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(Re)construindo o perfil do professor dos Anos Iniciais: teoria, prática e complexidade no cotidiano escolar

9 de outubro de 2025,
E-docente
(Re)Construindo o Perfil do Professor dos Anos Iniciais - teoria, prática e complexidade no cotidiano escolar

O trabalho docente nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental desafia qualquer tentativa de definição simples. Exige domínio de saberes, criatividade diante dos imprevistos e sensibilidade para escutar crianças que chegam à escola com universos próprios.

Neste artigo, propõe-se uma reflexão sobre a (re)construção do perfil do professor dos Anos Iniciais, costurando fundamentos teóricos com exemplos concretos do cotidiano, vozes reais de professores, desafios persistentes e possibilidades de inovação.

Metodologias ativas, inclusão, alfabetização, ensino híbrido e o pensamento complexo de Morin se entrelaçam a cada tópico, apontando caminhos possíveis para uma prática que transforma. Confira!

1. A prática docente nos anos iniciais: o encontro entre a teoria e a sala de aula real

Quem já trabalhou nos Anos Iniciais sabe: a escola pulsa fora dos livros. “Tentei ensinar sobre as estações do ano, mas naquele dia uma criança queria falar sobre saudade da avó. E a aula virou roda de conversa”, conta a professora Luciana, do 1º ano.

São situações assim que mostram a distância entre o planejado e o vivido. Por trás de cada conteúdo, há um mundo de afetos, histórias e desafios únicos. É ali, nesse encontro, que o perfil docente se (re)constrói diariamente.

2. Saberes e identidade do professor: a visão de Freire, Tardif, Nóvoa e Perrenoud

A literatura da Educação é rica e converge em alguns pontos essenciais sobre o papel do professor. Paulo Freire (1996) defende que ensinar é, acima de tudo, escutar e dialogar. Tardif (2014) aponta que o saber do professor nasce tanto da teoria quanto da prática cotidiana. Nóvoa (1992) ressalta: identidade docente é sempre processo, nunca ponto de chegada.

Para Perrenoud (2000), o professor reflexivo observa, analisa, muda de estratégia — nunca ensina por inércia. Morin (2001), por sua vez, inspira a todos com sua ideia de pensamento complexo: educar é aceitar incertezas, conectar saberes e valorizar o inesperado.

Na escola real, tudo isso se mistura: planos são refeitos, conceitos ganham cor, ensinar exige mais do que o currículo — pede humanidade e coragem para mudar de rota. Os discursos de professores a seguir, participantes da pesquisa de doutorado realizada por Oliveira (2019), ressaltam aspectos como:

2.1. Criando ambientes de aprendizagem acolhedores: relato da professora rita

O primeiro passo é garantir que a criança se sinta parte da escola. “Montei um cantinho de leitura com almofadas, livros e até fantoches feitos em casa. Um aluno que não queria saber de ler começou a frequentar o espaço só para mexer nos bonecos, e acabou ouvindo histórias. Hoje ele mesmo pede livros emprestados”, compartilha a professora Rita, do 2º ano. Detalhes assim mudam relações, despertam curiosidade e criam segurança para aprender.

2.2. Inclusão na prática escolar: transformando a cultura da turma

Professores relatam que adaptar atividades para quem tem necessidades específicas é mais do que cumprir lei — é transformar a cultura da turma. “No ano passado, incluí uma menina com deficiência auditiva. Aprendemos juntos algumas palavras em Libras e ela virou ‘professora’ dos colegas em certos momentos. O que era obstáculo virou ponte”, conta o professor Daniel.

2.3. O protagonismo dos alunos: projetos que nascem do interesse da criança

Práticas baseadas em projetos integram saberes e aproximam o ensino do cotidiano.

“Um dia, os alunos chegaram assustados por causa de uma notícia sobre dengue na TV. Daí surgiu um projeto: pesquisamos o mosquito, fizemos maquete, visitamos o posto de saúde, escrevemos cartazes para a escola toda. Ninguém esqueceu aquela experiência”, relata a professora Andréa, 3º ano.

Projetos assim valorizam a interdisciplinaridade e o protagonismo. O professor, longe de mero aplicador de conteúdos, é quem escuta, provoca, pesquisa junto — e aprende com o grupo.

2.4. Alfabetização e letramento: o uso de práticas significativas e tecnologias

Alfabetizar é, acima de tudo, construir sentido para a leitura e a escrita.

“Gosto de começar perguntando o que as crianças querem escrever, e não impondo o que elas devem copiar. Já trabalhei com bilhetes, receitas, listas de compras. Eles adoram, porque veem sentido”, diz a professora Carla.

