O desenvolvimento da oralidade: muito além do “aprender a falar” na educação infantil

A crença popular: escola e o impulso da fala
A experiência empírica vivenciada por muitos pais, educadores ou pessoas que convivem com as crianças estabelece um senso comum no que se refere à aprendizagem da fala: o ingresso na escola impulsiona essa habilidade em crianças pequenas.
Não é raro ouvirmos pessoas dizerem: “Foi só entrar na escola que meu(a) filho(a) aprendeu a falar!” ou “Em minha turma de Educação Infantil, as crianças que apenas balbuciavam sons quando as conheci já articulavam sentenças completas ao fim do ano letivo”, ou outras semelhantes.
Essas afirmações decorrem de experiências individuais e coletivas que demonstram que, de fato, a escola, enquanto ambiente socializador, favorece o desenvolvimento da oralidade.
Será que essa premissa é verdadeira? E, em caso positivo, desenvolver a oralidade é o mesmo que “aprender a falar”?
Começando pelo começo… linguagem, fala e oralização
Muitas vezes, os termos linguagem, fala e oralização são utilizados como sinônimos. No entanto, cada um desses vocábulos tem um sentido específico.
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A linguagem é um sistema simbólico e estruturado que permite a comunicação e a expressão entre os seres humanos. Ela pode se manifestar de diferentes formas: oral, escrita, corporal, gestual, imagética, audiovisual, entre outras. Todas as formas que usamos para nos comunicar (sejam elas um texto escrito ou sinais de fumaça) ou para nos expressar (incluindo-se aí todas as linguagens artísticas) são consideradas linguagem.
Uma das formas de linguagem mais comumente usada pelos seres humanos é a chamada linguagem verbal, ou seja, aquela que se expressa por meio de signos linguísticos. Saussure (1995), pai da Linguística Moderna, define o signo linguístico como a união entre significado (o conceito mental de alguma coisa) e significante (a forma de representação daquele conceito mental por meio de uma associação de sons ou letras). A linguagem verbal divide-se em duas modalidades: linguagem oral e linguagem escrita.
O desenvolvimento da linguagem oral por um indivíduo é também chamado de oralização. Esse desenvolvimento é impulsionado pela socialização e, dessa forma, pode-se afirmar que a oralização é favorecida por contextos educacionais e clínicos.
Frequentemente utilizada na Fonoaudiologia e na Pedagogia, a oralização está associada ao processo pelo qual o sujeito internaliza a linguagem oral e a exterioriza pela fala. Além disso, no contexto da alfabetização, a oralização pode também significar o ato de ler em voz alta, como estratégia pedagógica. Nesse caso, ela seria a materialização da modalidade escrita da linguagem por meio da fala.
Já a fala é a produção oral dos sons da língua. Envolve a coordenação de processos neurológicos, motores, respiratórios e articulatórios. Segundo Jakobson (1960), a fala é a realização concreta da língua em situações comunicativas específicas. Já para a Fonoaudiologia, autores como Limongi (2003) destacam que a fala compreende aspectos articulatórios, prosódicos, rítmicos e fonológicos.
A relação entre linguagem, fala e oralização
Em resumo, toda forma de comunicação ou expressão é uma forma de linguagem. Quando essa comunicação ou expressão ocorre por meio da fala – produção oral de sons – temos a oralização.
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Nesse sentido, o que normalmente é denominado de “aprender a falar” envolve, no mínimo, dois aprendizados: a criança precisa aprender a articular os sons da fala, mas isso deve ser feito de forma a possibilitar sua comunicação e expressão. Ou seja, não basta saber pronunciar os sons, é preciso usá-los de forma contextualizada, favorecendo a produção de sentidos.
O desenvolvimento da linguagem oral
Considerando-se os conceitos de linguagem, fala e oralização, torna-se evidente que, embora a articulação e a pronúncia das palavras seja importante para “aprender a falar”, essa aprendizagem envolve também saber o uso que se faz da fala.
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Dito de outra forma, a criança pequena não precisa apenas aprender a pronunciar as palavras de forma inteligível: ela precisa também aprender a usar essas palavras em determinados contextos, articulá-las de forma a expressar suas ideias e emoções, assumir comportamentos sociais ligados à conversação (como ouvir o outro e esperar sua vez de falar, alternando os turnos de fala) etc.
Além disso, é preciso considerar que os diferentes contextos sociais balizam os diferentes usos que se faz da linguagem. “Falar” em público, proferindo uma palestra, por exemplo, é bastante diferente de “falar” com um amigo em um contexto informal.
O papel da escola: Ensinar práticas sociais da linguagem
Nesse sentido, é urgente que a escola, enquanto instituição, assuma que seu objeto de ensino não são as modalidades oral ou escrita da linguagem verbal, mas as práticas sociais da linguagem. É preciso ensinar às crianças não apenas a falar, ler ou escrever, mas a como usar a fala, a leitura ou a escrita nos diferentes contextos em que circulam.
