A celebração de datas comemorativas nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental

Celebrar algumas datas comemorativas na escola, sobretudo nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, é uma prática que já faz parte, de certo modo, da tradição escolar brasileira. Festinhas de Dia das Mães ou Dia dos Pais, com crianças cantando e/ou dançando e familiares assistindo emocionados é uma cena que remete a memórias afetivas de boa parte dos adultos hoje em dia. Também foi relativamente comum, durante anos, ver crianças saindo da escola com o rosto pintado e uma pena de papel presa à cabeça no dia 19 de abril, “Dia do Índio”, apenas para citar alguns exemplos.
Com o avanço dos estudos pedagógicos, uma capacidade reflexiva cada vez maior nas equipes e a globalização, que permite o acesso ao que outras escolas estão fazendo, essa celebração de datas comemorativas na escola tem sido questionada. Como podemos pensar sobre isso?
A Importância e os objetivos pedagógicos das datas comemorativas (BNCC)
Um primeiro ponto a ser considerado pelos educadores é discernir sobre o objetivo de se celebrar datas comemorativas na escola.
Duas competências gerais da Educação Básica presentes na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (Brasil, 2017, p. 9) justificam o trabalho com datas comemorativas na instituição escolar:
- Valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos sobre o mundo físico, social, cultural e digital para entender e explicar a realidade, continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva.
[…] - Valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais, e também participar de práticas diversificadas da produção artístico-cultural.
Ora, sendo essas as competências que norteiam o trabalho pedagógico relacionado às datas comemorativas, é preciso fazer uma seleção de quais delas devem ser celebradas e pensar sobre como se deve fazer isso, de modo a favorecer a construção de competências pelos estudantes.
Assim, quanto à seleção, devem ser privilegiadas as datas comemorativas que favoreçam conhecimentos historicamente construídos pela comunidade em que a criança vive, e não aquelas com apelo exclusivamente comercial. Já com relação ao modo de celebração, é preciso valorizar as manifestações artísticas e culturais, do modo mais genuíno possível.
Dessa forma, falar no Dia dos Povos Indígenas estereotipando as vestimentas indígenas com cocares artificiais, feitos de papel, muitas vezes distantes da realidade dos povos indígenas brasileiros, não contribui para a aprendizagem infantil. Melhor seria fazer um estudo aprofundado dos povos indígenas brasileiros, seus modos de viver e as questões que permeiam sua existência, seja ao longo da história do país, seja na contemporaneidade.
Como articular as datas comemorativas ao Projeto Político-Pedagógico (PPP)
A celebração das datas comemorativas deve estar alinhada ao projeto pedagógico da instituição. O tempo didático é precioso para os professores (Lerner, 2002) e deve ser preservado, evitando-se atividades que não agreguem aprendizagem às crianças.
Dessa forma, datas comemorativas com viés religioso (tais como Páscoa e Natal) podem fazer sentido em uma escola confessional, porém, não podem ser celebradas de maneira única na escola pública. Nesse último caso, é importante que o(a) professor(a) mostre às crianças a origem dessas celebrações e que apresente os diferentes modos por meio dos quais elas são vivenciadas em diferentes religiões, regiões ou contextos.
Assim, ao invés de uma dança ou encenação teatral, pode-se transformar o trabalho com essas datas em um estudo dos diferentes modos de ser e conviver, contribuindo, inclusive, para a construção de um mundo mais diverso, respeitoso e empático para todas e todos. Em outras palavras, projetos político-pedagógicos diferentes demandam formas diversas de celebração.
Por essa razão, é importante que a escola, ao decidir quais datas entrarão em seu calendário de celebrações, faça-o a partir de seu projeto político-pedagógico. Para isso, a equipe pode se colocar questões como:
- Por que essa data é importante para nossa comunidade?
- Aprender sobre ela permitirá às crianças desenvolverem novas competências e habilidades?
- Que pontos de nosso projeto político-pedagógico justificam essa celebração?
- Explorar essa data comemorativa na escola permitirá aos estudantes o estabelecimento de relações com outros assuntos e projetos que temos desenvolvido?
Evidentemente, considerando-se o PPP fruto de uma construção coletiva da comunidade escolar, é importante que a decisão sobre as datas comemorativas também o sejam, especialmente nas escolas públicas. Não se pode prescindir da laicidade, tampouco da diversidade que deve marcar sempre as instituições públicas de ensino e, para isso, é preciso que todos sejam ouvidos em decisões dessa natureza.
Aspectos culturais vs. comerciais: Repensando a celebração na escola
Outro aspecto importante a ser considerado na reflexão acerca do trabalho com datas comemorativas é o caráter cultural e/ou comercial envolvido em cada data.
Nesse sentido, festejos populares, tais como carnaval ou festa junina, são marcos da cultura brasileira. É inegável o caráter cultural de tais festas e tomar parte delas é uma forma de inserir as crianças, cada vez mais, no contexto em que vivem, já que essas celebrações são marcas identitárias de nossa brasilidade.
Leia mais: Quais são as recomendações do PNLD para os Anos Iniciais?