Brincadeiras com sons, leitura compartilhada, escrita espontânea, uso de jogos e tecnologias digitais são recursos potentes.

“No ensino remoto, cada aluno gravava um vídeo lendo ou contando uma história. Era divertido e ajudava os mais tímidos”, conta o professor Hugo.

2.5. Ensino híbrido e metodologias ativas: o professor como ponte tecnológica

O ensino híbrido e metodologias ativas chegaram como necessidade, mas vieram para ficar.

“Na pandemia, precisei aprender a usar plataformas digitais. No começo, foi difícil, mas logo percebi que dava para gravar experimentos, propor desafios on-line e depois discutir tudo presencialmente. A sala ficou mais dinâmica”, relata a professora Edna, 2º ano.

Leia mais: O impacto do uso excessivo de telas e redes sociais no rendimento acadêmico de estudantes

Aulas invertidas, jogos virtuais, fóruns de discussão e projetos mediados por tecnologia ampliam as possibilidades. Para quem está nos Anos Iniciais, o segredo é usar a tecnologia como ponte — não como substituição — e respeitar o tempo de cada criança.

2.6. Avaliação formativa nos anos iniciais: um retrato do percurso do aluno

Nos Anos Iniciais, avaliar é construir um retrato do percurso de cada aluno.

“Uso portfólio, registro de fala, desenho, fotos. Às vezes, só de observar a brincadeira, já entendo o que a criança aprendeu. Prova, para mim, é só uma das ferramentas”, comenta a professora Solange.

A avaliação formativa é cuidadosa, valoriza avanços e respeita as dificuldades, permitindo intervenções mais humanas e personalizadas.

2.7. Formação continuada: o crescimento profissional por meio da troca de experiências

Se há algo que marca o professor dos Anos Iniciais é a consciência de que nunca se sabe tudo.

“O melhor curso que fiz foi um grupo de estudos com colegas da própria escola. Discutimos casos reais, trocamos ideias, saí de lá outra professora”, relata a Profa. Júlia.

Leia mais: O Papel do Professor na Escola 3.0: de transmissor a facilitador

A troca de experiências, a formação em serviço, os projetos coletivos e o diálogo constante são fontes de crescimento profissional.

3. A complexidade da inclusão: histórias e aprendizagens reais na sala de aula

A palavra inclusão circula em reuniões pedagógicas, projetos institucionais e legislações, mas ganha corpo mesmo é no cotidiano das salas de aula. Os professores dos Anos Iniciais vivem essa experiência de modo intenso, e cada criança traz um novo convite ao aprendizado coletivo.

3.1. Relato 1: TEA e o respeito ao tempo da criança

No começo do ano, chegou à turma uma aluna com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Usava sempre um fone de ouvido azul e não gostava de muita conversa ao redor. “Minha primeira reação foi de medo: ‘Como vou dar conta?’. Procurei a coordenadora, que me incentivou a conversar com a família, entender as preferências da aluna e construir combinados com a turma”, conta a professora Denise, do 1º ano.

Os colegas aprenderam a respeitar o tempo da menina, a avisar antes de mudar a rotina, e até passaram a usar ilustrações para ajudar na comunicação. Aos poucos, o fone azul virou símbolo de respeito — e não de exclusão. Denise resume: “Aprendi mais sobre escuta e empatia esse ano do que em muitos cursos”.

3.2. Relato 2: deficiência auditiva e o aprendizado coletivo de libras

No ano passado, a escola recebeu uma aluna com deficiência auditiva. “Eu não sabia Libras, mas decidi que a classe inteira aprenderia comigo. Começamos com o alfabeto manual, depois aprendemos cumprimentos, cores, sinais do dia a dia. A aluna se tornou referência e sentia orgulho de ensinar os colegas. Isso transformou a turma”, compartilha o professor Bruno, do 2º ano.

Os outros alunos começaram a usar sinais até nos intervalos, e as apresentações passaram a incluir legendas e sinais simples. “Incluímos não só a aluna, mas também novas formas de expressão e amizade.”

3.3. Relato 3: imigração e a construção da identidade na escola

No 3º ano, um menino venezuelano chegou ao Brasil e, na nova escola, falava pouco português. “No início, era tímido, ficava isolado. Organizei rodas de conversa sobre imigração e pedi para as crianças ensinarem palavras em português. Ele nos ensinou palavras em espanhol e nos apresentou músicas típicas. Aos poucos, foi se integrando e virou até monitor da biblioteca. Incluímos um mundo novo na sala”, relata a professora Cláudia.