Na educação infantil…
Oralidade na educação infantil: Um objetivo em todos os segmentos
Sob essa perspectiva, o desenvolvimento da oralidade deve ser um objetivo da escola em todos os seus segmentos. Desde a Educação Infantil, quando a criança aprende a como participar de uma roda de conversa, até o Ensino Médio, quando o adolescente deve saber articular uma fala argumentativa para defender um ponto de vista, por exemplo, todos estão, de alguma forma, desenvolvendo sua oralidade.
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Por essa razão, o(a) professor(a) da Educação Infantil não pode julgar que seu estudante já desenvolveu a oralidade quando ele tiver aprendido a falar. Embora seja muito importante a capacidade da criança de articular os sons formando uma fala passível de compreensão, é fundamental que ela tenha oportunidades de vivenciar práticas sociais relacionadas à linguagem oral. Abaixo, seguem algumas possibilidades:
Estratégias didáticas para impulsionar o desenvolvimento da oralidade
Roda de conversa
Esta é uma das estratégias possivelmente mais usadas por professores de Educação Infantil para o desenvolvimento da oralidade. Com as crianças sentadas em roda, a proposição de um tema específico e a mediação do(a) professor(a) para garantir que todos tenham a possibilidade de ouvir e serem ouvidos, a roda de conversa contribui para o desenvolvimento da oralidade de todos. Muitas outras ações, porém, podem ser usadas como estratégias didáticas para impulsionar esse desenvolvimento.
Jogos simbólicos
Definidos por Piaget (1978) como uma forma de atividade lúdica em que a criança utiliza a imaginação para representar objetos, situações ou papéis que não estão presentes no momento, ou que são diferentes da realidade imediata, são uma excelente estratégia para o desenvolvimento da oralidade.
O brincar, ao contrário do que muitos pensam, não é inato ao ser humano, ele é socialmente aprendido. Os professores podem colaborar criando contextos em que as crianças possam experimentar os jogos simbólicos: casinhas, escritórios, consultórios médicos, mercadinhos são ambientes que podem ser facilmente criados com brinquedos ou materiais diversos, explicitando às crianças um convite para que assumam diferentes papéis, usando a linguagem oral em diferentes contextos.
Exemplos de jogos que trabalham especificamente a oralidade
Jogos que trabalham especificamente a oralidade também são bem-vindos. Por exemplo, propor que as crianças criem uma história com elementos-surpresa, que vão sendo apresentados ao longo da narrativa, e exigem uma adaptação para se garantir a coesão e a coerência. Ou jogos que exijam a memorização e reprodução oral de uma lista cada vez maior das palavras, como o clássico “Fui à feira e comprei…” (cada criança acrescenta o nome de uma fruta a uma lista que fica cada vez mais comprida e precisa ser repetida na ordem exata).
Eventos públicos
Os eventos públicos, que exigem uma apresentação oral previamente preparada, também podem ser realizados na Educação Infantil. As crianças podem ser convidadas, por exemplo, a apresentar um projeto que desenvolveram para as famílias ou para outra turma da escola.
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Podem também realizar contações de histórias ou explicar as regras de jogos e brincadeiras para convidados externos à turma. Podem, ainda, realizar saraus de narrativas ou de poemas. Entrevistas com os adultos da escola ou da família, para saber mais sobre determinado assunto, também são atividades potentes.
O compromisso da educação infantil com as práticas sociais da oralidade
O importante é que o(a) professor(a) compreenda que o papel da escola é favorecer o desenvolvimento da oralidade por meio de suas práticas sociais, sabendo que essas podem ser variadas, a depender da realidade de cada turma, escola ou contexto. Tendo essa premissa a sustentar todas as atividades propostas, a Educação Infantil certamente contribuirá para o desenvolvimento da oralidade das crianças, e será um desenvolvimento muito além do “aprender a falar”.
Minibio da autora
Elaine Cristina R. G. Vidal é professora na graduação e pós-graduação da Faculdade de Educação da USP. Ela é formada em Letras pela USP e em Pedagogia pela Universidade Metodista/SP. Possui especializações em Alfabetização: relações entre o ensino e a aprendizagem (ISE Vera Cruz) e Ética, valores e cidadania na escola (Univesp), além de mestrado e doutorado em Psicologia, Linguagem e Educação, também pela FEUSP. É autora dos livros Projetos didáticos em salas de alfabetização (2014), Literatura e crianças: um encontro necessário (2019) e A infância na escola: reflexões sobre Educação Infantil (2023). Sua vasta experiência inclui atuação como professora e gestora em todos os níveis da Educação Básica, no Ensino Superior e como editora no Núcleo de Produção de Conteúdo e Formação da Saber Educação.
Referências
SAUSSURE, F. de. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 1995 (original de 1916).
CHOMSKY, N. Aspects of the Theory of Syntax. Cambridge, MA: MIT Press, 1965.
JAKOBSON, R. Linguística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 1960.
KLEIN, M. Oralização e linguagem: abordagens interdisciplinares. São Paulo: Plexus, 1997.
LIMONGI, S. Fonoaudiologia. Informação para a Formação: Linguagem: desenvolvimento normal, alterações e distúrbios. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2003.
LURÇAT, L. Aprendizagem e desenvolvimento intelectual da criança. São Paulo: Ática, 1990.
PIAGET, Jean. O jogo e a realidade. 3. ed. São Paulo: Pioneira, 1978.
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