Não basta apenas, porém, celebrar a data de forma mecânica na escola. É importante refletir sobre elas, compreender sua origem, suas manifestações nas diferentes regiões do Brasil, seus propósitos e sua articulação com a cultura brasileira de modo geral.
Sob essa perspectiva, cada escola pode usar essas celebrações como mote para comparar a realidade regional com a nacional, as formas como diferentes grupos sociais vivenciam a festa, os ganhos que as celebrações trazem para o turismo, a cultura ou a economia locais.
Pode-se, ainda, adaptar as festas à realidade regional, sem descaracterizá-las: por exemplo, promover uma “festa junina caiçara” em uma cidade litorânea, ou um “carnaval de rua” no quarteirão da escola, envolvendo pessoas de fora da comunidade escolar.
Dias das mães, pais e crianças: Foco na família e no vínculo afetivo
Já as datas como Dia das Mães, Dia dos Pais ou Dia das Crianças têm o apelo comercial como origem e marca de identidade. É preciso fugir disso, questionando padrões de consumo e valorizando a diversidade.
Com tantos modelos de famílias existentes atualmente, por que privilegiar apenas Dia das Mães e Dia dos Pais? Há crianças criadas por somente um dos genitores, outras criadas por avós ou tios, outras que vivem em abrigos, outras por casais homoafetivos. É preciso pensar nas diversas realidades e atender a todas. Assim, faria mais sentido pensar em celebrações como “Dia da Família” ou “Dia de quem cuida de mim”, fugindo ao estereótipo de que somente a presença de um pai, uma mãe e o(s) filho(s) caracterizaria uma família.
Além de mudar o enfoque da data, é preciso repensar também seu modo de celebração. Por mais que sejam emocionantes as apresentações musicais estreladas pelas crianças e direcionadas aos adultos, muitas vezes elas não fazem sentido do ponto de vista educativo.
Horas preciosas de tempo didático são dedicadas aos ensaios e, no momento da apresentação, não é raro que as crianças se sintam inseguras ou envergonhadas, e o que deveria ser um momento de festa vira um momento de frustração e stress emocional para algumas crianças e suas famílias.
O centro do processo educativo é a criança, portanto, a celebração tem que atender às suas necessidades e não às de seus familiares. Sob esse enfoque, faz mais sentido celebrar o “Dia da Família” ou “Dia de quem cuida de mim” propondo uma vivência em conjunto: que a criança possa viver momentos felizes na escola junto a quem ama, celebrando a relação de vínculo e cuidados.
As famílias podem preparar uma receita culinária juntas, ou vivenciar uma brincadeira, ou uma oficina para aprender a fazer um brinquedo (como uma pipa, por exemplo), ou construir um mural de fotos com seus melhores momentos.
O que manda é a criatividade, mas o importante é que seja um momento de troca e partilha, regado a afeto, lembranças e amor. Assim, a data será vivenciada de forma mais plena não apenas pelos adultos, mas também pelas crianças.
Da mesma forma, o Dia das Crianças pode ser celebrado de forma diferente: ao invés de uma sucessão de festejos na escola, por que não promover, por exemplo, uma feira de troca de brinquedos? Assim, as crianças vivenciarão os “presentes” dessa data, mas também poderão ter uma relevante conversa e reflexão sobre apelo comercial e padrões de consumo.
Como criar um calendário de celebrações personalizado e significativo
A partir das reflexões aqui propostas, cada escola pode montar seu próprio calendário, de forma personalizada. Datas que podem fazer sentido em alguns contextos não farão em outros, e o mais importante é que a instituição reconheça o que é importante para sua comunidade.
Neste calendário personalizado, podem entrar celebrações regionais ou aspectos culturais ligados à própria instituição, como a data de aniversário da escola, por exemplo.
Outro cuidado importante é divulgar esse calendário já no início do ano letivo, para que tanto as famílias possam se preparar para participar dos eventos (quando houver) quanto os professores possam adequar seu planejamento pedagógico, sem precisar inserir celebrações de última hora.
Dessa forma, as comemorações de datas festivas nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental farão real sentido para as crianças, contribuindo para seu desenvolvimento e aprendizagem e possibilitando uma maior articulação dos projetos pedagógicos da escola com a vida cotidiana dos estudantes.
Minicurrículo da autora
Elaine Cristina R. G. Vidal é professora na graduação e pós-graduação da Faculdade de Educação da USP. Ela é formada em Letras pela USP e em Pedagogia pela Universidade Metodista/SP. Possui especializações em Alfabetização: relações entre o ensino e a aprendizagem (ISE Vera Cruz) e Ética, valores e cidadania na escola (Univesp), além de mestrado e doutorado em Psicologia, Linguagem e Educação, também pela FEUSP. É autora dos livros Projetos didáticos em salas de alfabetização (2014), Literatura e crianças: um encontro necessário (2019) e A infância na escola: reflexões sobre Educação Infantil (2023). Sua vasta experiência inclui atuação como professora e gestora em todos os níveis da Educação Básica, no Ensino Superior e como editora no Núcleo de Produção de Conteúdo e Formação da Saber Educação.
Referências
BRASIL, Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: SEB/MEC, 2017.
LERNER, D. Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário. Porto Alegre: Artmed, 2002.
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