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O desafio e a arte de ser professor no século XXI

16 de outubro de 2025,
E-docente
O Desafio e a Arte de Ser Professor no Século XXI

“O cérebro eletrônico faz tudo Faz quase tudo Mas ele é mudo (…)” (Gilberto Gil)

A revolução tecnológica e a evolução da inteligência artificial

O início do século XXI tem sido marcado por diversos eventos que afetam a nossa conjuntura política, social, econômica, cultural e, por isso, transformam a maneira como vivemos. Em meio a tantos eventos marcantes, como guerras, disputas políticas, econômicas, territoriais e desastres ambientais, podemos dizer que as nossas vidas têm sido afetadas mesmo, de maneira indelével, é pela revolução tecnológica.

Vivemos em um mundo de mediação quase total, em que a mídia determina não apenas a forma como produzimos e consumimos cultura e conhecimento, mas também molda nosso comportamento e a forma como nos relacionamos. Em 1969, quando lançou a música Cérebro eletrônico, a cuja letra faço referência na epígrafe deste texto, Gilberto Gil já propunha uma reflexão sobre a relação entre o homem e a máquina e os limites entre tecnologia, alienação e controle social.

Desde então, as discussões sobre a nossa relação com a tecnologia só se ampliam e incluem novos tópicos, afinal, ao contrário da realidade vivida por Gil em 69, o cérebro eletrônico atual não é mais mudo. Ele é capaz de falar e, graças à Inteligência Artificial (IA), não só assume voz e imagem humanas como também é capaz de desempenhar tarefas das quais, antes, somente o cérebro humano dava conta.

A Inteligência Artificial tornou reais situações que, há algumas décadas, pareciam parte de um futuro distante ou possíveis apenas no universo da ficção. Ainda não temos carros voadores sendo usados pela população (embora já existam protótipos em teste) e nem robôs em nossas casas, desempenhando tarefas domésticas, a exemplo do que retratava a série de animação Os Jetsons (EUA, 1962), mas já existem carros autônomos, guiados pela IA, e casas inteligentes, em que dispositivos como lâmpadas e eletrodomésticos podem ser controlados remotamente, via smartphone.

Os usos da tecnologia na educação e os questionamentos docentes

Naturalmente, os usos da tecnologia para a realização de atividades do cotidiano e, mais especificamente, para a produção e difusão de conhecimento têm ocupado o centro do debate no âmbito da educação. Considerando a oferta de informação disponível nas redes e a possibilidade de adquirir e difundir conhecimento, bem como de desenvolver habilidades de forma autônoma, através da chamada cultura participativa nas mídias sociais, creio que todos nós, professores, diante desse contexto, em algum momento nos questionamos: o que devo ensinar? Como devo ensinar? E mais: o que os meus alunos querem e precisam aprender?

Educação e mídias digitais: um entrave ou um caminho?

Dia desses, em um grupo de professores do qual participo, no WhatsApp, um colega postou uma matéria que causou bastante burburinho. A chamada era a seguinte:

Análise Crítica de um Modelo de Ensino com Substituição por IA

Em síntese, a notícia relata que a instituição substitui professores por programas digitais que seriam supostamente capazes de detectar o nível de conhecimento do aluno e oferecer um ensino personalizado e acelerado.

Leia mais: O professor além da sala de aula: conexões que transformam vidas

As disciplinas do currículo convencional, como Matemática e Inglês, ocupam apenas duas horas diárias e o restante do tempo é destinado a atividades de socialização e “aprendizados para a vida” (aulas de oratória e de finanças pessoais, por exemplo).

Os estudantes recebem, também, a orientação de profissionais denominados “guias de aprendizagem”, os quais não têm formação docente, que atuam oferecendo suporte emocional e motivacional durante o processo.

