A passagem da Educação Infantil para o Ensino Fundamental

Professora, essa escola tem poucos brinquedos, né? Sabe o que eu acho mais engraçado? Na minha outra escola, eu era da turma dos maiores. E, mesmo sendo os maiores, a gente tinha um parque grandão, brinquedos dentro da sala, era muito legal! Aqui, nós somos da turma dos menores. E, mesmo sendo os menores, a gente não tem nada disso. As pessoas não sabem que nós somos pequenos?
Essa fala, muito emblemática, foi extraída de um contexto real. Ouvi-a há muitos anos de um aluno, quando eu era professora alfabetizadora, na antiga “primeira série”, na época em que o Ensino Fundamental no Brasil ainda tinha oito anos de duração.
Ao relembrar a escola de Educação Infantil de onde viera, ele tecia, de modo certeiro, a crítica sobre tudo o que as crianças perdem na passagem para o Ensino Fundamental e, até hoje, sua fala ainda me faz refletir.
O respeito à infância
Muito se fala atualmente, desde a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, sobre a necessidade e a importância do respeito à infância. É um consenso, entre educadores, que a criança deve ter assegurados seus direitos – direito à vida e à saúde, à educação, à convivência familiar e comunitária, à liberdade, ao respeito e à dignidade, à proteção contra a violência e a exploração, à cultura, ao esporte e ao lazer, entre outros.
A ludicidade também é reconhecida como um âmbito fundamental das vivências infantis. Todo(a) professor(a) que trabalha com crianças, seja sua atuação voltada à Educação Infantil ou ao Ensino Fundamental, reconhece a importância do brincar.
Será que, mesmo defendendo esse direito, estamos conseguindo garanti-lo às crianças, especialmente na passagem da Educação Infantil para o Ensino Fundamental?
O discurso frequente do Ministério da Educação (Brasil, 2007), quando da implantação do Ensino Fundamental de nove anos, era de que a chegada das crianças de seis anos ao Ensino Fundamental precisava ser cuidadosa.
A escola de Ensino Fundamental, geralmente maior e mais exigente do ponto de vista das obrigações, não poderia “envelhecer” a criança de seis anos. Ao contrário, a chegada delas deveria “rejuvenescer” as crianças de sete, oito, nove e dez anos. Afinal, nessa idade, elas ainda são crianças, embora sua educação não tenha mais o nome de “infantil” (outro aspecto questionável, já que elas ainda participam de programações infantis, usam roupas infantis, leem livros infantis, só a educação deixa de ser infantil).
Reconhecer esses sujeitos que frequentam os Anos Iniciais do Ensino Fundamental como crianças, com especificidades e necessidades próprias, é uma questão de respeito à infância.
Permanências e rupturas
O desenvolvimento humano é gradativo e contínuo e, nesse sentido, ao longo de nossa história de vida, temos permanências e rupturas. É frequente, porém, que algumas escolas promovam rupturas bruscas ao longo da escolaridade da criança, como se aspectos distintos não pudessem coexistir em algumas propostas pedagógicas.
Leia mais: A Importância da Professora de Educação Infantil
Sob essa perspectiva, as escolas de Educação Infantil geralmente são vistas como ambientes mais lúdicos, com tempos e espaços garantidos para o brincar. A escola de Ensino Fundamental, por outro lado, frequentemente reduz esses tempos e espaços, frente a todas as obrigações escolares que as crianças precisam cumprir.
Na Educação Infantil, a criança é convidada frequentemente a desenhar. No Ensino Fundamental, à medida que a criança passa a dominar a escrita, o desenho perde seu espaço (para constatar isso, basta observar a autoconfiança das crianças com relação a seus desenhos, e o quanto ela contrasta com a autopercepção de crianças mais velhas, adolescentes e adultos sobre o mesmo assunto – frequentemente alegam “não saber desenhar”, e em que momento essa habilidade se perdeu?).
A alfabetização, aliás, tende a ser outro ponto de ruptura: há os que defendem que ela só deva iniciar no Ensino Fundamental, e sob um formato altamente escolarizado, negando às crianças, tanto da Educação Infantil quanto do Ensino Fundamental, uma inserção respeitosa nas culturas do escrito (para ler sobre alfabetização na Educação Infantil, acesse aqui.
Os tempos escolares também são diferentes. Na Educação Infantil, os diferentes contextos de aprendizagem costumam respeitar muito mais as singularidades de cada criança, do que os conteúdos programáticos do Ensino Fundamental, que precisam ser distribuídos, sequenciados e avaliados.
Os espaços escolares também revelam essa diferença: brinquedos, parques, tanques de areia, mesas compartilhadas entre amigos também costumam ser muito mais frequentes na Educação Infantil, do que no Ensino Fundamental. Como será que as crianças se sentem frente a tantas rupturas?
Os ritos de passagem
Quando pensamos sobre todas essas rupturas, poderíamos acreditar que as crianças sofrem muito com a passagem para o Ensino Fundamental, e sentem intensa saudade da escola de Educação Infantil.
Há estudos (Teixeira, 2008), porém, que indicam que isso ocorre, mas que demonstram não ser esse o único sentimento. Há também, entre as crianças de seis anos, uma expectativa, uma ansiedade pelo “status” de ser um “aluno grande”, de pertencer ao Ensino Fundamental, de aprender a ler e escrever.
