicossociais.

Estes se caracterizam no acometimento de estresse ocupacional, na pressão por resultados, no fenômeno da violência escolar, nas relações assediosas, fatores causadores de desorganização socioemocional e consequente adoecimento psíquico.

Leia mais: A importância da educação socioemocional: como o professor pode integrar competências de saúde mental ao currículo

Ainda que brevemente, preciso trazer essa realidade à tona, porque não acredito em nenhuma discussão sobre saúde mental que não esteja situada social, política e sistemicamente, sob pena de tratar o sofrimento psíquico em uma perspectiva individualizante, como se fossem falhas pessoais, disposições exclusivamente biológicas, bastando medicalizar o mal-estar dos professores.

Penso que o sofrimento socioemocional do professor não pode ser patologizado, mas visto como uma resposta em face da precarização das condições laborais às quais esse profissional está exposto.

Estratégias para a saúde mental do professor

Ações individuais e o desafio do autocuidado

Sendo assim, aposto que algumas estratégias individuais podem ser desenvolvidas pelos professores, nos casos em que tais encaminhamentos possam ser viabilizados, pois, assim como as escolas são plurais, as vivências e modos de estar no mundo desses profissionais igualmente são.

Pode ser, por exemplo, que a noção de autocuidado funcione para alguns, dada a sua carga horária de trabalho, a sua realidade de sala de aula, ao tipo de gestão realizada na sua escola, e para outros seja algo impensável. Por isso, a ideia sobre dicas, no campo da Psicologia, me parece por vezes arriscada.

Ações coletivas e políticas públicas

Todavia, lado a lado das estratégias individuais, devem caminhar as ações coletivas na busca pelo fortalecimento e pelo pertencimento em rede. Devem passar também pelos projetos que envolvam a saúde mental no campo das políticas, não apenas instituídas no ambiente escolar, mas advindas dos sistemas de ensino.

Como exemplo, temos a criação da Lei n.º. 14.819, de janeiro de 2024, que versa sobre a Política Nacional de Atenção Psicossocial nas comunidades escolares, e o Outubro Gentil, mês que seria dedicado à valorização da saúde mental dos professores, Projeto de Lei (PL) n.º 3683/2025, em tramitação na Câmara dos Deputados, cujo objetivo é a conscientização e a promoção de ações de apoio ao bem-estar docente. Todavia ainda não foi oficialmente sancionado com lei em todo território nacional.

Leia mais: Saúde mental no trabalho da docência: em busca do equilíbrio

Ou seja: é preciso que a saúde mental do professor seja vista como uma questão de saúde pública, tratada multifatorialmente, estando na agenda das políticas nacionais, nos sistemas de ensino, nos discursos curriculares, nos projetos políticos pedagógicos, na transversalidade dos temas, nas práticas de ensino, estabelecendo coletivamente uma tratativa pedagógica com intencionalidade e mudança de atitude.

Isso exige que essas deliberações legais se materializem nas ações efetivas das escolas, nas estratégias de gestão escolar, por meio das quais se reconheça a necessidade de se criar um ambiente de trabalho saudável, o que significa um enfrentamento de uma política neoliberal de educação focada em resultados e metas alcançadas a qualquer custo. A qualquer custo não. Ao custo altíssimo da saúde mental do professor.

O autoamor como ato político e a busca por ajuda

Retomando o verso da canção de Paulinho Moska, que intitulou este texto, Vamos terminar, inventando uma nova canção, eu, enquanto educador e psicólogo, se pudesse escrever essa nova canção, eu gostaria que ela fosse feita de versos de autoamor e de autocuidado. Eu gostaria que eles rimassem com o compromisso do Estado em promover uma educação que não nos causasse medo, angústia, exaustão. Que não nos fizesse desistir da profissão ou nos retirasse do nosso ofício porque não demos conta de lidar com as angústias e com o adoecimento acometidos pela profissão.

Eu cantaria, ainda que morrendo de receio de incorrer em generalizações ou receitas prontas, porque sabemos que a saúde mental tem que ser vista sob lentes sistêmicas, que a gente não perdesse o tempo de olhar minimamente para gente, sobretudo, neste tempo, de final de ano, profícuo a essas reflexões mais existenciais e interiores.