3.4. Relato 4: mobilidade reduzida e a inclusão no espaço do recreio

Nem toda inclusão depende de adaptações curriculares. “Tínhamos uma aluna com mobilidade reduzida. Combinei com as crianças de mudarmos o espaço do recreio e os jogos, para que todos pudessem brincar juntos. Eles mesmos propuseram brincadeiras novas e ajudaram a construir rampas de madeira”, conta o professor Leandro. Essa pequena mudança elevou a autoestima da aluna e aproximou colegas que raramente interagiam.

3.5. Relato 5: dislexia e o registro das pequenas conquistas

“Recebi um aluno com dislexia que já vinha desacreditado da própria capacidade. Passei a registrar conquistas dele em um caderno individual e mostrar para a família pequenas vitórias semanais. A autoconfiança dele cresceu. Hoje, participa das rodas de leitura sem receio”, partilha a professora Sônia.

3.6. Lições de inclusão: o professor como mediador da diversidade

O que fica desses relatos? Inclusão, na prática, não é apenas cumprir um protocolo, mas reinventar a rotina, dialogar com todos os envolvidos e valorizar cada conquista. Muitas vezes, os próprios alunos são protagonistas e mediadores, ensinando ao grupo o valor da diferença.

Como aponta Freire (1996), “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo”. A escola inclusiva não está pronta — ela se faz no encontro, no erro, na escuta e na invenção cotidiana. O pensamento complexo de Morin (2001) nos lembra que lidar com a diversidade é aceitar a incerteza, abrir espaço para o inesperado e compreender que todos aprendem, mas cada um de um jeito.

4. O perfil inovador e flexível: a aplicação do pensamento complexo de Morin

Morin (2001) nos lembra que a escola não é laboratório estéril. Ela é viva, complexa, cheia de incertezas. “A turma mudou completamente depois da chegada de um aluno venezuelano. Passamos a trabalhar outras culturas, aprender espanhol, ouvir músicas novas. Não estava no plano, mas foi das melhores experiências do ano”, diz o professor Rafael.

A complexidade está nas diferenças, nos desafios imprevistos, nas soluções construídas a muitas mãos. O professor, ao adotar uma postura aberta e flexível, coloca em prática aquilo que Morin chama de ecologia dos saberes.

5. Desafios da prática docente: entre a pressão por resultados e as pequenas vitórias

A realidade nem sempre é fácil: falta de tempo, grandes demandas, estrutura precária, pressão por resultados. “Às vezes, a sensação é de remar contra a maré”, admite o professor Marcelo. Mesmo assim, há vitórias que só quem vive a rotina escolar entende: a turma que aprende a resolver conflitos, o aluno que vence a timidez e apresenta um trabalho, a família que reconhece o esforço do professor. São essas pequenas conquistas que renovam o sentido do trabalho.

Considerações finais: o perfil do professor dos anos iniciais em contínuo movimento

(Re)construir o perfil do professor dos Anos Iniciais é aceitar o desafio do novo todos os dias. É integrar teoria e prática, inovar sem perder o afeto, valorizar o cotidiano sem abrir mão do sonho de uma escola transformadora.

Não existe receita pronta: cada turma, cada professor, cada comunidade inventa seu caminho. O importante é permanecer aberto ao diálogo, à formação contínua, à escuta das crianças e colegas — e à complexidade da vida escolar.

Minibio da autora

Renata Jatobá fez Pós-doutoramento em Bolonha pela Universidade de Lisboa-Portugal. É Doutora em Ciências da Educação pela Université Lumière Lyon 2 na França e Doutora e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco – Brasil. É Especialista em Éducation Pédagogique et Culture(s) de l`Altérité pela Université Claude Bernard Lyon 1 – França. É Coordenadora Científica da Especialização Avançada em Educação e Inovação Aplicadas à Educação Cooperativa, no Instituto CRIAP Psicologia e Formação Avançada Porto/Portugal. Realiza consultoria educacional, é autora de materiais didáticos e pedagógicos.

Referências

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2001.

NÓVOA, António (Org.). Os professores e a sua formação. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992.

OLIVEIRA, Renata Araújo Jatobá de. Saberes e práticas pedagógicas dos professores alfabetizadores nos contextos escolares no Brasil e na França: gestão da avaliação através da intermediação-planejada no ciclo de alfabetização. 2019. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2019.

TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Ptrópolis: Vozes, 2014.

PERRENOUD, Philippe. O que é ser um profissional reflexivo em educação?. In: NÓVOA, António (Org.). Os professores e a sua formação. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992.

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