As crianças migram para o Ensino Fundamental, em geral, felizes com sua nova condição. Sabem da importância da escola em nossa sociedade e querem fazer parte de uma escolarização mais próxima da representação social de escola mais difundida (uma sala de aula com carteiras individuais, enfileiradas, uma lousa e um professor à frente, tarefas relacionadas à leitura em livros e à escrita em cadernos etc.).
Elas se sentem orgulhosas pela nova etapa e compreendem que algumas mudanças fazem parte dela. Se soubermos mesclar as rupturas necessárias a permanências desejáveis, essa transição tende a ser muito mais feliz para todos.
Nesse sentido, é preciso pensar nos ritos de passagem. As crianças estão dispostas a essa mudança. E nós, enquanto educadores, a que mudanças estamos dispostos, para tornarmos a escola de Ensino Fundamental um ambiente mais confortável e acolhedor para elas?
Buscando novos caminhos
Para facilitar essa passagem, é necessário reunir uma série de cuidados, que respeitem a infância, suas especificidades e singularidades, assegurando às crianças a garantia de seus direitos, seja qual for a etapa ou o segmento de escolaridade que frequentarem.
Um primeiro cuidado é com relação aos conhecimentos prévios: algumas escolas abarcam tanto a Educação Infantil quanto o Ensino Fundamental. Em outros casos, os segmentos são atendidos em escolas diferentes. Seja em uma situação ou em outra, cabe à gestão escolar (da escola ou das escolas) proporcionar momentos, no final da etapa da Educação Infantil, para que as crianças possam conhecer o que as espera no ano seguinte.
Promover situações como “Vivendo um dia no Ensino Fundamental”, ou uma roda de conversa com os estudantes do 1º ano, para que eles deem “dicas” para facilitar a adaptação dos amigos, ou entrevistas com os professores que atuam no novo segmento podem ser estratégias potentes para facilitar a chegada das crianças, já que elas começarão a nova etapa com algum conhecimento prévio do que as espera.
Um segundo cuidado é com o espaço escolar: a escola de Educação Infantil geralmente é rica em proporcionar interações, e a de Ensino Fundamental também pode ser! Se as carteiras forem individuais, elas podem ser agrupadas, nem que seja em apenas alguns momentos. Se não houver um parque, brincadeiras podem ser propostas e mediadas pelo professor. A presença de brinquedos pode trazer conforto e segurança – e não só na sexta-feira. Propostas coletivas podem convidar as crianças a interagir umas com as outras.
Um terceiro cuidado refere-se aos tempos escolares: a rotina nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental não precisa ser rígida, principalmente considerando-se a presença de um(a) professor(a) polivalente. É possível flexibilizar as atividades, garantindo um maior tempo quando necessário e assegurando que as singularidades infantis sejam respeitadas.
Um quarto cuidado diz respeito à seleção de materiais. Os livros didáticos podem ser escolhidos segundo – também – este critério: livros que respeitem a infância, que tragam textos de boa qualidade e ilustrações que fujam de imagens estereotipadas. Livros cujas propostas estejam de acordo com a realidade vivida pela turma fora da escola. Além do livro didático e de materiais individuais, é importante que as classes de Ensino Fundamental tenham também materiais coletivos, de modo a promover o senso de pertencimento ao grupo e a interação entre as crianças.
Além desses, outros cuidados podem ser pensados pela equipe pedagógica, a depender da realidade de cada escola e cada turma. O essencial é que gestores e professores tenham a preocupação de fazer de toda escola, seja qual for o segmento atendido, um território feliz.
Somente assim as crianças, ao perceberem as mudanças, não se chocarão com elas, como revela a fala do estudante que abriu este texto. Ao contrário, eles poderão dizer:
Essa escola é diferente, e traz muitas coisas novas. É uma escola feita para crianças como eu, porque aqui, todos sabem o que é ser criança!
Referências
BRASIL, Ministério da Educação. Ensino Fundamental de nove anos: orientações para a inclusão da criança de seis anos de idade. Brasília: SEB/MEC, 2007.
TEIXEIRA, T. C. F. Da Educação Infantil ao Ensino Fundamental: com a palavra, a criança. Um estudo sobre a perspectiva infantil no início do percurso escolar. 2008. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-17062008-104724/pt-br.php. Acesso em 11.08.2025.
Minibio da autora
Elaine Cristina R. G. Vidal é professora na Faculdade de Educação da USP (FEUSP), atuando na graduação e pós-graduação. Ela é formada em Letras (USP) e em Pedagogia (Universidade Metodista/SP). Concluiu suas especializações em Alfabetização (ISE Vera Cruz) e Ética, Valores e Cidadania na Escola (Univesp). É Mestre e Doutora em Educação (Linguagem e Educação) pela FEUSP.
É autora dos livros Projetos didáticos em salas de alfabetização, Literatura e crianças: um encontro necessário e A infância na escola: reflexões sobre Educação Infantil. Sua experiência profissional abrange atuação como professora e gestora em todos os níveis da Educação Básica e no Ensino Superior, além de ser editora no Núcleo de Produção de Conteúdo e Formação da Saber Educação.
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