Eu ouviria Tempo, de Caetano Veloso, e faria um pedido: de permanecer inventivo e contínuo, vivo, pulsando ao som do meu estribilho, parafraseando a canção. Ainda que ano passado tenha morrido, este ano que virá de morrer não vou não. Belchior vai dando a direção.

Alguém mais objetivo diria que seria uma espécie de autoavaliação. Por que não? Olhar para dentro da gente, num sistema que nos automatiza diariamente, é um ato político de que ninguém deve abrir mão. Se questionar, se ouvir, se desiludir, se refazer, se interessar, se abraçar, se autoconhecer, se exercitar, é tudo verbo de ação.

Por outro lado, se esses verbos, por algum motivo, não puderem ser conjugados, não precisa fazer disso mais uma frustração ou gatilho para qualquer invalidação. É tudo dentro das possibilidades e do tempo particular de cada pessoa em sua realidade e contexto de realização.

Se o coração apertar, se as condições sociais quiserem nos engolir, se as demandas da profissão deixarem no nosso corpo os sintomas da exaustão, da ansiedade, da falta de motivação, há a escuta especializada como um dispositivo para ajudar na elaboração dessas demandas como um caminho importante e fortalecedor da dinâmica psicossocial.

Há serviços psicológicos na presencialidade e no ambiente virtual. A gente sabe que nem sempre a psicoterapia, nessa clínica individualizante, é acessível para todos, mas tem os atendimentos a preço social. Por isso, estar articulado em rede pode ser o diferencial para acessar esses caminhos para lidar com os espinhos do desgaste da docência em tempo integral.

Corpo, mente e o desafio do processo

Nessa dimensão do autocuidado, tem uma música de Walter Franco, eternizada na voz de Leila Pinheiro, Coração Tranquilo, que faz um convite, a meu ver, muito pertinente às práticas integradas de saúde mental e atividades físicas quase como um mantra de equilíbrio. Tem um verso que diz: “Tudo é uma questão de manter. A mente quieta. A espinha ereta. E o coração tranquilo”. Eu acho um verso mântrico que busca por paz interior e autoconhecimento.

É o desafio, eu sei, numa sociedade capitalista, guardar um tempo para gente. Perder tempo cuidando da gente. Essa sociedade não quer que percamos tempo com o que é essencial. A ideia é mesmo focar nos resultados e na materialidade das coisas. Quando nos oportunizamos um tempo, pequeno que seja, para lidar com essas demandas pessoais, muitas vezes, somos engolidos pela exigência de uma performance. O corpo padrão. A academia do momento. A imediatez dos resultados. E o processo vai ficando em segundo plano sem força para segurar o menor dos halteres.

Por isso, se for possível, e somente se assim o for, o processo de autoconhecimento tem sido um caminho para lidar com essas exigências sociais e laborais que podem nos roubar subjetivamente da gente e nos levar a um lugar de sofrimento socioemocional.

Quando dizemos “socio”, estamos compreendendo que somos nós em relação ao outro, aos outros, aos contextos, às tensões de estarmos situados numa sociedade cujas condições de trabalho, dentre outros fatores, podem adoecer. E aí me vem sempre aquela máxima existencialista: Não importa o que fizeram de mim, o que importa é o que eu faço com o que fizeram de mim.

Não significa que essa ideia não nos coloque numa atitude de crítica, ao contrário, penso que nos dá um papel mais ativo diante das adversidades, no sentido de nos colocarmos dentro desse lugar de protagonistas de nossas experiências, encontrando possibilidades, as mais diversas, para lidarmos com as situações.

A construção de redes afetivas de apoio

Ainda dentro dessas estratégias mais individualizantes, reforço sempre a necessidade de construirmos redes afetivas, redes de apoio, redes que nos coloquem numa tessitura de acolhimento, de fortalecimento de vínculos, de estabelecimento de um ambiente de confiança, no qual possamos construir amizades, sentimentos positivos de bem-estar, de ouvidos atentos e interessados em socializar alegrias, dores, desejos, frustrações, sonhos e conquistas.