As implicações do ensino tecnicista e acelerado

As informações contidas no texto chamam a nossa atenção por diversos motivos. Naturalmente, trata-se de uma situação muito distante do contexto vivenciado na maioria das escolas brasileiras, nas quais discutimos, em relação à tecnologia, questões como a falta de acesso à internet, por conta da infraestrutura precária, a proibição do uso dos celulares e os limites em relação ao uso da IA como suporte para a realização de tarefas escolares. No entanto, ainda que a realidade vivenciada na instituição norte-americana esteja distante da nossa, não podemos ignorar os diversos pontos de atenção que o texto revela:

  • A substituição de professores licenciados e com experiência docente pelo combo programas digitais e guias de aprendizagem formados em áreas relacionadas à tecnologia, oriundos de startups, demonstra a concepção tecnicista de ensino e aprendizagem, voltada apenas aos apelos de parte do mercado, que despreza a formação humana, artística, estética e acredita que a economia e a tecnologia fornecerão as respostas para todos os anseios individuais e sociais dos indivíduos envolvidos nesse processo;
  • A necessidade de “aceleração” da aprendizagem reforça um aspecto extremamente preocupante da sociedade contemporânea: o apagamento dos processos. O contato com as mídias sociais faz com que muitas pessoas desejem respostas rápidas e associem essa agilidade à eficiência. A transição dos vídeos no Tik Tok, no Instagram, faz com que vejamos, em segundos, a escultura terminada, o projeto da casa concluído, a comida pronta para ser consumida; desta forma, a incompletude, característica inerente a todos os seres humanos, é vista como falha. Somos condicionados a acreditar que precisamos apreender, rapidamente, o máximo de informações, desenvolver diversas habilidades, em tempo recorde, para atender a demandas cada vez maiores e inalcançáveis. A escola precisa reforçar que o aprendizado, além de processual, é permanente. Temos, inclusive, que ser conscientes de nossas especificidades e limitações;
  • Ao submeter os estudantes a estudos “personalizados”, em cabines individuais, as quais propiciariam uma maior capacidade de concentração, evitando “distrações” como o contato com os professores e os colegas, com o ambiente da sala de aula e demais espaços compartilhados de aprendizagem e de convivência na escola, esse modelo reforça o individualismo e a falta de aptidão para relacionar-se, com o outro e com o ambiente, problemas que têm sido enfrentados por diversas crianças e jovens, especialmente pós-pandemia. Priva, também, os estudantes, de desenvolverem características como capacidade de interlocução, empatia e respeito à diversidade.

Há, ainda, diversos outros aspectos, atrelados à notícia em questão, a serem discutidos, o que exigiria de nós tempo e espaço que extrapolam os limites deste texto (mas você, caro leitor, cara leitora, pode dar continuidade a essa conversa, seja nos comentários deste post ou na sua roda de amigos).

Leia mais: A importância da rede de apoio para professores: como a ajuda mútua fortalece a educação

Essa breve análise reforça a necessidade de ampliarmos o debate sobre os limites e as potencialidades da tecnologia não apenas como ferramenta pedagógica, mas como mediadora da nossa cultura e das nossas relações. Até mesmo porque a escola, como reprodução, em menor escala, da sociedade, reflete, em muitos níveis, suas maravilhas e suas mazelas.

Educação midiática como alternativa à alienação

O letramento digital e a proposta de David Buckingham

A onipresença e a influência das mídias no nosso cotidiano têm causado preocupação a educadores, mas isso não significa que não reconheçamos as potencialidades que podem oferecer – a depender da maneira como concebemos seu uso – como ferramentas pedagógicas. O uso consciente dos recursos midiáticos requer uma profunda reflexão, resultado de um processo de letramento sobre o tema.

Leia mais: Formação continuada de professores: quem são os protagonistas deste processo?

Em seu Manifesto pela Educação Midiática (2022), o professor e pesquisador britânico David Buckingham defende a necessidade de que seja desenvolvido, nas escolas, um projeto de alfabetização midiática que não se limite a ensinar os estudantes a usar determinados aparelhos ou a manipular diferentes mídias. É preciso instaurar uma discussão permanente, que propicie um entendimento profundo de como essas mídias funcionam, como comunicam e representam o mundo, como são produzidas/usadas e a que interesses elas atendem.

A recomendação do professor britânico é bastante pertinente. Na contemporaneidade, a educação digital é fundamental para que possamos atingir uma cidadania plena e ativa. A cultura digital é uma realidade e estamos todos inseridos nesse contexto, em menor ou maior proporção. Precisamos – e queremos – fazer uso da tecnologia das mídias digitais, mas, para isso, precisamos nos familiarizar e refletir continuamente sobre essas práticas.

Estratégias para professores fomentarem o pensamento crítico na era da IA

No processo de alfabetização midiática, há várias ações que podem ser adotadas com o intuito de formarmos estudantes capazes não apenas de utilizar os recursos tecnológicos à sua disposição, mas de pensar criticamente o funcionamento das mídias e de avaliar como se configura a construção da sua identidade nas redes. A fim de contribuirmos com esse processo, nós, professores, podemos/devemos:

  • Avaliar e, se for o caso, ajustar nossa prática docente, a fim de torná-la mais relevante e condizente com as necessidades de aprendizagem dos estudantes e com o contexto em que estamos inseridos. Por exemplo: em vez de banir o uso da Inteligência Artificial na realização de atividades escolares, seria mais proveitoso convidar os estudantes a refletir sobre esses usos. É possível propor a análise da construção de prompts para fins específicos e avaliar a validade e adequação dos resultados apresentados;
  • Fomentar a criatividade dos estudantes através de atividades que exijam deles mais do que consulta, repetição e memorização. As tarefas operacionais são realizadas, de forma ágil e eficiente, por ferramentas de IA (e os estudantes têm consciência disso), então devemos incentivar a produção de trabalhos que demandem análise, tomada de decisão, pensamento crítico, originalidade, ou seja, habilidades resistentes à automação característica dos textos produzidos por IA;
  • Propor análise e reflexão profundas sobre problemas sociais potencializados pelo uso de recursos midiáticos, tais como a produção e propagação de fake news, práticas de cyberbulling e estratégias de autorrepresentação on-line. Uma abordagem crítica dessas questões pode ajudar os estudantes não apenas a lidar com elas, mas a entender sua complexidade, identificando aspectos relacionados.

Conclusão: o equilíbrio necessário na era digital

Na trajetória docente, o desafio é constante, pois, entre outras questões, a maneira como ensinamos e como aprendemos é influenciada pelos movimentos de mudança da sociedade. A era digital apresenta um cenário complexo e, por isso, requer de nós, educadores, estudo e reflexão constantes para que possamos entender as questões emergentes e desenvolver repertório e estratégias para lidar com elas, sempre buscando criticidade, equilíbrio e lucidez.

A adoção de uma postura ingênua em relação às mídias digitais é perigosa, uma vez que, geralmente, resulta em acomodação. O outro extremo, que seria a demonização das mídias, também não é saudável, pois traz como consequência um modelo de ensino pautado por uma postura protecionista, que interfere no desenvolvimento da autonomia e do senso crítico dos estudantes.

Conforme argumenta o professor David Buckingham (2022, p.43): “Ver o uso da mídia em termos de distinção binária entre risco e benefício ignora a complexidade e a diversidade genuína das práticas cotidianas das pessoas”. Sendo assim, o caminho é o da investigação, da análise, da experimentação, práticas que nos constituem – ou deveriam nos constituir – desde sempre.

Minibio da autora

Paloma Borba é doutora em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). É professora adjunta do curso de Letras / Português da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e coordenadora do curso de Especialização em Estudos da Linguagem e Formação Docente (LINFOR/UFRPE). Atua na área de Linguística, com ênfase nos estudos sobre Gêneros Textuais, Multimodalidade, Letramentos e na Linguística Aplicada ao Ensino de Língua Portuguesa.

Referências

BUCKINGHAM, David. Manifesto pela Educação Midiática. Tradução de José Ignácio Mendes. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2022.

ESCOLA troca professores por inteligência artificial e tem só duas horas de aula por dia; mensalidades partem de 18 mil. G1. 31 agosto 2025, 09h28, Caderno de Educação. Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2025/08/31/escola-troca-professores-por-inteligencia-artificial-e-tem-2-horas-de-aula-por-dia-mensalidades-partem-de-r-18-mil.ghtml. Acesso em: 22 set. 2025.

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