Nesse contexto das relações do trabalho docente, gosto de uma corrente de pensamento que diz que a gente só é na relação com o outro, que a gente é sujeito relacional. Acho isso bonito. Na minha experiência, acho mesmo curativo. Acredito na beleza dos encontros entre pessoas para além da ideia de família consanguínea. Vejo beleza nessa família que a gente vai ampliando na ação de relacionar-se. De construir outros afetos e outros lugares para abraçar a ternura.

Nesse processo relacional, em qualquer que seja o âmbito, vamos, meio inevitavelmente, construindo espaço, demarcando nossos limites, nossas possibilidades. No ambiente escolar não é diferente. São muitas pessoas reunidas. Muitos universos buscando conviver com respeito, civilidade, cuidado.

Não é mesmo tarefa fácil. Talvez seja a profissão em que a diversidade de narrativas, de corpos, de discursos e práticas sejam parte da natureza desse trabalho. Lidar com pessoas dentro de um contexto pedagógico requer despir-se de crenças, de juízos de valor para, sobretudo, aprender com a diferença, num processo retroalimentador em que se autoconhece em consequência.

Estabelecendo limites na vida profissional e pessoal

Nesse processo de autoconhecimento, talvez a fase mais grandiosa seja quando reconhecemos a necessidade de estabelecermos limites em todos os aspectos da vida, profissionais, pessoais, nas ações diárias. Isso envolve perceber aquilo que é possível fazer, aquilo que é demais, que vai gerar sobrecarga, porque está fora da programação, do planejamento, e, assim, pode gerar alguma situação estressora, levando a um esgotamento físico, mental, tendo consequência um possível adoecimento psíquico.

Não é fácil, todavia, pensar em como desenvolver essa postura em um ambiente profissional de alta performance, de exigência de resultados. Ou ainda: em uma profissão com baixa remuneração, em que é preciso estar exposto a jornadas duplas e triplas de trabalho, como é o caso da profissão docente. Por isso, o cuidado com as dicas para que a gente não perca a singularidade das vivências individuais.

A saúde mental docente como indicador sistêmico

Por fim, acredito que, nesse papo de singularidade, a gente vai fazendo o caminho, vai sendo no trajeto, como dito no verso da música Tocando em frente de Renato Teixeira e Almir Sater: “estrada sou”. Vai sendo oportunizado ou vai se oportunizando. É mudança dos ventos. É cíclico. É a vida vindo em “[…] ondas como um mar, no indo e vindo infinito”, como bem cantou genialmente Lulu Santos.

É o desejo de encontrar-se minimamente com aquilo que nos faz bem. É o cinema no fim de tarde de domingo para alguns. Para outros, a energia despendida numa corrida de rua, numa caminhada de bike. Para outros, um fim de tarde na orla da praia. Um café quentinho de padaria num domingo de manhã. Uma meditação no amanhecer do dia para acordar para a vida. Um novo curso de graduação sem pretensão de mudar de carreira ou até para isso também. Investimento intelectual na gente pode ser. Ou só vontade de conhecer outras áreas e ampliar a visão de mundo também pode dar prazer. Não há regra para a satisfação pessoal. A gente quer outras vias para driblar o que pode fazer adoecer.

Que este tempo merecido das férias seja tempo merecido para espairecer, se refazer do cansaço, reorientar o caminho, reescrever a rota, restabelecer o passo, diminuí-lo ou aumentá-lo, só você sabe o compasso. Mas, não se esqueça de uma coisa: a sua saúde mental no seu ambiente de trabalho, a escola, não é responsabilidade exclusiva sua. É, na verdade, muito mais um indicador da saúde do próprio sistema educacional, que vai se refletir nesse espaço laboral.

Portanto, é mobilização coletiva. É projeto pedagógico afiado e bem-intencionado na busca por soluções compartilhadas e sistêmicas. É um trabalho de muitas mãos para que o bem-estar no trabalho docente seja prioridade em tempo integral. É cobrança da efetivação das políticas públicas e reconhecimento de que os fatores estressantes não são derivados de falhas pessoais, do cartucho individual que acabou, mas de decisões institucionais e de políticas públicas que minam a saúde mental do professor.

Minibio do autor

Jorge Luís Lira é Licenciado em Letras Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Pedagogo pelo Centro Universitário Internacional (Uninter), Psicólogo pela Faculdade de Ciências Humanas (Esuda), Mestre e Doutor em Educação pela UFPE.

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